É consenso entre gregos e troianos que a distribuição pessoal de renda e
riqueza do Brasil é das piores do planeta. Li Delfim Netto afirmando que a culpa dos problemas brasileiros tem origem na "Constituição cidadã, que criou um Estado de bem-estar para um país de U$ 40 mil de renda per capita e não para um Brasil U$ 4 mil de renda per capita". Insiste no que denomina brutal carga tributária, que corresponde a 40% do valor agregado pelas empresas. Considera o gasto público um "sorvedouro de recursos". No passado de ditadura militar, o superpoderoso ministro Delfim Netto afirmou: "É preciso fazer o bolo crescer para depois reparti-lo". Está implícita nesta tese que a repartição de rendas por políticas sociais (benefícios para idosos e portadores de deficiência; piso de salário mínimo para pensões e benefícios previdenciários; bolsas famílias e procedimentos de transferência de renda) são pró-civilização, porém contra o desenvolvimento.
Esta tese merece ser examinada com muito cuidado. As empresas
brasileiras não estão investindo significativamente, a não ser as muito grandes no exterior. Isto não acontece porque sua lucratividade é baixa, inibida pelo "sorvedouro". Investem pouco na esfera produtiva porque o mercado interno tem um crescimento medíocre, tanto que aquelas voltadas para o mercado exterior estão crescendo. Nossas empresas utilizam seus bons resultados para reduzir seu coeficiente de endividamento e se possível aplicar financeiramente um pedaço de seu capital. Afinal, o mercado interno brasileiro não cresce, mas o Tesouro paga a mais alta taxa de juro real do planeta sobre títulos de dívida soberana. Esta é a razão forte de que uma economia que não cresce tem seus grandes bancos (inclusive o Banco do Brasil) com elevadíssima rentabilidade e crescimento. O ministro Delfim Netto, em tempos de "esperar o bolo crescer", defendeu com unhas e dentes a tese de que o banco comercial privado brasileiro deveria se converter em um "supermercado financeiro". Hoje nossos bancos são supermercados gigantescos. Intermediam pela tesouraria a metamorfose do caixa das empresas em poupança financeira. Transferem para as tarifas de prestação de serviço a cobertura de todos os seus custos de operação e ganham liquidamente em todas as operações financeiras. Porém, o banco não cumpriu a profecia de Delfim, de que, uma vez gigante, seria conglomerado nacional, financeiro e industrial. Cresceu e manteve a "preferência irrestrita pelo mercado de capitais". Nosso maior banco privado, o Bradesco, está se desligando da forte posição que adquiriu (extremamente barata) da Companhia Vale do Rio Doce para aumentar a capitalização do banco.
O gasto público cresce no Brasil pelo pagamento de juros. Esses juros
(70%), que em 2006 superaram R$ 160 bilhões, vão para pouco mais de vinte mil famílias ricas e muito ricas. À exceção do consumo suntuário que explica o sucesso de uma Daslu e da alta gastronomia, em sua maioria esses recursos retornam ao mercado financeiro, que em última instância apresentam como possibilidade (sempre saborosa) de aplicar em títulos de dívida pública. Juros que migram para a dívida pública, que remunerará com mais juros a dívida ampliada, não engendram dinamismo nem alimentam investimentos produtivos. Combinam medíocre crescimento, concentração de riqueza e torpor produtivo. O gasto público também cresce com pagamentos a funcionários, compra de itens de custeio e políticas públicas tipo Bolsa Família. Isto alimenta um gasto que vai direto via comércio para a economia interna do país. O fato de a Bolsa Família ter crescido no Nordeste foi registrado pelas redes de supermercado da região, que festejaram melhores vendas. A Previdência Social está debilitada. Circunscrita a base salarial, é penalizada pelo crescimento explosivo da informalidade nos contratos de trabalho e estratégias de subsistência que corroem sua receita. Além disso, como é sabido, o Tesouro desvia arrecadação do Confins e do CSLL para o buraco negro do superávit fiscal, que vai todo para pagar juros. Cabe, contudo, não esquecer que a previdência brasileira tem um déficit R$ 42 bilhões, que equivale a apenas 25% dos R$ 160 bilhões pagos de juros. São milhões de idosos trabalhadores rurais aposentados que não contribuíram; são algumas centenas de milhares de portadores de deficiência de famílias pobres e são os que no nível inferior do leque de pensões têm todos os anos alguma melhoria pela elevação do poder de compra do salário mínimo beneficiados pela previdência.
Cabe ao leitor julgar méritos e deméritos dos tipos de gasto público.
Considero que o gasto não financeiro é o mais justo e amplia o mercado interno. Obviamente, pode e deve ser aperfeiçoado, porém recortá-lo produz "apagões". Estamos vivendo o "apagão" aeronáutico. Sem a visibilidade de aeroportos congestionados e em silêncio há um enorme apagão de segurança, transporte público, manutenção rodoviária, funcionamento dos serviços públicos de saúde, qualidade de ensino etc. O atual governo expandiu o gasto público - o Bolsa Família - a partir de uma opção preferencial pelos pobres - consagrada pela Constituição cidadã. Esta opção é meritória e ajuda a economia. Porém, é insuficiente. A opção pela inclusão social somente será possível se houver a multiplicação de empregos de qualidade. Ela supera em grande parte a falta de perspectivas, particularmente assustadora para a juventude. A geração de empregos exige investimento público para desinibir e criar a base articulada dos investimentos privados. A expansão do gasto financeiro do setor público veta o investimento e premia a acumulação financeira.
Carlos Lessa é professor titular de Economia Brasileira do Instituto de
Economia da UFRJ e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) (endereço eletrônico: carlos-lessa@uol.com.br). Escreve mensalmente, às quartas-feiras, no jornal Valor Econômico. Este texto foi publicado no dia 14 de fevereiro de 2007.