4 A aula como desafio
a experiéncia da historia
Valdei Lopes de Araujo
Para Ilmar R. de Mattos, que fez da aula vida.
Introdugao
Nao € minha intengao discutir neste texto a natureza do presente em geral ou
de nosso presente em particular, nem as possibilidades contemporaneas de
uma historia do tempo presente, mas, a partir de um panorama de como se
transformou o valor epistemolégico do presente no comego dos tempos mo-
dernos, pensar os desafios pedagogicos para o enfrentamento, em sala de aula,
da temporalidade em geral. Nao farei isso como um especialista em pratica de
ensino de histéria, mas como um professor universitario que, na disciplina de
teoria da historia, precisa planejar essas tarefas em sua atividade cotidiana.
Colocar o problema do presente nesses termos deve nos levar a questio-
namentos em duas diregdes. Primeiro, 0 que é isso que podemos chamar de
presente e como ele afeta, de forma especifica, nossa relagdo com a historia.
Em segundo lugar, como certos tracos de nossa contemporaneidade exigem
uma reformulacgao do modo como geralmente lidamos com o problema do
tempo em sala de aula.
Transformacées no valor epistemoldgico do tempo presente
Nossa compreensio da temporalidade avangou de forma significativa a par-
tir da fundamentacao do tempo na subjetividade transcendental proposta
por Husserl. Como base de toda experiéncia, o tempo deriva da forma comoA aula como desafio a experiéncia da historia
nossa consciéncia estd estruturada, permitindo que possamos distinguir
processos anteriores e posteriores, retencdo e propensdo, memoria e expec-
tativa, passado e futuro.
O presente, como o tempo do agora, é justamente esse ponto onde a ex-
periéncia se torna possivel. A partir de motivacées mais ontoldgicas, Heideg-
ger langou as bases decisivas para uma descrigio da temporalidade enquanto
condigio humana. Na segunda parte de Ser e tempo (1996), 0 filésofo abre a
possibilidade para pensarmos o tempo histérico a partir de uma perspectiva
nao meramente historicista. Afirma que a experiéncia cotidiana do agora, em
sua realidade quase que imediata, destacar-se-ia do ontem e do amanha, do
que ja nao é e do que ainda nao aconteceu. No entanto, nesse instante do ago-
ra, aparentemente autorreferido, o passado e 0 futuro vigorariam sob formas
variadas: lembranga e angtistia, saudade e falta, medo e esperanca, incerteza
e confianca, entre muitos outros efeitos e afetos que formam a trama do ago-
ra. O nascimento/passado/origem e a morte/destino/futuro devem ser entdo
encarados como partes inseparaveis do instante/agora. Por isso, para Heideg-
ger, toda compreensao da historia é sempre a compreensao desse espago entre
nascimento e morte, passado e futuro, ou seja, da temporalidade,
Todo fato so € possivel por encontrar uma situagao neste entre. Ea partir
dessa experiéncia priméria que a historia pode acontecer e tornar-se objeto
de uma historiografia, de uma escrita da historia. A disposicio do homem
enquanto um ser entre nascimento e morte constitui seu carater temporal, ¢
86 porque o homem é temporal pode haver uma historia e uma historiogra-
fia. Nao é a hist6ria que constitui a temporalidade humana nem a historio-
grafia que constituiu os fatos ou a histéria, mas é a temporalidade, enquanto
condigdo estrutural do humano, que possibilita qualquer historia e essa con-
digo € a base sobre a qual podemos nos relacionar com o passado eo futuro
de diferentes formas. Certamente, essa afirmagio ainda nao foi digerida por
grande parte da reflexio sobre a historiografia desenvolvida ao longo do sé-
culo XX. A maior parte dos autores reduz a teoria da historia a uma simples
epistemologia. Dessa armadilha néo escapam mesmo aqueles que, acredi-
tando produzir um discurso anticientifico, apenas ocupam seu oposto estru-
tural, ou seja, a celebragao de uma subjetividade hipertrofiada. A redugao do
problema da histéria a busca de equilibrio entre os polos da subjetividade e
da objetividade somente obscurece a dimensao mais fundamental das con-
digdes ontolégico-existenciais que fundamentam as diversas possibilidades
da histéria, inclusive a da sociedade cientifico-tecnologica que naturalizou
nossa compreensao do mundo no par metafisico sujeito/objeto.
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Da mesma forma, dizer que toda histéria é uma histéria do presente,
uma espécie de projecao de nossos interesses sobre 0 passado, é dizer muito
pouco, embora a popularidade da formula seja um sintoma de nosso tempo.
Se admitirmos o carater temporalmente denso do presente, ele deve ser visto
nao como uma dimensao fechada em si mesma, mas como o resultado da
propria histéria viva com a qual sempre nos relacionamos. Portanto, se toda
histéria é uma historia do presente, todo presente, inclusive nos interesses
que pode articular, é 0 resultado de uma histéria da qual nao pode separar,
senao apenas formalmente, suas dimensées pretéritas e futuras.
Essa pequena descri¢ao pode nos servir de guia para entender as trans-
formagées na relacdo com o tempo presente. A ideia de uma universalidade
da natureza humana, ou seja, a crenga de que o homem poderia ser definido
por algum traco nao histérico como ser dotado de razdo ou animal politico
permitiu uma espécie de proximidade entre o ontem e o hoje. A distancia
poderia se dar apenas pelo arruinamento e decadéncia dos povos, logo, o tra-
balho de reaproximagao seria como o de uma restauracao, uma redescoberta
de si mesmo. O presente, igual a qualquer outro presente passado ou futuro,
poderia ser o lugar a partir do qual nos relacionariamos com a verdade. Do
ponto de vista historiografico, a melhor narrativa sé poderia ser a historia
escrita no presente, a histéria testemunho. A passagem do tempo nao afeta o
valor dessa histéria, a nao ser que a comunidade para a qual ela fazia sentido
seja destruida, perdendo-se assim o precioso fio da continuidade.
O valor de verdade desse relato dependeria da posicao de autoridade de
quem o escreveu. Quando o problema da imparcialidade aparecia, ele nunca
era resolvido pela distancia temporal. As respostas poderiam ser a de assu-
mir a posigao de estrangeiro nao envolvido ou a de levantar os diversos pon-
tos de vista sobre os acontecimentos, na tentativa de reconstruir uma visio
total, o oposto da visao parcial.
Nos tempos modernos, a emergéncia de um novo campo de experién-
cia da histdria, entendida como uma totalidade em formacao acumulativa
no tempo, exigiu uma mudanga quase completa na forma de se relacionar
com 0 tempo presente. Por um lado, ele é valorizado como 0 tempo mais
evoluido, como na metéfora inicial da querela dos antigos e modernos: os
modernos podem ver melhor ndo por serem superiores aos antigos, mas por
contarem com sua heranga, s4o andes em ombros de gigantes. Como con-
sequéncia dessa premissa, todo presente tornar-se-d ultrapassado, ou seja,
sera superado por um presente-futuro superior e diferente. Surge a sensacado
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