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Pees EL ee el a ee een TTC fe HA uma crise geral das ciéncias do homem: elas se encontram, no mini- ‘mo, todas sobrecarregadas por seus prdprios progressos devido & acu- mulagio dos novos conhecimentos ¢ da necessidade de um trabalho coletivo, cuja organizacio inteligente ainda esta por se estabelecer; direta ou indiretamente, todas encontram-se afetadas, quer queiram, quer nao, pelos progressos efetuados pelas mais 4geis dentre elas, e, no entanto, permanecem prisioneiras de um humanismo retrégrado, insidioso, que ‘nao pode mais Ihes servir como referencial. Todas, com major ou menor lucidez, preocupam-se com o lugar que ocupam no conjunto gigantesco das pesquisas antigas e recentes, nas quais se pode hoje presumir a neces- sidade de uma convergéncia. Como sairdo dessas dificuldades as ciéncias humanas? Por meio de um esforco suplementar ou um mau humor crescente? Talvez elas tenham a ilusio disso, pois estao hoje mais preocupadas do que no pas- sado (mesmo correndo 0 risco de voltar a velhissimas e enfadonhas repe- tigdes ou a falsos problemas) em definir seus objetivos, seus métodos, suas superioridades, Ei-as, 4 porfia, engajadas em chicanas a propésito das fronteiras que as separam ou deixam de separar, ou ainda sobre as que as separam mal das ciéncias vizinhas. Pois cada uma delas sonba, na verdade, em ficar bem instalada em seu préprio campo ou em voltar a ele... Alguns estudiosos isolados concebem aproximagoes: Claude Lévi- ‘BRAUOEL 87 ‘Strauss’ faz com que a antropologia “estrutural” avance rumo aos proce- dimentos da linguistica, aos horizontes da historia “inconsciente” ¢ ao imperialismo juvenil da matematica “qualitativa”. Ele remete a uma cién- cia que ligaria, com o nome de ciéncia da comunicagao, a antropologia, a economia politica, a inguistica... Mas quem est4 pronto para atravessar tais fronteiras e para realizar tais reagrupamentos? Pelo sim ou pelo nao,a propria geografia estaria disposta a se divorciar da histéri Mas nao sejamos injustos. Ha um interesse nessas querelas ¢ nessas recu- sas, O desejo de se afirmar contra os outros encontra-se forgosamente na origem de novas curiosidades: negar 0 outro jé é conhecé-lo, Mais do que isso, sem querer fazé-lo explicitamente, as ciéncias socais se impdem umas 4s outras, cada qual tendendo a aprender o social em sua integridade, em sua “totalidade”; cada qual usurpa o campo de suas vizinhas com a firme convicsdo de estar em terreno proprio. A economia descobre a sociologia que a cerca, a histéria ~ que talvez seja a menos estruturada das ciéncias do bhomem — accita todas as ligdes de sua miltipla vizinhana eesforga-se em reverberé-las, Assim, apesar das reicéncias, das oposigdes, das ignorincias tranquilas, esbosa-se o estabelecimento de um “mercado comum’; valeria a Pena tenté-lo no decorrer dos anos vindouros mesmo se, mais tarde, cada uma dessas ciéncias acabasse encontrando vantagens em retomar um cami- nho mais estreitamente pessoal. De safda, porém, a operacio de reaproximé-las é urgente. Nos Esta- dos Unidos, essa reuniao tomow a forma de pesquisas coletivas sobre as reas culturais do mundo atual, sendo as area studies, antes de mais nada, © estudo, por um grupo de social scientists, desses monstros politicos do. momento presente: China, India, Russia, América Latina, Estados Uni- dos. Conhecé-los & uma questio vital! Mas & ainda necessério, nesse compartilhamento de técnicas e conhecimentos, que cada um des partici- antes nao permanesa enfiado em seu trabalho particular, cogo ou surdo — como acontecia antes - Aquilo que dizem, escrevem ou pensam os outros! B também é preciso que a reuniso das cidncias socias seja completa, que 1 Claude Lévi Straus, Anthropoogesructurale, Pris: Plo ; rcturale, Pais: Plon, 938 passim, especialmente 20 [ed bas Antropol erat Bene Peone Neue Se re Co sac Naif, 200 88 HISTORIA E CIENCIAS SacIAIS:A LONGA BURAGAO as mais antigas nao sejam negligenciadas em beneficio das mais jovens, capazes de tantas promessas, mas nao de sempre cumpri-las. Por exemplo, co lugar concedido a geografia nessas tentativas americanas é praticamente nulo, bem como é extremamente modesto o que elas reservam & histéria. E, alids, de qual historia se trata? Sobre a crise que nossa disciplina atravessou no decorrer destes ulti- mos vinte ou trinta anos, as outras ciéncias sociais estio muito mal infor- madas, e a tendéncia delas & desconhecer, ao mesmo tempo, os trabalhos dos historiadores e um aspecto da realidade social do qual a histéria éuma boa serva, quando nio mesmo sempre uma habil vendedora: essa dura- ‘s20 social, esses tempos miiltiplos e contraditérios da vida dos homens, que ndo sio apenas a substincia do passado, mas também o estofo da vida social atual. Uma razao a mais para assinalar com firmeza, no debate que se instaura entre todas as ciéncias humanas, a importancia, a utilidade da hit t6ria, ou, antes, a da dialética da duragio, tal como ela se desprende do off- cio e da observagio repetida do historiador; em nossa opinio, nada pode set mais importante, no centro da realidade social, que essa oposigio viva, {ntima, repetida indefinidamente, entre o instante e 0 tempo lento a escoar. Quer se trate do passado ou da atualidade, uma nitida consciéncia dessa plaralidade do tempo social ¢ indispensével a uma metodologia comum as ciéncias humanas. Falarei, portanto, demoradamente da historia, do tempo da histéria. ‘Menos para os leitores desta revista [Annales], especialistas em nosso cam- po de estudo, do que para nossos vizinhos das cigncias humanas: econo- ristas, etndgrafos, etndlogos (ou antropslogos), socislogos, psicélogos, linguistas, demégrafos, geégrafos e até mesmo os especialistas da matema- tica social ou estatisticos — todos eles vizinhos cujas experiéncias e pesqui- sas temos seguido ha varios anos, porque nos parecia (e ainda nos parece) que é possivel ver a histéria sob uma nova luz, desde que a coloquemos a reboque daquelas ciéncias, ou em contato com elas, Talvez tenha chegado a nossa vez de Ihes retribuir por isso de algum modo. Das experiéncias ¢ tentativas recentes da histéria se depreende — de modo consciente ou nao, aceito ou no — uma nogio cada vez mais precisa da multiplicidade do tem- po edo valor excepcional da longa duragao. Bssa diltima nogao, mais do que a propria historia ~ a histéria das cem faces -, deveria interessar nossas vizi- has, as ciéncias sociais. |. HISTORIA E DURACOES ‘Todo trabalho hist6rico decompée o tempo passado, faz escolhas em meio 8 suas realidades cronolégicas, de acordo com preferéncias e exclusividades ‘mais ou menos conscientes. A histéria tradicional, atenta ao tempo breve, a0 individuo, 0 acontecimento, habituou-nos hi muito a seu relato precipi. tado, dramatico, de curto folego. A.nova histéria econdmica e social traz para o primeiro plano de sua pes- guisa a oscilacdo ciclica e aposta em sua duracio: ela se deixou iludir tam- ‘bom pela realidade das altas e baixas cclicas dos precos. Assim, hi hoje, a0 lado do relato (ou do “tecitativo” tradicional), um recitativo da conjuntura ue questiona o passado por amplas faixas temporais: dezenas, vintenas ou cinquentenas de anos, Muito além desse segundo recitativo, situa-se uma histéria de folego ainda mais longo, essa, de amplidao secular: a histéria de longa e até mes- mo de muito longa duragio, Tal formula, boa ou ruim, tornou-se a mim familiar para designar 0 contrério daquilo que Frangois Simiand, um dos primeiros depois de Paul Lacombe, batizou de hist6ria acontecimental {événementille]. Pouco importam essas formulas: seja como for, ¢ de uma 4 cutra, de um polo ao outro do tempo, do instantineo & longa duracio que vai se situar nossa discussao. ‘Nilo que essas palavras nos deem qualquer seguranca absoluta. O mes- ‘mo se pode dizer da palavra acontecimento. No que me diz respeito, gosta- tia de limité-la, de torné-la prisioneira da curta duragao: o acontecimento 6 explosivo, “novidade que soa’, como se dizia no século xvt. Com sua fuma- saabusiva, ele preenche a consciéncia de seus contemporineos, mas quase nao dura, e o méximo que vemos dele é a chama. Osfildsofos nos diriam, sem vida que asim se esvaza a palavra de gran- departe de seu sentido, Um acontecimento, a rigor, pode vircarregado de uma Série de significagses e elos. As vezes, ele & testemunha de movimentos muito Profundos, e, pelo jogo facticio ou nao das “causas” e dos “efeitos” tio caros 308 historiadores do passado, anexa-se a ele um tempo muito superior & sua propria duragio. Extensivel ao infinito, ele se liga livremente ou nao, a toda uma cadeia de acontecimentos, de realidades subjacentes e, 0 que parece, imposstvels de se destacarem, desde entio, umas das outa. Por essa somaté. ta, Benedletto Croce podiaafirmar que em toclo acontecimento se incorpora 90 HISTORIA E CIENCIAS SOCIAIS: 4 LONGA DURAGLO ahistéria inteira, o homem inteiro e, depois, eles podem ser redescobertos tan- to quanto se queira, Com a condigio, sem duivida, de acrescentar a esse frag- mento 0 que ele nfo contém i primeira abordagem ¢, portanto de saber 0 que pode ser ~ou nto arescentado ale de maneiajusta fesse jogointlgente ce perigoso que propoem as reflexes recentes de Jean-Paul Sartre. Entio, de modo mais claro, dgamos, em ver de acontecimental 0 tempo curto, aquele cuja medida é a dos individuos, a da vida cotidiana, 2 de nossas ‘lases, nossas répidas tomadas de consciéncia ~ 0 tempo do cronista por exce- Jéncia, o tempo do jomalista. Ora, observemos que tanto crOnica como jornal fornecem, a0 lado dos grandes acontecimentos qualificados como histéricos, cs mediocres acidentes da vida ordiniria: um inctndio, uma catistrofe ferro- viiria, 0 preco do trigo, um crime, uma representagio teatral, uma inundagio, Cada um de nds compreendera que existe, assim, um tempo curto pata todas as formas de vida: econémica, social, literira, institucional, religiosa, eaté mesmo geogriica (fortes vento, uma tempestae), tanto quanto politica, ‘A primeira vista, 0 passado é essa massa de fatos mitidos, alguns estron- dosos, outros obscuros ¢ indefinidamente repetidos, esses fatos com os quais a microssociologia ow a sociometria, na atualidade, fazem seus despo- jos didrios (existe também uma micro-hist6ria). Mas essa massa nao consti- tui toda a realidade, toda a espessura da historia sobre a qual pode trabalhar Avontade a reflexio cientifica. A ciéncia social tem quase horror ao aconte- cimento, Nao sem razio: 0 tempo curto & 0 que mais dé provas de capricho, 6 amais enganadora das duracdes temporais. Dai a desconfianca existente entre alguns historiadores em relagio a uma histéria tradicional, chamada de acontecimental, rdtulo que se confunde, no sem alguma inexatidéo, com o de histéria politica: essa tltima nfo é for- sosamente acontecimental, nem esté condenada a sé-lo. No entanto, é um fato que, com excecio dos quadros artificiais, quase sem espessura temporal, com 05 quas ela recortava seus relatos? — salvo com as explicagdes de lon- sg duragio avangadas como um complemento necessirio~, a histéria destes ‘ltimos cem anos, quase sempre politica, concentrada no drama dos “grandes 2 Jean-Paul Sats, “Questions de mathe’, Les eps Moderns n-139 © 140, 1859 (ed adn oP Diy Ves ute dented eto ra Stole Dlg 3. *AEaopem oo emndo cm #0 2 Aleman esp ds Reo BRAUDEL 91

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