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A concepção de homem na filosofia de Feuerbach

A filosofia de Feuerbach tem como finalidade a autoafirmação do homem em sua

empiricidade e racionalidade, negando quaisquer doutrinas religiosas ou princípios metafísicos.

Em contraposição ao idealismo de Descartes, e sobretudo à filosofia kantiana, o filósofo pensa

o homem também radicado em sua natureza, ou seja, em suas paixões, necessidades e desejos.

Pensar o homem radicado em sua natureza é necessariamente uma filosofia a partir da

sensibilidade, pois “o real é o verdadeiro começo da filosofia”.

“Por que o homem cria religiões?” Feuerbach destaca a necessidade humana por “respostas

pelo o desconhecido no além”, e a partir desse além ser possível pensar o mundo, inclusive o

próprio homem. De acordo com o pensador, a religião é um fenômeno característico da vida

humana, presente desde as sociedades primitivas até o mundo moderno. A história da

humanidade é demarcada por religiões, sejam elas primitivas com elementos característicos aos

fenômenos naturais, sejam elas mais complexas de cunho antropomórficos, elas expressa a

carência humana de uma explicação sobre a realidade, sendo tal explicação baseada em

elementos divinos.

A religião, para Feuerbach, é uma criação humana movida a partir dos sentimentos de medo,

gratidão e dependência. Tais sentimentos são observados nas religiões pagãs de cultos ligados

a natureza a fim e entende-la e explica-la. Ora, estando o homem ligado a natureza e

inteiramente dependente dela, entender a natureza significava compreender a si mesmo, embora

de forma primitiva. Na medida em que a vida social de uma comunidade ou sociedade se torna

complexa, a religião local também acompanha a demanda da região em que ela predomina,

tornando-se ela também complexa. Por isso as religiões pagãs estarem presentes em

determinadas regiões específicas, a fim de atender as necessidades daquele povo. Por outro

lado, a religião cristã possui em si uma abrangência universal, não estando o deus cristão

determinado a uma localidade específica. Tal é tamanha contribuição do cristianismo, por “não
vê diferenças nas nações nem na humanidade” (MACHADO, 2014, p.18). Esse fator pode ser

observado nas narrativas bíblicas, seja na escravidão do povo hebreu no Egito ou durante o

cativeiro da Babilônia, por exemplo.

Havendo a necessidade de domínio através de cultos, oferendas e da dependência da

natureza, para Feuerbach a religião é necessariamente uma criação humana, um reflexo de si

mesmo e dos seus sentimentos para a autoafirmação do gênero humano a partir de uma

consciência sobre-humana constituída de razão, vontade e sensibilidade.

Mesmo as religiões naturais, a natureza é interpretada como algo que demonstra sentimentos
como fúria, ira, mansidão, tranquilidade, etc. Ao notarmos esse caráter da religião, percebemos
que o homem identifica sua criação consigo mesmo e promove uma relação de semelhança com
o objeto religioso. (MACHADO, 2014, p.19).

Partindo para uma análise da religião cristã, Feuerbach encontra seu lado positivo em fazer

o homem se compreender melhor em sua finitude e autoafirmar o gênero humano em suas

potencialidades. O homem cria um ser semelhante a si, pondo neste ser o fundamento de sua

existência e ao mesmo tempo a identificação com esse ser superior supõe um certo encontro do

homem consigo mesmo, portanto “religião significa religar o homem a si mesmo, o

autoconhecimento humano, onde o homem faz um movimento de sair de si, se reconhecer em

outro ser, se identificar nesse ser e voltar a si mesmo”. (MACHADO, 2014, p.20).

Por outro lado, a religião subverte o gênero humano na relação homem-deus, através da

supervalorização de dogmas e doutrinas em detrimento do seu sentido original religare- religar

o homem a deus a fim de reencontrar a si mesmo. Deus se encontra agora numa posição de

superioridade sobre o homem, entendido agora como algo inferior. O que outrora era uma

criação humana agora é uma criação divina, ora, a concepção cristã de homem como “imagem

e semelhança de deus” ganha força, valorizando assim uma inversão da criação em que um ser

“supra-sensível” é onisciente onipresente e onipotente, princípio e fim, onde esse mesmo ser

extrai do homem todas as suas capacidades e potencialidades de afirmação de si Ou seja, o


homem como “imagem e semelhança de deus” é necessariamente afirmar que a consciência de

si está em um outro de si, superior e inexistente.

Tal inversão é vista por Feuerbach como algo problemático, pois ela transfere qualidades

essencialmente humanas- razão, virtude, sensibilidade- para um ser imaginário criado pelo

próprio homem, “que nada mais é do que o próprio homem universalizado e abstraído de suas

deficiências”. A partir da negação do homem, tudo que é demasiadamente humano torna-se

desvalorizado, a fim de alcançar tudo o que é celestial. A matéria, o finito, o sensível e a

natureza estão constituídos de “pecaminosidade”, são necessariamente descartáveis pelo

cristianismo, pois o que importa é a alma, o espírito em detrimento do corpo que é “a fonte de

todo pecado”. Ser esse deus é o mais importante, negando assim o mundo.

Vê-se aqui uma dualidade, que tornou-se predominante entre os filósofos da racionalidade

como René Descartes, que afirmava a razão o princípio da existência do homem, e somente na

razão se encontrava a fonte do conhecimento humano, creditando à exterioridade o caráter de

“não-ser”, portanto, algo que não diz sobre si mesmo. Enquanto posteriormente o filósofo

Immanuel Kant afirmava que o sujeito dá sentido ao mundo a partir da transformação de dados

sensíveis em objetos para o homem, valorizando-o tanto em sua transcendentalidade como em

sua empiricidade.

Contudo, Feuerbach propõe uma filosofia voltada para o homem a partir da vontade

constituída de racionalidade e sensibilidade, estabelecendo a base do materialismo (embora

ainda genérico). O homem que está para além do que lhe determina, ao mesmo tempo este

mesmo homem carece de necessidades, sobrevive, ama. Tanto a religião (em especial a cristã)

como a filosofia dualista (ou mesmo a metafísica) se baseiam no desligamento do que é

concreto em virtude de uma ideia, carecendo de uma relação dialética entre ambos. Entretanto,

Feuerbach nos faz perguntar “E a vida concreta?”, pois uma filosofia que não começa pela

sensibilidade tampouco pode encontrar-se com a ideia, ainda admitindo que


é próprio da essência humana ter religião, [e que] esse é o primeiro contato que o homem tem
consigo mesmo, porém é papel da filosofia conscientizar que o que se chama de deus, deve ser
chamado de homem. Dessa forma, não se trata somente de destruir a religião e tudo o que a
envolve, mas de construir uma vida voltada ao próprio gênero humano, às próprias relações
sociais, ao reconhecimento de si mesmo e do outro como semelhante, em suma, uma vida pautada
na humanidade voltada à natureza. (MACHADO, 2014, p.26).

Portanto, para o autor a filosofia é uma necessidade ao mundo, que deve ser voltada para o

homem a fim de se autoafirmar em sua plenitude. A filosofia idealista, assim como a religião,

construiu um sujeito absoluto que detém o corpo, a vida cotidiana e tudo o é demasiadamente

humano, sendo uma tarefa agora deslocar a filosofia para o sujeito sensível, ou seja, resgatar o

conceito de “Homem”.

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