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O rapaz deu um sorriso repreendido, como se daquele jeito

escondesse um pouco do rancor que sentia dentro de si.


Deu um gole no copo e levantou a cabeça, deixando o
líquido ardente e presente rasgar sua garganta feito uma
espada previamente afiada. Passou os dedos entre seu
cabelo negro e soltou a mão em um movimento brusco.
O céu estava nublado. Um cinza que predominava em
quase tudo, exceto pelos enfeites da festa. Sempre
animada devido a devoção dos mexicanos, porém a
ocasião não dava abertura para muitos prestígios. Alguém
morrera.
Aquela noite era importante para Leonardo de muitas
maneiras. Havia um mês que entrara para a polícia civil da
cidade do México e pretendia comemorar em alto estilo
sua união afetiva de um ano e meio, mas infelizmente a
namorada não poderia acompanha-lo. Ele se forçou para
entender a situação dela e o porquê não poderia estar com
ele nesse momento.
Dissera que a tia mais próxima da família havia adoecido e
se não a acompanhasse no hospital, temia perder mais um
familiar. A áurea que acompanhava Cecília era obscura,
tenebrosa, um peso se instaurava quando ela chegava nos
lugares, talvez isso se devesse aos precedentes paternos.
Era como se o azar, a luxúria e a inocência caminhassem
juntos nos olhar retrógrado e passivo da moça mais
querida da vizinhança.
Devo descrevê-la melhor, afinal esta é a companheira fiel
de nosso protagonista. Cecília tinha o doce dos
tradicionais biscochitos nos lábios, mais pela persuasão
que tinha do que pelo gosto em si, mesmo que o fossem
também. Era descendente de indígenas espanhóis.
Entretanto, duas gerações atrás optaram por viver como
ciganos, assim dando inicio a um processo sem fim de
tortura.
As ciganas da família se tratavam das mais respeitadas
pelo bairro, dando conselhos e fazendo adivinhações.
Porém, os rituais seriam a marca de identidade da família.
A moça jamais se comprometera com alguém, andava
sempre recata e reclusa, fazendo tão somente sua magia
com as cartas. A questão é que no momento em que viu
aquele homem desestruturado vagando pela mata escura,
seu coração admitira que um vislumbre encontrara. Seus
gostos? Os mais peculiares.
Depois disso, os dois começaram a se relacionar e ela,
arrependida e envergonhada de sua origem, abandonou
tudo para viver com uma parente que vivia no luxo da
cidadezinha. Tudo tão somente por ‘amor’.
Voltando ao presente.O rapaz não era de maneira alguma
compreensível, mas egoísta e possesivo. A primeira reação
de quando soube que teria de ser segundo plano para ela
foi com um forte impulso de raiva que o levou a jogar o
prato na parede, acertando o pescoço da namorada. Como
sempre, quando tinha seus ataques de vulnerabilidade,
depois ele pedia desculpa e viraria as costas como se nada
tivesse acontecido.
Seu histórico de namoro era extenso e complicado. Uma
folha cheia de rabiscos e anotações, mas ainda assim, um
rascunho de caneta preta. Fechou os olhos e respirou
fundo pela décima vez no caminho de volta casa, pelo
menos o pensava estar seguindo.
Eu preferiria que ela morresse, pensou consigo mesmo ao
puxar a manga da camisa social preta um pouco acima do
cotovelo. Voltou seu olhar para o céu, fitando as estrelas
que iluminavam a rua de maneira mais eficaz que as
luminárias dos postes quebrados. Leonardo ficava
planejando o casamento com sua namorada milhares de
vezes. O momento em que ela entraria de véu branco e
grinalda na igreja Maria de Guadalupe, com o vestido
volumoso arrastando nos ladrilhos do chão. Ele ficaria
parado, estático com tamanha beleza. Não quero de jeito
algum negar a graça exuberante de Cecília, mas o garoto
via além do que os olhos escuros e a pele bronzeada.
Ele era obcecado por seu corpo, pela silhueta que sua
cintura formava quando ele estava na sala vendo jogo de
futebol e ela parava na cozinha com a luz apagada e fios
da luz lunar em sua volta.
Leonardo parecia começar a ficar tonto, um passo não
acompanhava o outro e ainda por cima, seu hálito estava
terrível. Os olhos avermelhados e entreabertos não
conseguiam focar por muito tempo. Um gato preto com
um corte na barriga passara correndo ao cruzar seu
caminho, junto de um miado agudo e perturbador.
Tudo naquele cenário amedrontaria a ele se sua
consciência estivesse no lugar e não abafada por
pensamentos involuntários sobre o quanto odiava Ceci.
Andou mais um pouco, passando em frente a um cemitério
abandonado, sem uma alma viva presente para
homenagear os familiares. A velas acesas ameaçavam
apagar sua chama com a brisa baixa. Lembrou-se de que
era Día de los muertos, tentou desviar. Para ele a família
era a última coisa que importaria. Seu pai morreu de
tuberculose, a madrasta fora esfaqueada em um bosque e o
irmão... aquele ninguém sabia por onde andava.
Um vulto momentâneo passo por seus olhos, olhou em sua
volta e para trás se atentando as árvores altas que ficavam
na esquina e no cemitério, cobertas por uma névoa
solitária. Quando virou o rosto, foi nesse momento que
tudo pareceu ser o fim. Sua perna tremera, bamba,
fazendo-o cair de joelhos para o que fosse que estava em
sua frente naquele momento.
A figura tinha pouca mais que um metro e sessenta, o
corpo era esguio, fino como varetas. A construção óssea
daquela criatura parecia ser como vários galhos
amontoada em forma de uma figura humana feminina.
Cabelos negros longos e cacheados, cobertos por um véu
com detalhes em vermelho sangue. Ela parecia carregar a
própria seiva encharcada em si mesma. Os olhos vagos,
escuros, não era como se não estivessem ali, mas como se
fossem presentes de outra maneira. O vestido preto
rendado escorria no chão feito correntes, e o som ainda
assim apresentava-se lá.
Uma essência podre de defunto compunha seu cheiro
azedo, combinação de limão, cinzas e mofo.
Leo estremeceu, lágrimas escorria de seus olhos. Queria
não acreditar no que via a sua frente. Como maneira de
reflexo, ele empurrou o que quer que fosse que estava ali.
E correu. Correu com o folego inacabado, com a garganta
latente pelo corte da dor aguda do álcool, o peito subindo e
descendo, seus passos rápidos e largos. Encostou em uma
parede, correra tanto e acabou não percebendo que estava
no píer da cidade. O mar calmo sendo navegado pelo ar
que comprimia tudo, inclusive sua noção de movimento.
Pobre coitado. Não adiantaria nada fugir outra vez.
A mão gélida segurou seu pescoço e o apertou com tanta
força que pintou um tom roxo em sua face. Os olhos
alargando mais do que antes e o coração em descompasso
com o que fosse, parecia ter criado sua própria batida
frenética, pulsante de dois em dois segundos.
Foi agora que o som profundo, como se sussurrado em um
poço saiu da boca daquela mulher esquelética.
“Não tenha medo. Não tente nem ao menos gritar ou fugir.
Eu te seguirei até o fogo da morte para te encontrar.
Preciso resolver negócios e você vai ser quem me ajudará”
a boca oca colada no ouvido dele, o frio correndo por todo
o corpo.
“Me solt...” sons agudos no fundo soavam, o sino da igreja
em que planejava se casar badalava e a meia noite batia à
porta daquele condenado ao sofrimento.
A mão cadavérica pressionou um pouco mais, focando
dessa vez nas veias. Um outro toque ia do peito sem
folego, batendo feito tambor, até o umbigo.
“Não seja teimoso e nem use da sua malandragem comigo
outra vez. A culpa não cairá nas minhas costas, mas na
daquele que utilizou das artimanhas da enganação para
com a escuridão” o sorriso era notório, havia prazer
calejado na face que antes não possuía expressão alguma.
O véu balançava com o vento, as correntes tilintavam e os
sons agudos permaneciam na cabeça dele. Fosse loucura
ou fosse verdade.
Leonardo caiu no chão, seu pescoço machucado e com um
hematoma uniforme. Acariciou a si mesmo, cansado,
exausto, parecia que ele estava sendo falho e insuficiente
para si mesmo.
A morte em carne fúnebre agachou, movendo o vestido
com precisão e delicadeza. Sua postura era sofisticada,
com movimentos lentos e mortais. Prendeu uma algema
em seu braço e no do rapaz amedrontado. Pousou seus
lábios carnudos no dele, lhe dando um beijo. A textura
dele era pouco molhada, ela o sugara por completo. Ele se
sentia esgotado. A morte o apresentava o fim.
Os olhos castanhos mel arregalados e incomodados com o
forte odor, mas ainda assim estáticos perante aquela
imagem. Ele estava beijando uma morta, mas não qualquer
uma. A que ainda rendida como servente do mal, possuía
vigor. Lembrava-se ainda que era mulher, feita da carne de
adão e contida pelo espírito dos anjos caídos.
O toque em sua pele imitava o gelo se aproximando do
fogo. Podia até derreter, porém o efeito que nele causava
era de um refresco decrépito. O rastejar do contato traçava
um vestígio marcante de muco gosmento. A carícia da
finada em seu término, o presenteou com um punhado de
pedaços de cinzalhas. Era nojento e repugnante.
Os dois caminharam pelas ruas vagas da cidadezinha.
Claro que como toda população de herança espanhola,
lendas populares não faltavam. Só que aquela era uma
nova para a coleção de Leo, que as ouvia no bar. Uma
inédita.
A mulher mortalha às vezes esbarrava no rapaz, que como
se não tremesse o bastante de medo e pavor, tropeçava nos
tijolos da calçada. Decidira esquecer, fechar os olhos e
apagar as imagens que martelavam dentro de si, focando
em Cecilia, na sua boca quente e familiar, confortável
como estar em casa após o serviço na delegacia.
Ela parou.
As pegadas que ecoavam um estrondo maligno terreno
cessaram.
Ele suspirou, fortalecido pela vontade de que aquele dia
acabasse. Quem dera Cecilia estivesse ali, mas ela o
abandonara. Ele não tinha a companhia de ninguém, nem
mesmo daquela figura apática, mas desejosa.
“É aqui que paramos Leonardo” envergou a cabeça,
penetrando no fundo do poço da alma daquele homem
desolado pelo temor “Preciso de um favorzinho seu, não
vai doer nada, pelo menos não agora”
“O que você quer de mim? Por que tenho tanto valor?”
“Ah” soluçou debochada. A morte era irônica, agoniante e
delicada “ Isso! Quero que pelo menos uma vez seja útil.
Vê aquele gato preto parado no pé da arvore? Desejo que
você o mate em sacrifício próprio”
Antes mesmo que ele pudesse correr, se lembrou das
algemas rígidas que apertavam seu pulso, comprimindo-o
de maneira esmagadora.
Cabisbaixo, caminhou até o animal. Sonolento,
embriagado com a bebida e com pânico. A mulher anda
junto dele, logo após, preparada para qualquer movimento
inesperado. Ele desviou os olhos do buraco oco dos olhos.
“Porque isso está acontecendo? Porque não me mata
logo?”
“Seria muito menos dolorido do que te fazer sofrer cada
gota de sangue que carrego encharcado no meu corpo.
Esse vestido pesado do líquido grosso e vibrante” ela
olhava fixo, mesmo que sem algo que denunciasse seu
estado. Era uma criatura sem alma, sem vida, sem vigor.
Leo se concentrou, talvez fosse menos doloroso se ele
esquecesse, se ignorasse o que sua mão fazia, mesmo
mandando impulsos de controle, mesmo sendo contra as
regras mortais. O cadáver enfiou o dedo indicador na sua
lombar e pressionou severamente.
Ele andou, focou e foi impiedoso. O olhar do animal era
celestial e seu corpo tremia com o pelo arrepiado, quase o
mesmo estado que o de seu assassino, mas o que ele sentiu
foi totalmente diferente. Se deliciou quando a cabeça
desceu, rolando para longe do animal, o sangue jorrando
em seu rosto agora vívido e frenético. Mas a mulher
cadavérica continuava estática, aérea com seu próprio
deleite.
O rapaz dava golpeadas, facadas, acertos precisos naquela
carne mórbida, ensanguentada assim como ele.
“Chega! É o suficiente para mim” ela o puxou, vendo que
ele lambia o próprio rosto.
“Isso foi... Prazeroso. Toda a raiva e ódio que eu sentia da
Cecília, foi se esvaindo conforme eu via o vermelho e
somente o vermelho.
A mortalha o conduziu até o cemitério, onde derramaram a
carne e o sangue em uma lápide com nenhum nome ainda
cravado. Ele estranhou o porquê de ela ter feito isso. Seu
plano era indecifrável e isso era o que agora o consumia.
O medo dera lugar a curiosidade, de maneira que ele
apenas a seguia cegamente pelos caminhos tortuosos e
abandonados.
Por fim, ela estava acabando a trajetória que tinha em
mente. Nesse momento pretendia sentir seu próprio prazer
e inebriar-se completamente dele, como uma taça de vinho
tinto e saboreá-lo com calma.
Leonardo e a mulher adentraram uma pensão abandonada,
um casarão sem sentido e repleto de um nada.
Subiram as escadas, calmamente, prestando atenção a cada
passo, entraram em um quarto e ela, após tirar as
correntes, trancou a porta com uma chave dourada,
colocando a dentro do vestido.
Leonardo ficou parado, entendia o que ela pretendia, mas
pensava que talvez não fosse de fato acontecer. A mulher
mórbida o empurrou, arrancou sua camisa social preta,
como se fosse um animal rasgando a pele de outro.
Montou em cima dele e distribuiu aqueles beijos gélidos
de outrora no píer. Ela desceu pela barriga e fez menção
de arrancar o cinto da calça dele. O rapaz por sua vez,
inverteu a coisa e, agora por cima, a beijou, começando
pelo pescoço. Algo estava errado. Parecia que ali nada
tinha senão o tecido rendado. Balançou a cabeça e se
concentrou em continuar, a altura de seu estado com
certeza aquilo poderia ser atribuído ao efeito do álcool.
Quem sentia prazer agora era ele. Leonardo apertou a
cintura dela, mesmo tendo a sensação que seria proibido.
Cecília era a última instancia de um rio de preocupações
que o rapaz tinha. Seus dedos longos dançaram valsa nas
voltas sensuais do corpo daquela dama. Quentes em uma
noite de verão, com a umidade invadindo o pequeno
quarto. A janela batia muitas vezes e a cortina voava
enlouquecida com o cenário tenebroso daquele aposento.
Ele parou por um momento e ficou paralisado quando viu
alguns machucados. Além de manchas protuberantes,
cortes a faca se mostravam gritantes. Leo mirou
inativamente até encontrar uma faca no peito que antes
estava coberto pelo vestido. Seus pelos voltaram a se
eriçar e parecido com o efeito deprimente da lua indo
embora, seu apetite deu lugar à uma ânsia de vômito.
A morte então inverteu os papéis outra vez e novamente
levou suas mãos ao pescoço dele, pressionando com a
lâmina da faca que ele matara o animal e que se
encontrava cravada em seu peito. Sua feição era
determinada, ela sabia o que estava fazendo e desejara por
isso há tanto tempo. Aproximou seu rosto do dele, roçando
uma pele na outra. A podre e a robusta. Leonardo passou a
língua por cada centímetro do osso daquele cadáver.
Lambeu o sangue que por visão, parecia ser velho, seco,
mas em sua boca, provou o oposto.
Levou um minuto para que ele paralisasse e em sua frente
visse não uma mulher humana, não obstante uma criatura
horrenda, seca, podre. O sangue desta vez intenso e etéreo.
“Mas... O que você está fazendo? Pensei que estávamos
juntos, que tínhamos nos entendido!”
“Eu nunca sentiria prazer em estar ao teu lado, em me
casar com você. Sempre tive nojo e repulsa. O vomito
sempre vinha até a garganta e voltava vagarosamente. Ao
teu lado vivi sofrimento, dor e angústia. Cada vez que me
abandonou, que me trocou pela bebida, por terceiros, que
disse que me amava mesmo eu sabendo que a máscara
estava em seu rosto. Eu te odeio Leonardo. Eu nunca fui
tão vazia e cega por amor. Algo que me fez burra, triste e
provedora de angustia para todos” ela pausou, parecia
lembrar de mais coisas, mas calara-se.
“Cecília?” ele disse por entre a lâmina e o sufoco, ela
soltara um pouco para que ele pudesse respondê-la.
Ela assentiu apenas, movendo a cabeça. Fez um corte no
rosto dele e bebeu no cálice do prazer eterno. Um que ela
mesma não provara na morte.
“Lembra-se da tia que tanto odiava? Graças a você eu fui
morta assim que cheguei no leito do hospital, pelas mãos
da minha única família. Ela havia nutrido desgosto por
mim. Tudo por sua causa. Entende o porquê sempre vivi
aos eu entorno? Rodeada para satisfazer seus prazeres...
Só que agora, o deleite é meu...”
“Eu não fui culpado de nada! Jamais teria em mente seu
tormento” ele virava o rosto na tentativa de escapar de
cortes mais profundos, no entanto, isso o causava marcas
mais profundas.
“Eu herdaria tudo. Cada colar de diamante, cada mansão
no exterior, cada noite do seu lado. Tudo porque eu era
obcecada pelo anseio de que você me desejasse tanto
quanto eu” ela fixara nele, nos seus olhos, no queixo e na
mandíbula marcadas, as sobrancelhas grossas e
estonteantes.
“Amo você e me perdoa se te magoei algum dia”
Leonardo com certeza era dissimulado. Se eu pudesse
defini-lo em uma só palavra, essa seria psicopata. Seu
sangue fervia por motivos obscuros, por vontades
reprimidas no social.
“Claro que te perdoo, meu querido amor. Mas nada se
compara a satisfação que terei agora”.
O fim dessa história seria trágico, assim como o começo e
o meio. Tudo seria uma tragédia descomunal entre o amor
e o rancor, a vida e a morte, o desejo e o sofrimento. A
faca passou entre o ar e fincou-se no peito vivo que batia
ofegante, havia encontrado seu descanso. E ali fincou,
conjunta da expressão do jovem que se paralisara de
medo, de surpresa e de sofrimento. A morte o havia
beijado, lhe dado o amor para então tomar de si tudo e
substituir pelo que ele merecia de verdade.

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