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As diferenças que nos constituem e as

perversões que nos diferenciam


The differences which constitute us and the
perversions which differentiate us
Mercês Muribeca1

Palavras-chave
Psicanálise, Perversões Sexuais, Parafilias, Normalidade x Anormalidade.

Resumo
Este artigo percorre o conceito de perversão através de diversos textos freudianos. Dando especial
atenção aos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905), em que Freud tenta desenvolver uma
compreensão da etiologia das perversões, opondo-se à opinião popular acerca da sexualidade em três
pontos básicos: a época do surgimento da pulsão sexual; a natureza necessariamente heterossexual
do objeto e a limitação do objeto sexual à cópula. Nesse momento, Freud trata de definir a perversão
em referência a um processo de negatividade, baseia-se no axioma da neurose como o negativo da
perversão. Posteriormente, insere as perversões, a exemplo das neuroses, como núcleo do complexo
de Édipo para, em 1927, no artigo O Fetichismo, definir a recusa da castração como mecanismo
essencial da perversão; a noção de clivagem do ego é percebida como processo de defesa e a construção
do fetiche como substituto do pênis materno. Por fim, a perversão é uma circunstância da espécie
humana e o arranjo que foi possível ao sujeito em sua luta pela sobrevivência psíquica.

São indeléveis as páginas que o amor ou a dor escrevem


no livro do coração.
S. Albuquerque

INTRODUÇÃO duzindo mudanças radicais na concepção


da sexualidade humana. Este artigo está
Antes de Freud defender a tese da dividido em três partes. Na primeira, dis-
existência de uma sexualidade infantil corre sobre as aberrações sexuais, introdu-
possuidora de seus próprios regulamen- zindo pela primeira vez a palavra pulsão a
tos e características, acreditava-se que as fim de diferenciar a sexualidade humana
crianças eram desprovidas de sexualida- – pulsional – da sexualidade dos animais
de, vivendo inocentemente, distanciadas (instintual), pois, ao contrário da fixidez
de toda ideia, sentimento ou afeto que im- do instinto, a pulsão admite variações em
plicasse cunho sexual. Ao mundo infantil relação ao objeto e ao objetivo sexual. Na
era interditado qualquer tipo de fantasia segunda, expõe as mais variadas formas da
ou prazer sexual. sexualidade infantil, apresentando a matriz
É, portanto, nesse cenário de incre- da teoria da libido. E, na terceira, estuda a
dulidade que Freud, no ano de 1905, pu- puberdade, numa passagem da sexualidade
blica os Três Ensaios Sobre a Teoria da Se- infantil à sexualidade adulta.
xualidade, que, certamente, revoluciona a É importante destacar que, ao longo
compreensão dos fenômenos sexuais, pro- dos anos, os Três Ensaios são submetidos a

1 Doutora em Psicologia (Fundamentos y Desarrollos Psicoanalíticos) – Universidad Autónoma de Madrid –


Espanha. Psicanalista da Sociedade Psicanalítica da Paraíba (SPP).

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várias revisões, pois, na medida em que parciais. Esta ideia está presente no mo-
Freud evoluía em seus conceitos teóricos, delo da progressão da libido. E é com o
acrescentava novas ideias, modificando objetivo de proporcionar uma compreen-
sensivelmente o conteúdo existente em são dos destinos das pulsões sexuais que
sua edição original. Freud formula a noção de zonas erógenas,
Freud abre o primeiro capítulo des- sempre relacionadas com o prazer que
crevendo os processos psicológicos das podem suscitar em determinados órgãos
chamadas aberrações sexuais, através dos do corpo. Assim, ao referir-se à pulsão se-
diversos desvios existentes quanto ao ob- xual, ele adverte que ela está formada por
jeto sexual e quanto à finalidade sexual. inumeráveis componentes, as pulsões par-
Assim, introduz os termos: objeto sexual ciais, ligadas a diferentes partes do corpo,
(pessoa de quem procede a atração sexual) as zonas erógenas.
e alvo sexual (ato a que a pulsão conduz) Portanto, as excitações sexuais es-
aludindo a que frequentemente ocorrem tão localizadas em regiões do corpo, zo-
desvios em relação tanto ao objeto quanto nas erógenas, com pulsões parciais que
ao objetivo sexual. funcionam num estado anárquico, desor-
Vamos nos deter a estudar a primei- ganizado, que caracteriza o autoerotismo.
ra parte desses Ensaios, nos quais Freud O indivíduo encontra prazer no próprio
classifica as perversões em fenômenos de corpo – nos primeiros tempos de vida, a
duas ordens: (a) transgressões anatômicas função sexual está intimamente ligada à
quanto às regiões do corpo destinadas à sobrevivência. O autoerotismo é “o estra-
união sexual; (b) retardamento nas rela- to sexual mais primitivo”, age por conta
ções intermediárias com o objeto sexual. própria e exige apenas sensações locais de
Nesse sentido, poderíamos dizer que as satisfação.
perversões sexuais seriam transgressões Dessa forma, a sexualidade in-
da função sexual tanto na esfera do corpo fantil é tida como polimorfa, porque se
quanto na do objeto sexual. Porém, talvez manifesta em diversos órgãos do corpo
fosse importante ressaltar que não se tra- sem que isso implique uma manifesta-
ta propriamente de uma transgressão da ção patológica. Portanto, a sexualidade
função sexual, que é a de promover o pra- na infância é prazerosa, sob a forma de
zer, mas sim de uma transgressão da lei, estímulos, em diversos pontos do corpo,
convencionada pela civilização, que ele- ou seja, a sexualidade infantil apresen-
geu a procriação como função sublime da ta uma tendência perverso-polimorfa
sexualidade. Pois sabemos que, quando que é autoerótica, mas que não pode
as pessoas fazem sexo, não estão preocu- ser considerada como uma perversão
padas com a perpetuação da espécie, mas sexual propriamente dita. Para Freud,
estão buscando o prazer. a disposição perversa é parte da cons-
Nesse primeiro capítulo dos Três tituição normal de todas as pessoas.
Ensaios, Freud vai dizer que todas essas Nesse sentido, não é uma transgressão:
aberrações ou desvios destroem no adul- passa a ser transgressão na medida em
to a ideia de uma pré-formação, de uma que se preconiza que o sexo deve estar
finalidade, porque o objetivo atribuível a inscrito em rituais (casamento) e deve
esses atos sexuais não visa a um fim bioló- ter como objetivo a procriação (moral
gico de procriar, mas sim ao prazer. judaico-cristã), e, nesse sentido, a per-
Nos Três Ensaios, é possível consi- versão passa a ser transgressão porque
derar que a pulsão sexual se manifesta na vai contra a lei, a regra estabelecida
busca da satisfação em diversos objetos como normalidade.

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ENTENDENDO O CONCEITO DE a fazem procurar sua satisfação não numa


PERVERSÃO atividade especifica, mas no ganho de pra-
zer ligado a funções ou atividades que de-
Em Fragmentos da análise de um pendem de outras pulsões.
caso de histeria (1905[1974], p. 53),
Freud pôde dizer que: “Na vida sexual de Em Vida e Morte em Psicanálise, La-
cada um de nós, ora aqui, ora ali, todos planche (1985) lembra que Freud, nos Três
transgredimos um pouquinho os estrei- Ensaios, descreve a pulsão por excelência,
tos limites do que se considera normal”. que é a pulsão sexual. É a sexualidade que
Assim, originalmente, a perversão representa o modelo de toda pulsão e é,
está relacionada à sexualidade, pois diz provavelmente, a única pulsão propria-
respeito a práticas sexuais que extrapolam mente dita. É bom ressaltar que a sexua-
o objetivo do coito. Nesses casos, o orgas- lidade humana é sempre uma psicossexu-
mo é obtido através de práticas ou objetos alidade. Ou seja, o ser humano, como ser
desviantes do normal, sendo as perver- desejante, atribui sentido ao sexo e sub-
sões o resultado do desenvolvimento da verte a natureza, que impõe padrões fixos
pulsão sexual em zonas erógenas distintas para o sexo dos animais, possibilitando
dos genitais. vários destinos para a pulsão e tornando a
Em Vocabulário da Psicanálise, La- sua satisfação uma escolha tanto em rela-
planche e Pontalis (1992, p. 341) definem ção ao objeto, quanto ao próprio objetivo
perversão como sendo o: pulsional.
Freud, em sua 21ª conferência, O
Desvio em relação ao ato sexual normal, desenvolvimento da libido e as organiza-
definido este como coito que visa a obten- ções sexuais (1933[1974], p. 376), enfatiza
ção do orgasmo por penetração genital, que:
com uma pessoa do sexo oposto. Diz-se
haver perversão: onde o orgasmo é alcan- O que torna a atividade dos pervertidos tão
çado com outros objetos sexuais ou através inconfundivelmente sexual, por mais estra-
de outras regiões do corpo onde o orgasmo nhos que sejam seus objetos e fins, é o fato
acha-se totalmente subordinado a certas de, via de regra, um ato de satisfação per-
condições extrínsecas, que podem mesmo vertida ainda assim terminar em orgasmo
ser suficientes, em si mesmas, para oca- completo e emissão de produtos genitais.
sionar prazer sexual. Num sentido mais
abrangente, perversão tem a conotação da Em uma passagem dos Três Ensaios
totalidade do comportamento psicossexu- (1905[1974], p. 151), Freud confessa que,
al que acompanha tais meios atípicos de às vezes, nas mais variáveis formas de per-
obter-se prazer sexual. versões, a qualidade do novo alvo sexual é
de tal ordem que requer uma apreciação
Corroborando o pensamento freu- especial. Vejamos o que ele disse a esse
diano, os autores do Vocabulário (p. 342) respeito:
afirmam que, em psicanálise, só se deve
falar de perversão a respeito da sexualida- Algumas delas afastam-se tanto do normal
de quando definem: em seu conteúdo que não podemos deixar
de declará-las “patológicas”, sobretudo nos
[...] a sexualidade humana como sendo, no casos em que a pulsão sexual realiza obras
fundo, perversa, na medida em que nunca assombrosas (lamber excrementos, abusar
se desliga inteiramente de suas origens, que de cadáveres) na superação das resistências

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(vergonha, asco, horror ou dor). Nem mes- da Saúde (OMS) e em 1987 o termo perver-
mo nesses casos, porém, pode-se ter uma são desaparece da terminologia psiquiátrica
expectativa certeira de que em seus auto- mundial e é substituído pelo termo parafi-
res se revelem regularmente pessoas com lia, que não inclui mais a homossexualida-
outras anormalidades graves ou doentes de. De sorte que o termo parafilia substitui
mentais. Tampouco nesses casos pode-se a idéia de perversão sexual na literatura mé-
passar por cima do fato de que pessoas dico – psiquiátrica na década de 80.
cuja conduta é normal em outros aspectos Em 23 de março de 1999, o Conse-
colocam-se como doentes apenas no cam- lho Federal de Psicologia (CEF) edita a re-
po da vida sexual, sob o domínio da mais solução de número 1/99, a qual declara no
irrefreável de todas as pulsões. Por outro Art. 3º que: “Os psicólogos não exercerão
lado, a anormalidade manifesta nas outras qualquer ação que favoreça patologização
relações da vida costuma mostrar inva- de comportamentos ou práticas homoe-
riavelmente um fundo de conduta sexual róticas, nem adotarão ação coercitiva ten-
anormal. dente a orientar homossexuais para trata-
mentos não solicitados”, reconsiderando
Ainda nos Três Ensaios de 1905, ele que “a homossexualidade não constitui
usa o termo inversão sexual para falar a doença, nem distúrbio e nem perversão
respeito dos homossexuais, incluindo-os e que os psicólogos não colaborarão com
dentro do quadro das perversões. Assim, eventos e serviços que proponham trata-
quando fala dos invertidos, classifica-os mento e cura das homossexualidades”.
como: absolutos (quando o objeto sexual Em consulta ao Manual Diagnós-
é do mesmo sexo); anfígenos ou hermafro- tico e Estatístico de Transtornos Mentais
ditas sexuais (quando o objeto sexual per- (DSM IV), encontramos que as parafilias
tence a ambos os sexos). Explica que al- (gosto pelo acessório) são caracterizadas
guns invertidos convivem pacificamente por anseios, fantasias ou comportamen-
com a inversão, enquanto outros a sentem tos sexuais recorrentes e intensos que en-
como uma compulsão patológica, haven- volvem objetos, atividades ou situações
do casos em que a libido se altera no senti- incomuns e causam sofrimento ou pre-
do da inversão após haver sido submetida juízo na vida do indivíduo. Certas fan-
a uma experiência dolorosa com o objeto tasias e comportamentos associados com
sexual normal. A expressão homossexua- parafilias podem iniciar na infância ou
lidade só será utilizada por Freud em seus nos primeiros anos da adolescência, mas
acréscimos a partir de 1910. tornam-se mais definidos e elaborados
Roudinesco e Plon, em Dicionário durante a adolescência e início da idade
de Psicanálise (1998), comentam que no adulta. Os transtornos tendem a ser crô-
século XIX a homossexualidade havia sido nicos e vitalícios, mas tanto as fantasias
classificada como uma degenerescência quanto os comportamentos frequente-
pelo saber psiquiátrico, mas acabou sendo mente diminuem com o avanço da idade
reconhecida, em 1974, como uma forma de em adultos.
sexualidade entre outras. Neste ano, a Ame-
rican Psychiatric Association (APA) risca a VISITANDO ALGUMAS PARAFILIAS
homossexualidade da lista de doenças men-
tais. Ainda nessa mesma época, o termo ho- As principais parafilias, segundo o
mossexualidade também é retirado da Clas- DSM-IV, são: exibicionismo (exposição
sificação Internacional de Doenças (CID), dos genitais), fetichismo (uso de objetos
livro elaborado pela Organização Mundial inanimados), frotteurismo (tocar e es-

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fregar-se em uma pessoa sem o seu con- com racionalizações de que possuem “va-
sentimento), pedofilia (foco em crianças lor educativo” para a criança, ou de que
pré-púberes), masoquismo sexual (ser esta obtém “prazer sexual” com os atos
humilhado ou sofrer), sadismo sexual praticados. Enquanto a pedofilia envol-
(infligir humilhação ou sofrimento), feti- ve atividades sexuais com crianças pré-
chismo transvéstico (vestir-se com roupas púberes de ambos os sexos, a pederastia
do sexo oposto) e voyeurismo (observar é o contato sexual entre um homem de
atividades sexuais). idade e um rapaz bem jovem (adolescen-
Entre as parafilias sem outra espe- tes masculinos).
cificação, localizamos: zoofilia (ato sexual O exibicionismo é uma forma de
com animais); necrofilia (cadáveres); esca- excitação erótica que envolve a exposi-
tologia telefônica (telefonemas obscenos); ção dos próprios genitais a um estranho
parcialismo (foco exclusivo em uma parte a fim de excitar-se sexualmente. Às vezes,
do corpo); coprofilia ou excrementofília o indivíduo pode se masturbar durante a
(obtenção de prazer durante a evacua- exposição para, casualmente, atingir o or-
ção das fezes ou com a sua manipulação); gasmo. Geralmente, não existe qualquer
clismafília (prazer obtido com a aplica- tentativa de atividade sexual com o estra-
ção de líquidos dentro do reto, através do nho. A excitação provém da exposição do
ânus ou introdução de objetos estranhos); corpo, ou parte dele, para um outro.
urofilia (prazer e excitação sexual obtido O voyeurismo envolve o ato de
com o contato pelo corpo ou ingestão de olhar indivíduos, comumente estranhos,
urina); cunilíngua (ato de praticar sexo sem suspeitar que estejam sendo observa-
oral aplicando a língua na vúlva e/ou cli- dos, que estão nus, a se despirem ou em
tóris); felação (sexo oral feito no genital atividade sexual. O ato de observar serve
masculino); anilíngua ou anilingus (sig- à finalidade de obter excitação sexual, e
nifica literalmente o intercurso da língua habitualmente não é tentada qualquer ati-
de alguém com o ânus de outrem); den- vidade sexual com a pessoa observada.
drofília (relação sexual com plantas ou Freud, nos Três Ensaios (1905-
frutas); acrotomofilia (preferência sexual 1974], p. 147), comenta que:
por pessoas que tenham alguma parte de
seus corpos amputada); erotofonofilia (a (...) o prazer de ver (escopofilia) transfor-
excitação ocorre com a possibilidade de ma-se em perversão: (a) quando se restrin-
matar o companheiro, coincidindo essa ge exclusivamente à genitália; (b) quando
morte com o próprio orgasmo); geronto- se liga à superação do asco (o voyeur – es-
fília (atração sexual por pessoas idosas) pectador das funções excretórias); ou (c)
entre muitos outros. Procuraremos anali- quando suplanta o alvo sexual normal, em
sar alguns desses focos parafílicos. vez de ser preparatório a ele.
A pedofilia, por exemplo, é carac-
terizada por um forte desejo alimenta- Assim, tanto na escopofilia quanto
do por fantasias e práticas sexuais com no exibicionismo, o olho corresponde a
crianças pré-púberes. Alguns pedófilos uma zona erógena; no caso da dor e da
limitam suas atividades a despir e obser- crueldade como componentes da pulsão
var a criança exibir-se, masturbar-se ou sexual, é a pele que assume esse mesmo
tocá-la. Outros realizam felação, pene- papel. A pele, que em determinadas par-
tração da vagina, boca ou ânus da crian- tes do corpo se diferenciou nos órgãos
ça com seus dedos, objetos estranhos ou sensoriais e se transmudou em mucosa, é
pênis. Essas atividades são explicadas assim a zona erógena por excelência.

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UM DESTAQUE AO SADISMO E AO Freud, nos Três Ensaios (1905-1974],


MASOQUISMO p. 148), define o masoquismo como aqui-
lo que:
No masoquismo sexual, encontra-
mos o ato de ser humilhado, espanca- [...] abrange todas as atitudes passivas pe-
do, atado ou submetido a qualquer tipo rante a vida sexual e o objeto sexual, a mais
de sofrimento. O transvestismo força- extrema das quais parece ser o condiciona-
do pode ser buscado por sua associa- mento da satisfação ao padecimento de dor
ção com a humilhação. É a humilhação física ou anímica advinda do objeto sexual.
de ser forçado a vestir roupas do sexo [...] É freqüente poder-se reconhecer que o
oposto, não as roupas em si, o foco da masoquismo não é outra coisa senão uma
excitação sexual. O indivíduo pode ter continuação do sadismo que se volta con-
um desejo de ser tratado como um bebê tra a própria pessoa....
indefeso e de usar fraldas (infantilismo).
Uma forma particularmente perigosa de Mais adiante, depois da formulação
masoquismo é a asfixiofilia ou hipoxifi- da pulsão de morte em Além do principio
lia, na qual a pessoa tenta intensificar o do prazer (1920), Freud reformula essa
estímulo sexual pela privação de oxigê- ideia e postula um masoquismo original,
nio. Essa excitação sexual pela privação anterior ao sadismo. Já em Uma Criança é
de oxigênio pode ser obtida por meio de Espancada (1919 a), ele conclui, por uma
compressão torácica, garrotes, ataduras, operação lógica, que há uma fantasia ori-
sufocação com saco plástico, máscara ginal, ou fundamental, e recalcada, que
ou substância química, podendo ocor- é masoquista e que serve de base para as
rer mortes acidentais. outras duas etapas de desenvolvimento
Já o sadismo sexual consiste em da fantasia de espancamento. Percebe o
praticar atos nos quais o indivíduo deriva estreito vínculo entre as tendências maso-
excitação sexual do sofrimento psicológi- quistas e a sexualidade, tomando em con-
co ou físico da vítima. Atua segundo seus ta os efeitos erógenos da dor.
anseios sexuais sádicos com um parceiro Nesse sentido, Freud faz do par sa-
que consente ou não em sofrer dor ou dismo/masoquismo a expressão mais elo-
humilhação. As fantasias ou atos sádicos quente da erotização da pulsão de morte,
podem envolver atividades como: atar, ou seja, a fusão das duas pulsões. A ero-
espancar, chicotear, queimar, adminis- tização da dor entra nessa fusão e muito
trar choques elétricos, estuprar, esfaquear, provavelmente o perverso, atento a um
estrangular, torturar, mutilar ou mesmo prazer determinado, pode confundir o
matar suas vítimas. desejo com a dor.
Sadismo e masoquismo ocupam Em Uma Criança é Espancada, Freud
entre as perversões um lugar especial, já descreve que as fantasias de espancamento
que o contraste entre atividade e passi- surgem nas causas acidentais da primitiva
vidade que jaz em sua base pertence às infância e permanecem intencionalmen-
características universais da vida sexual. te retidas com o propósito de obter uma
E, portanto, da subjetividade de qualquer satisfação autoerótica, podendo ser con-
sujeito, pois a pulsão de morte refere-se siderada como um traço primário de per-
fundamentalmente à morte do próprio versão. Assim, a perversão não é um fato
sujeito, da sua própria matéria e apenas isolado na vida sexual da criança, senão
indiretamente se expressa em agressão ao todo o contrário, ela encontra lugar entre
outro. os processos típicos de desenvolvimento,

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para não dizer normais. A perversão in- Lembramos que Laplanche, em


fantil pode ainda vir a tornar-se base para Vida e Morte em Psicanálise (1985), anali-
a elaboração de uma perversão que tenha sando a questão da agressividade e do sa-
um sentido similar e que persista por toda domasoquismo, revela que antes de 1920
a vida e consuma toda a sexualidade do a pulsão de agressão não aparecia nos tex-
indivíduo. tos de Freud, assim como o termo agres-
Essa fantasia de espancamento, sividade estava marcadamente ausente.
como fantasia fundamental de todo indi- Explica que agressividade não é o mesmo
víduo, que pode estar colocado na posi- que sadismo, portanto pesa a diferença de
ção passiva, masoquista, ou ativa, sádica que na agressividade não há componentes
(na posição de sujeito ou de objeto) seria sexuais, enquanto no sadismo e no maso-
considerada o alicerce de toda fantasia quismo existem claramente componentes
subjetiva, e não apenas dos perversos. sexuais. Um filme coreano que relata bem
Na origem, somos perversos, e o comple- essa relação amorosa patológica de sado-
xo de Édipo é que vai, em sua função de masoquismo é Mentiras (LIES, 1999), do
normatização, de introdução da norma, diretor Jang Sun Woo, vetado na Coreia
da lei, fazer recalcar ou não essas pulsões, por ser considerado um filme de alto teor
tornando o indivíduo neurótico, ou não, pornográfico.
dependendo da eficácia da incidência da Laplanche (1985) esclarece que a
norma imposta pela triangulação edípica. questão do sadismo e do masoquismo,
Neste artigo, a transformação do assim como das pulsões que os movem,
sadismo em masoquismo se dá através inquieta o pensamento de Freud de tal
da influência do sentimento de culpa que maneira, que, em 1920, em Além do prin-
participa do ato do recalque. Este senti- cipio do prazer, propõe a existência de um
mento de culpa se relaciona com a mas- masoquismo primário, com a intenção de
turbação da primitiva infância e tem sua introduzir a pulsão de morte. Esta nova
raiz calcada no Complexo de Édipo. De tese é confirmada em 1924 com O proble-
tal maneira que a origem das perversões ma econômico do masoquismo, quando a
infantis, de uma forma geral, seria pro- existência desse masoquismo primário é
vinda do complexo de Édipo. tida como certa. Assim, antes de 1920, o
A esse respeito, Freud (1905[1974], sadismo engendra o masoquismo, para só
p. 149) sustenta que: depois de 1920, o sadismo ser engendra-
do pelo masoquismo primário.
A particularidade mais notável dessa per- Portanto, em Uma Criança é Espan-
versão reside (...) em que suas formas ativa cada (1919) e em Além do princÍpio do
e passiva costumam encontrar-se juntas prazer (1920), surgem duas ideias que são
numa mesma pessoa. Quem sente prazer desenvolvidas de forma mais completa
em provocar dor no outro na relação se- em O problema econômico do masoquismo
xual é também capaz de gozar, com pra- (1924), que são: as enigmáticas tendên-
zer, de qualquer dor que possa extrair das cias masoquistas do ego e a ideia de que
relações sexuais. O sádico é sempre e ao poderia existir um masoquismo primário.
mesmo tempo um masoquista, ainda que o Então, a questão do sadismo para Freud
aspecto ativo ou passivo da perversão pos- é posterior ao masoquismo primário. Ele
sa ter-se desenvolvido nele com maior in- pensa que, provavelmente, o prazer desta
tensidade e represente sua atividade sexual perversão sexual está em castigar um de-
predominante. sejo edípico.

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OUTRO FOCO PARAFILICO: O Na consciência, o sujeito reconhece que a


FETICHISMO mulher não tem pênis e, no entanto, não
tem angústia de castração consciente, não
Transportando-nos ao foco para- pensa conscientemente na castração; no
fílico do fetichismo, encontramos o uso inconsciente, em troca, crê na castração
de objetos fetiches, tais como: calcinhas, e, ao mesmo tempo, a renega mediante a
meias, sapatos ou outras peças do vestuá- equação fetiche-falo.
rio feminino. O fetichista frequentemente
se masturba, enquanto segura, esfrega ou Roudinesco e Plom (1998) destacam
cheira o objeto do fetiche, ou pede que que, de 1905 a 1927, Freud passou de uma
seu parceiro use-o durante seus encontros descrição das perversões sexuais para uma
sexuais. teorização do mecanismo geral da perversão
Freud, em seu artigo O Estranho que já não era apenas o resultado de uma
(1919 b) e em A cabeça de Medusa, escri- predisposição polimorfa da sexualidade
to em 1922 e publicado em 1940, observa infantil, mas a consequência de uma
que a cabeça decapitada de Medusa sim- atitude do sujeito humano confrontado
boliza o efeito aterrorizante dos genitais com a diferença sexual. Também apontam
castrados da mulher, tendo o cuidado de a relevância do papel de Lacan em retirar
explicar que isso não ocorre com qualquer a perversão do registro das aberrações
mulher, mas tão somente com os genitais sexuais para apresentá-la como uma
da mãe. É, precisamente, com o objeto estrutura. Nesse sentido, Lacan entendia
fetiche que o perverso obtura a noção da a perversão como um componente do
falta de pênis na mulher. funcionamento psíquico do homem, sendo
O que caracteriza a perversão para que a estrutura perversa “se caracterizaria
Freud é a presença de uma organização pelo anseio do sujeito de transformar-se
psíquica baseada na recusa (Verleugnung). em objeto de gozo”.
Em 1927, com Fetichismo, ele defende a Assim, do ponto de vista estrutural,
tese de que o fetiche é o substituto do pê- na perversão existe um mecanismo de
nis da mãe, ligando-o à recusa da castra- renegação, recusa, desmentido (Verleug-
ção, isso porque o fetichista é aquele que nung). O conflito se dá na cisão interna do
nada quer saber daquilo que vê. Tornam- ego, que em parte recusa e em parte reco-
se, tanto a renegação como a afirmação da nhece a realidade. Na neurose, prevalecerá
castração, elementos chave na constituição o recalque (Verdrängung). O conflito é en-
do fetiche. Portanto, o perverso reconhece tre o Ego e o Id. Os sintomas são: histeria,
a castração, mas não a aceita. neurose obsessiva, fobias. Na psicose, o
A respeito dessa renegação, Hugo mecanismo é o da forclusão (Verwerfung),
Bleichmar (1984, p. 77), em Introdução ao ou seja, há uma rejeição (Verwergung) da
Estudo das Perversões, enfatiza: percepção da realidade. O conflito se dá
entre o Ego e o mundo externo. Nesse as-
O fetiche, que, para a consciência, é um ob- pecto, de acordo com Ferraz (2000), na
jeto de prazer, de amor – sem que se saiba psicose, a maior parte do ego desliga-se
por quê – para o inconsciente representa da realidade, mesmo que, em um canto
o falo; ou seja, no inconsciente a equa- recôndito, ele mantenha o vínculo com
ção fetiche-falo permite manter a crença ela. Já no perverso, a coexistência de duas
de que a mãe tem falo e renegar, assim, a atitudes opostas em relação à castração,
castração; no inconsciente, a castração, durante toda a sua existência, seria a ca-
simultaneamente, existe e não existe. [...] racterística marcante.

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As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam

Ainda segundo Ferraz (2000), o choram, (Boys Don’t Cry, 1999) do diretor
sintoma perverso, como todo e qualquer Kimberly Peirce, um filme que, seguin-
outro sintoma – neurótico, psicótico, psi- do as ideias expostas no livro Cambiar
cossomático ou psicopático –, por mais de sexo, expõe a vida de um transexual
que nos impressione ou até mesmo cause feminino-masculino.
incômodo, constitui sempre o arranjo que Confrontando a homossexualida-
foi possível ao sujeito em sua luta pela so- de com o transexualismo, Bonnet (1992)
brevivência psíquica. reforça que na homossexualidade há
O fetichismo transvéstico envolve o uma repugnância pelo sexo oposto, que
ato de vestir-se com roupas do sexo opos- conduz a uma rejeição definitiva e radi-
to, mantendo uma coleção de roupas fe- cal; enquanto no transexualismo há uma
mininas, que usa intermitentemente. Em repugnância por seu próprio sexo, que
geral se masturba, imaginando-se tanto conduz a uma mutilação irreversível.
como o sujeito masculino quanto como o Freud, em sua 21ª conferência, O de-
objeto feminino de sua fantasia sexual. senvolvimento da libido e as organizações
Nos Três Ensaios (1905), quando sexuais (1933[1974], p. 375), assegura que
Freud aborda a doutrina da bissexualida- se as perversões forem descritas como:
de, menciona que ela foi expressa em sua
forma mais crua por um porta-voz dos [...] indicações de degeneração, ou o que
invertidos masculinos quando confiden- quer que seja ninguém ainda teve a cora-
ciou ter um cérebro feminino num corpo gem de classificá-las como algo que não se-
masculino. jam fenômenos da vida sexual. Apenas em
Certamente, esse é um dos maiores virtude delas justifica-se afirmarmos que
dramas vividos por aqueles que sofrem sexualidade e reprodução não coincidem,
de transtorno de identidade de gênero. O pois é óbvio que todas as perversões negam
transexual é uma pessoa que repudia seu o objetivo da reprodução.
sexo anatômico e está decidido a mudá-lo.
É um homem que se sente mulher, injus- Freud trata, então, de definir a per-
tamente envolto em um corpo de homem versão em referência a um processo de ne-
e deseja eliminar seus órgãos genitais para gatividade e numa relação dialética com a
converter-se em mulher; ou é uma mulher neurose. Em 24 de janeiro de 1897, numa
que deseja adquirir genitais masculinos carta a Fliess, em Fragmentos da análise
e viver como homem. Ambos solicitam de um caso de histeria (1905[1901]) e, em
mudar sua identidade sexual mediante in- seguida, nos Três Ensaios (1905[1974], p.
tervenção cirúrgica. Repugnam-lhes seus 155), ele faz da neurose o negativo da per-
próprios órgãos sexuais, preferem vestir e versão quando afirma que: “os sintomas
portar-se como o outro sexo e não se con- se formam, em parte, às expensas da se-
sideram homossexuais. xualidade anormal; a neurose é, por assim
Colette Chiland (1999, p. 220), que dizer, o negativo da perversão”.
desenvolve um rico trabalho sobre o tran- Com isso sublinha o caráter selva-
sexualismo em seu livro Cambiar de sexo, gem, polimorfo e pulsional da sexuali-
coloca que: “o transexual nega que pade- dade perversa: uma sexualidade infantil
ce um transtorno psíquico, somente sofre em estado bruto, cuja libido se restringe
de um erro da natureza que não lhe deu o à pulsão parcial. De forma que a célebre
corpo apropriado ao que se sente ser”. frase de Freud quer dizer que, mesmo que
A respeito de como se sente o tran- existam muitos componentes parciais da
sexual, vale a pena assistir Meninos não pulsão sexual, eles não podem ser consi-

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As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam

derados como perversões da sexualidade. seres humanos (1917[1974], p. 369), veri-


A tendência neurótica é a manutenção de fica que:
alguns desses componentes, substituindo, Esta semelhança, contudo, é eviden-
assim, uma possível fixação numa única te: se de fato uma criança tem vida sexual,
prática sexual. Considerando estes fato- esta não pode ser senão uma vida sexual
res, se pode dizer que as fantasias incons- de tipo pervertido; pois, exceto quanto a
cientes dos neuróticos se assemelham às alguns detalhes obscuros, as crianças são
atitudes conscientes das pessoas perver- desprovidas daquilo que transforma a
sas, ou seja, uma é o negativo da outra. sexualidade em função reprodutiva. Por
Portanto, o neurótico fantasia aquilo que outro lado, o abandono da função repro-
o perverso pratica. dutiva é o aspecto comum de todas as
Em Fragmentos da análise de um perversões. Realmente consideramos per-
caso de histeria (1905[1974], p. 54), de- vertida uma atividade sexual, quando foi
fende que: abandonando o objetivo da reprodução
e permanece a obtenção de prazer, como
Todos os psiconeuróticos são pessoas de objetivo independente.
inclinações perversas fortemente acentua-
das, mas recalcadas e tornadas inconscien- ELUCUBRAÇÕES FINAIS
tes no curso de seu desenvolvimento. Por
isso suas fantasias inconscientes exibem O perverso, então, seria aquele
um conteúdo idêntico ao das ações docu- que se empenha em destruir a lei, para
mentadas nos perversos. depois reconhecer dolorosamente que
ela é permanente? Poderíamos pensar
Em Moral sexual civilizada e doença que o perverso seria alguém empenha-
nervosa moderna (1908), explica que de- do em distorcer, mesclar, triturar, lique-
fine as neuroses como o negativo das per- fazer, metamorfosear, de tal maneira
versões porque nas neuroses os impulsos a origem das coisas, que, ao final desse
pervertidos, após terem sido reprimidos, processo caótico, nada mais pudesse ser
manifestam-se a partir da parte incons- distinguido?
ciente da mente, e mais, porque as neuro- Seria, então, o perverso uma espé-
ses contêm as mesmas tendências, ainda cie de feiticeiro da realidade? Realidade
que em estado de repressão, das perver- que ele não tolera e, por carregar consi-
sões positivas. go o germe da onipotência infantil, tenta
Em Cinco lições de psicanálise (1910 alterá-la construindo um mundo indife-
[1974], p. 43), mais especificamente na renciado, onde ele e a mãe são unos, todos
quarta lição, Freud assevera que: os poderes emanam dele e a realidade é
aquilo que ele fabrica?
As neuroses são para as perversões o que Pois bem, não é qualquer realida-
o negativo é para o positivo. Como nas de que o perverso não tolera, ele distorce
perversões, evidenciam-se nelas os mes- tudo aquilo que pode confrontá-lo com a
mos componentes instintivos que man- castração, por causa da própria angústia
têm os complexos e são os formadores de de castração.
sintomas. Se a perversão está claramente de-
lineada como uma condição intrínseca à
E ao falar da semelhança entre ativi- sexualidade humana, existiria perversão
dade sexual infantil e perversões sexuais, em termos de patologia? O que Freud res-
em sua 20ª conferência, A vida sexual dos salta como patológico e aberração incon-

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As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam

testável no que se refere à sexualidade, é os dramas e as tragédias da angústia hu-


a utilização de pessoas sexualmente ima- mana. Seu pensamento irrequieto se re-
turas (crianças) e criaturas indefesas (ani- flete em seus escritos deixando sempre
mais), como objetos sexuais. Os desvios um movimento interno de inquietude em
perversos, típicos da sexualidade huma- quem acompanha a leitura de sua cons-
na, poderiam ser considerados como sin- trução teórica. Nesse sentido, almejamos
toma patológico a partir do momento em que nossos estudos nos impulsionem
que se configurassem como fixação, ou sempre a seguir buscando esse saber que
seja, o indivíduo passa a apresentar uma não se esgota nunca.
limitação do prazer à determinada práti-
ca perversa, ocorrendo a substituição das Keywords
práticas normais. Psychoanalysis; sexual perversions; paraphilia;
Joyce McDougall (1997) corrobo- normality versus abnormality.
ra este pensamento de Freud e designa o
rótulo de perverso para aquele indivíduo Abstract
totalmente indiferente às necessidades e This article covers the concept of perversion
desejos do outro. through various Freudian texts. It pays particu-
As perversões, como sintomas psi- lar attention to the Three Essays on the Theory of
cológicos, devem possuir um sentido, um Sexuality (1905) where Freud tries to develop an
significado para o indivíduo. Para ela, understanding of the etiology of the perversions,
a prática sexual considerada patológica as opposed to popular opinion about sexuality,
representa não somente uma solução a in three basic points: the time of onset of sexual
fim de evitar sofrimentos psíquicos insu- drive, the necessarily heterosexual nature of the
portáveis – uma forma de sobrevivência object, and the limitation of the sexual object to
psíquica –, mas constituem também uma copulate. At this point Freud tries to define the
tentativa de construir um sentimento de perversion in reference to a negativity process,
identidade sexual. Poderíamos pensar que based on the axiom of the neurosis as the nega-
a identidade sexual de cada ser humano tive of the perversion. Thereafter he inserts the
é construída na história de suas relações perversions, such as the neuroses, as the core of
objetais, por meio de um processo emi- the Oedipus complex. In 1927 he defines, in the
nentemente psíquico. Por fim, McDou- article The Fetishism, the refusal of castration as
gall utiliza a expressão neossexualidade, a key mechanism of perversion, the concept of
em vez de perversão, para explicar essas cleavage of the ego in a process of defense, and
novas formas de organizações psíquicas the construction of the fetish as a substitute for
inovadoras, resultantes de intensos inves- the maternal penis. Finally, the perversion is a
timentos libidinais. circumstance of the human species, and the ar-
Recentemente, Roudinesco (2008, rangement that was possible to the subject, and
p. 13) afirmou que “os perversos são uma his struggle for mental survival.
parte de nós mesmos, uma parte de nossa
humanidade, pois exibem o que não cessa-
mos de dissimular: nossa própria negati- Referências
vidade, a parte obscura de nós mesmos”.
Muitas coisas ainda devem ser di-
tas sobre o funcionamento do psiquismo ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIA-
humano. Freud, em suas elaborações te- TRIA. Manual Diagnóstico e Estatístico de Trans-
óricas, sustentava que o psiquismo era o tornos Mentais – DSM IV. São Paulo : Ed. Artes
palco, por excelência, onde se encenavam Médicas, 1996.

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Fone : (83) 3042 4782
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