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A opção pelos pobres e a crítica de Delfim Netto

Carlos Lessa

É consenso entre gregos e troianos que a distribuição pessoal de renda e


riqueza do Brasil é das piores do planeta. Li Delfim Netto afirmando que a culpa
dos problemas brasileiros tem origem na "Constituição cidadã, que criou um
Estado de bem-estar para um país de U$ 40 mil de renda per capita e não para
um Brasil U$ 4 mil de renda per capita". Insiste no que denomina brutal carga
tributária, que corresponde a 40% do valor agregado pelas empresas. Considera
o gasto público um "sorvedouro de recursos". No passado de ditadura militar, o
superpoderoso ministro Delfim Netto afirmou: "É preciso fazer o bolo crescer
para depois reparti-lo". Está implícita nesta tese que a repartição de rendas por
políticas sociais (benefícios para idosos e portadores de deficiência; piso de
salário mínimo para pensões e benefícios previdenciários; bolsas famílias e
procedimentos de transferência de renda) são pró-civilização, porém contra o
desenvolvimento.

Esta tese merece ser examinada com muito cuidado. As empresas


brasileiras não estão investindo significativamente, a não ser as muito grandes
no exterior. Isto não acontece porque sua lucratividade é baixa, inibida pelo
"sorvedouro". Investem pouco na esfera produtiva porque o mercado interno
tem um crescimento medíocre, tanto que aquelas voltadas para o mercado
exterior estão crescendo. Nossas empresas utilizam seus bons resultados para
reduzir seu coeficiente de endividamento e se possível aplicar financeiramente
um pedaço de seu capital. Afinal, o mercado interno brasileiro não cresce, mas o
Tesouro paga a mais alta taxa de juro real do planeta sobre títulos de dívida
soberana. Esta é a razão forte de que uma economia que não cresce tem seus
grandes bancos (inclusive o Banco do Brasil) com elevadíssima rentabilidade e
crescimento. O ministro Delfim Netto, em tempos de "esperar o bolo crescer",
defendeu com unhas e dentes a tese de que o banco comercial privado brasileiro
deveria se converter em um "supermercado financeiro". Hoje nossos bancos são
supermercados gigantescos. Intermediam pela tesouraria a metamorfose do
caixa das empresas em poupança financeira. Transferem para as tarifas de
prestação de serviço a cobertura de todos os seus custos de operação e ganham
liquidamente em todas as operações financeiras. Porém, o banco não cumpriu a
profecia de Delfim, de que, uma vez gigante, seria conglomerado nacional,
financeiro e industrial. Cresceu e manteve a "preferência irrestrita pelo mercado
de capitais". Nosso maior banco privado, o Bradesco, está se desligando da forte
posição que adquiriu (extremamente barata) da Companhia Vale do Rio Doce
para aumentar a capitalização do banco.

O gasto público cresce no Brasil pelo pagamento de juros. Esses juros


(70%), que em 2006 superaram R$ 160 bilhões, vão para pouco mais de vinte
mil famílias ricas e muito ricas. À exceção do consumo suntuário que explica o
sucesso de uma Daslu e da alta gastronomia, em sua maioria esses recursos
retornam ao mercado financeiro, que em última instância apresentam como
possibilidade (sempre saborosa) de aplicar em títulos de dívida pública. Juros
que migram para a dívida pública, que remunerará com mais juros a dívida
ampliada, não engendram dinamismo nem alimentam investimentos produtivos.
Combinam medíocre crescimento, concentração de riqueza e torpor produtivo.
O gasto público também cresce com pagamentos a funcionários, compra
de itens de custeio e políticas públicas tipo Bolsa Família. Isto alimenta um gasto
que vai direto via comércio para a economia interna do país. O fato de a Bolsa
Família ter crescido no Nordeste foi registrado pelas redes de supermercado da
região, que festejaram melhores vendas. A Previdência Social está debilitada.
Circunscrita a base salarial, é penalizada pelo crescimento explosivo da
informalidade nos contratos de trabalho e estratégias de subsistência que
corroem sua receita. Além disso, como é sabido, o Tesouro desvia arrecadação
do Confins e do CSLL para o buraco negro do superávit fiscal, que vai todo para
pagar juros. Cabe, contudo, não esquecer que a previdência brasileira tem um
déficit R$ 42 bilhões, que equivale a apenas 25% dos R$ 160 bilhões pagos de
juros. São milhões de idosos trabalhadores rurais aposentados que não
contribuíram; são algumas centenas de milhares de portadores de deficiência de
famílias pobres e são os que no nível inferior do leque de pensões têm todos os
anos alguma melhoria pela elevação do poder de compra do salário mínimo
beneficiados pela previdência.

Cabe ao leitor julgar méritos e deméritos dos tipos de gasto público.


Considero que o gasto não financeiro é o mais justo e amplia o mercado interno.
Obviamente, pode e deve ser aperfeiçoado, porém recortá-lo produz "apagões".
Estamos vivendo o "apagão" aeronáutico. Sem a visibilidade de aeroportos
congestionados e em silêncio há um enorme apagão de segurança, transporte
público, manutenção rodoviária, funcionamento dos serviços públicos de saúde,
qualidade de ensino etc. O atual governo expandiu o gasto público - o Bolsa
Família - a partir de uma opção preferencial pelos pobres - consagrada pela
Constituição cidadã. Esta opção é meritória e ajuda a economia. Porém, é
insuficiente. A opção pela inclusão social somente será possível se houver a
multiplicação de empregos de qualidade. Ela supera em grande parte a falta de
perspectivas, particularmente assustadora para a juventude. A geração de
empregos exige investimento público para desinibir e criar a base articulada dos
investimentos privados. A expansão do gasto financeiro do setor público veta o
investimento e premia a acumulação financeira.

Carlos Lessa é professor titular de Economia Brasileira do Instituto de


Economia da UFRJ e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES) (endereço eletrônico: carlos-lessa@uol.com.br).
Escreve mensalmente, às quartas-feiras, no jornal Valor Econômico. Este texto
foi publicado no dia 14 de fevereiro de 2007.

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