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De todas essas maá quinas de levantar aá gua a que mais me fascinou, desde o começo, foi o
Parafuso. Naã o se trata, poreá m, de um parafuso, comum. Naã o que um parafuso, comum,
naã o seja tambeá m muito interessante. Girando, girando, vai perfurando com sua espiral
cortante, tirando da frente e abrindo caminho ateá juntar. Mas ele, por si soá , naã o eá uma
maá quina, muito menos capaz de fazer a aá gua subir. Para evitar a confusaã o, alguns
vinculam seu nome ao seu provaá vel inventor, o famosíássimo matemaá tico grego
Arquimedes. Aíá ficaria Parafuso de Arquimedes que aleá m de aumentar a precisaã o jaá daá
indíácios de sua importaâ ncia. Outra variaçaã o o nome associado ao elemento em questaã o,
Parafuso de AÁ gua. Nesse caso, temos uma pista da funçaã o da maá quina que, embora naã o
fique clara, passa a ser imaginada graças a curiosidade que o nome desperta. Ele jaá foi
ainda associado aà elementos da natureza com os quais a forma do dispositivo se parece,
recebendo entaã o um caraá ter metafoá rico capaz de ampliar mais ainda a imaginaçaã o em
torno da maá quina.
Do modo a simplificar, no entanto, a chamarei aqui apenas de Parafuso. Mais curto, sem
sobrenomes, mas com letra maiuá scula, para naã o confundirmos com o parafuso, comum,
que apesar de tambeá m muito relevante naã o constitui o nosso foco. Aleá m da terminologia
curiosa, muitos outros fatores me intrigaram no Parafuso: o fato de ter sido inventado haá
muito, realmente muito tempo, e ser usado ateá os dias de hoje; a imprecisaã o da sua
origem; a simplicidade de sua execuçaã o; o seu desenho e, sobretudo, a maneira como,
num passe de maá gica, a aá gua sobe por dentro de uma espeá cie de cilindro de heá lices em
movimento.
Com o intuito de compreender o tal passe de maá gica, procurei analisar o Parafuso
atraveá s de diferentes perspectivas. Aleá m de uma pesquisa histoá rica, iconograá fica, teoá rica,
optei por realizar alguns experimentos praá ticos. Quando a uá nica explicaçaã o plausíável que
conseguimos imaginar para o funcionamento de uma maá quina eá um passe de maá gica,
por mais que a intuiçaã o aponte alguns caminhos mais aceitaá veis na tentativa de
reproduzir o efeito, eá difíácil barramos a tentaçaã o de realizar provas um tanto absurdas.
Quem sabe a maá gica se aplica. Por isso, apesar de um pouco vergonhoso assumo que a
primeira prova realizada foi usar um parafuso, normal, e um pequeno recipiente com
aá gua. Embora a inclinaçaã o do parafuso parecesse adequada, a aá gua simplesmente naã o se
elevava a medida que a peça era rotacionada lentamente. E, na verdade, eá oá bvio que naã o.
Nem o mais absurdo passe de maá gica funciona de maneira taã o absurda. Com um pouco
mais de pacieâ ncia, cuidado e atençaã o, foi realizado o segundo experimento. Dessa vez
tratava-se de uma variaçaã o da maá quina, que utiliza o mesmo princíápio. Uma pequena
mangueira deve ser enrolada em torno de um cilindro que por sua vez deve ser
posicionado sobre um reservatoá rio de aá gua, com uma certa inclinaçaã o, garantindo-se
que a ponta da mangueira fique parcialmente submersa. Quando o cilindro eá
rotacionado a aá gua entra pela ponta da mangueira e segue o caminho ateá o extremidade
oposta que, no caso, estaá mais elevada. E como num passe de maá gica, a aá gua sobe!
Li em certa ocasiaã o que a mecaâ nica eá apenas a geometria vivificada, (A) e toda vez que
penso nessa frase naã o posso deixar de imaginar desenhos preenchendo folhas e mais
folhas amareladas dos estudos de Arquimedes sobre as espirais criando vida, girando,
girando ainda no papel ateá que num movimento incontrolaá vel o desenho ganha a
terceira dimensaã o e sem parar de girar um soá segundo se transforma numa maá quina, na
nossa maá quina. Ora, se refletirmos ainda sobre a frase em que Leonardo da Vinci dizia
que “a mecaâ nica eá o paraíáso das cieâ ncias matemaá ticas porque, com ela, colhemos o fruto
da matemaá tica” (C), poderíáamos crer que ao cultivar sua geometria com o maior afinco,
Arquimedes colheu frutos surpreendentes com seus desenhos rodopiantes e
possivelmente o Parafuso talvez tenha sido um deles.
Nos aproximando entaã o da matemaá tica e da raiz de nosso fruto a magia do Parafuso
ganhou uma nova linguagem. AÀ procura de desvendar o misteá rio e se aproximar mais
dele eá como se nos deparaá ssemos com uma histoá ria contada em outra líángua, com novos
personagens e explicaçoã es de como cada um deles, de fato, se relaciona com o outro. Li
essa histoá ria contada na líángua matemaá tica (R) em uma anaá lise de otimizaçaã o do
Parafuso, que disseca a maá quina, nomeando suas diferentes partes e entendendo quais
saã o seus paraâ metros geomeá tricos. Embora o foco do estudo seja muito preciso e
objetivo, cada paraâ metro, cada variaá vel, cada equaçaã o, parece agregar ainda mais
alquimia aà histoá ria do Parafuso. De repente, suas partes viram letras, incoá gnitas que se
relacionam e revelam, sob a luz de uma escrita de novos síámbolos, pouco a pouco, a açaã o
que acontece na maá quina.
Fora algumas duá vidas acerca da maneira como o Parafuso era acionado (uma vez que o
sistema de esteira descrito por Vitruá vio eá um pouco impreciso), ateá aqui as explicaçoã es
saã o claras e a maá gica vai ganhando forma. Mas, como o objetivo do estudo eá descobrir
como otimizar o desenho do Parafuso de modo que o volume de aá gua elevado seja
maá ximo, caá lculos um tanto confusos com grandes equaçoã es e embrulhos algoritmos vaã o
aparecendo lentamente. O raio do cilindro externo do Parafuso eá medido em metros e se
transforma numa letra que deixa de ser letra para nomear um nuá mero: R o . Jaá o
comprimento eá chamado de L, K eá a inclinaçaã o do Parafuso, Ri o raio do cilindro interno
do Parafuso (que jaá sabemos de antemaã o ser 0 ≤ Ri ≤ Ro), N, o nuá mero de heá lices e,
finalmente, ∧,lambda, nossa primeira variaá vel do alfabeto grego que aqui, e em outras
questoã es matemaá ticas, significa o períáodo, no caso de uma heá lice.
A garoa de paraâ metros e incoá gnitas vai se transformando numa chuva de síámbolos, onde
letras gregas vaã o ficando cada vez mais frequü entes. A frase mais longa das uá ltimas
paá ginas dessa histoá ria parece, poreá m, um tanto curta: VT = (2 ∏ 2 Ro3/ K) λ υ (N, ρ, λ).
No entanto, sua traduçaã o pode durar paá ginas e paá ginas de explicaçoã es e, no caso de uma
pessoa pouco fluente nessa líángua, alguns anos de elucidaçaã o a cerca do tema. No final,
todavia, ainda bem, uma esperança de compreensaã o faz com que o leitor naã o se sinta
totalmente frustrado na tentativa de desvendar essa histoá ria.
A conclusaã o eá clara ateá para os pouco desenvoltos nessa líángua: o desenho otimizado, em
relaçaã o ao descrito no Da Arquitetura, aumenta a quantidade de aá gua elevada em 21%,
concluindo que os valores de entrada do Parafuso de Vitruá vio saã o, portanto, bastante
proá ximos ao daquele otimizado e suas linhas de construçaã o saã o muito mais simples,
provando que muitas geraçoã es e experieâ ncias foram somadas para se chegar ao desenho
do Parafuso descrito por Vitruá vio. Assim, chegamos entaã o aà conclusaã o compreensíável
que o desenho do Parafuso de cerca de vinte e quatro seá culos atraá s era quase taã o
eficiente quanto aquele elaborado apoá s uma extensa anaá lise cientíáfica.
Se, apesar de um estudo preciso e rigoroso, com teoremas e exatidoã es que naã o daã o
margem aà s duá vidas, a conclusaã o eá de que tanto tempo antes o Parafuso jaá podia
funcionar de uma maneira muito proá xima a mais eficiente de todas, continuo a acreditar
que mesmo com um belo tanto de matemaá tica, sua geometria e seus frutos, a ela eá
imprescindíável a maá gica de um desenho capaz de se colocar em movimento. A mesma
maá gica que faz a fita de Moebius dar voltas infinitas em torno de mim e no caso da nossa
maá quina faz a aá gua encontrar seu caminho rumo ao alto e ao final de nossa histoá ria.