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4º Seminário de Relações Internacionais da Associação

Brasileira de Relações Internacionais (ABRI)

70 ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS


HUMANOS: APONTAMENTOS DE UMA ANÁLISE
FOUCAULTIANA

Tadeu Morato Maciel


Universidade Federal Fluminense – UFF

João Paulo Gusmão Pinheiro Duarte


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP

Área Temática: Instituições e Regimes Internacionais

27 e 28 de setembro de 2018
Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA)
Foz do Iguaçu/PR
70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos: apontamentos de uma
análise foucaultiana
Tadeu Morato Maciel1
João Paulo Gusmão Pinheiro Duarte2

Resumo
Diante das comemorações, em 2018, dos 70 anos da Declaração Universal dos
Direitos Humanos (DUDH), momento em que o documento e seus efeitos novamente serão
colocados em evidência, a análise de sua emergência e estabelecimento se torna mais uma
vez pertinente. Isso porque, desde que foi acordada na Assembleia Geral das Nações
Unidas, em 1948, a Declaração se tornou uma baliza tida como fundamental para o alcance
da dignificação da humanidade. Um adágio que se generalizou como verdade por estar
também associado à promoção da paz e tolerância entre os povos; por consequência,
reverberando até os dias de hoje. A despeito dessa forma grandiloquente, a DUDH e seus
efeitos impelem também problematizações, as quais norteiam os objetivos do presente
artigo. Aproximando-se da abordagem genealógica do poder proposta por Michel Foucault,
o artigo situa, no primeiro plano, a Declaração como um artifício jurídico nascido na guerra,
isto é, como um direito marcado pelo sangue das batalhas da Segunda Guerra Mundial. Em
seguida, é discutido como seus efeitos produziram uma padronização das interpretações até
então dispersas sobre os direitos humanos, assim como um programa universal destinado
ao estabelecimento de atenções políticas sobre a humanidade. Nesse sentido, para além
dos discursos que se limitam a ressaltar as positividades da DUDH, a Declaração é aqui
analisada como um dispositivo que reflete e reproduz a perspectiva vencedora da guerra e
que se dirige ao interesse de controle sobre a vida dos Homens. Por conseguinte, busca-se
uma possibilidade analítica que leia a DUDH dentro da perspectiva foucaultiana de
continuidade silenciosa da guerra, problematizando-a enquanto um direito “ocidental” e um
dispositivo biopolítico de pretenso caráter universal. Como corolário, ao final do texto,
sugere-se que a DUDH é perpassada por uma lógica dualista que opõe civilizados e
bárbaros. Desta forma, em meio a estratégia biopolítica de potencializar determinada forma
de vida ocidental, está intrínseca uma função de morte contra populações/pessoas definidas
como inadequados, anormais, resistentes ou desimportantes.

Palavras-chave: Declaração Universal dos Direitos Humanos; política como guerra;


analítica foucaultiana.

1
Pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Política Externa Brasileira da Universidade Federal Fluminense
(UFF). Doutor em Ciências Humanas e Sociais (2018) pela Universidade Federal do ABC (UFABC).
2
Doutorando em Relações Internacionais pelo Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com estágio-sanduíche doutoral na Universidade de
Genebra.
2
1. Introdução

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH)3 é considerada um dos mais


importantes marcos fundacionais e estruturantes do regime internacional dos direitos
humanos. Nela consta a inovação de transformar o ser humano em sujeito de direito
internacional, ao mesmo tempo em que ressalta as responsabilidades dos Estados pela
promoção, proteção e observância dos direitos humanos. Pelo fato de conferir ao “Homem”
o status de sujeito de direito internacional, a DUDH é apropriada como uma matriz essencial
para a atualização da noção de segurança internacional, no final do século XX (atenta à
segurança das pessoas a partir da garantia dos direitos humanos e de um ambiente
adequado para o efetivo desenvolvimento de suas capacidades). Portanto, a DUDH é
representativa de um cenário no qual se afirma o discurso jurídico-político da inviolabilidade
da soberania estatal, ao mesmo tempo em que são definidas questões globais que exigiriam
formas coletivas de enfrentamento de ameaças à defesa da humanidade, baseadas em
normas a serem seguidas por todos os membros da comunidade internacional.
Não por acaso, a DUDH tem sido recorrentemente associada à ampla missão de
promoção incondicional da dignidade humana em âmbito global. Isso porque, desde que foi
acordada na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1948, a Declaração se tornou uma
baliza tida como fundamental para o alcance da dignificação da humanidade, como única
solução possível diante de barbarismos que afetariam várias regiões do mundo. Todavia,
em 2018 a DUDH chega aos 70 anos de existência em um tempo de indubitáveis desafios e
conflitos envolvendo direitos humanos, tais como assimetrias econômicas (tanto entre
nações, quanto entre pessoas), tendências protecionistas, intolerâncias religiosas e raciais,
violências de gênero, discriminação contra minorias, além do recente agravamento das
restrições aos migrantes precários e refugiados. Diante de tal cenário, as comemorações
motivadas pelo septuagésimo aniversário da Declaração têm ensejado reflexões quanto aos
seus principais êxitos e desafios.
Não obstante, também foi aberta uma importante janela de oportunidade para as
pesquisas que problematizam a DUDH enquanto fruto de certa estrutura de poder nas
relações internacionais. Neste momento em que o documento e seus efeitos novamente são
colocados em evidência, a análise de sua emergência, estabelecimento, limites e
ambiguidades se torna mais uma vez pertinente. Embora seja permeada por interesses e
disputas de poder ao final da Segunda Guerra Mundial, a DUDH é comumente anunciada
como portadora de princípios universais e direitos inalienáveis do Homem. Um adágio que
se generalizou como verdade por estar associado à promoção da paz e tolerância entre os

3
Cf.: “Declaração Universal dos Direitos Humanos” (1948). Disponível em: <http://www.onu.org.br/img/
2014/09/DUDH.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2018.
3
povos, e que, assim, mascarou a imposição de modelos de desenvolvimento e democracia
associados à racionalidade neoliberal.
Dessa forma, a DUDH e seus efeitos impelem problematizações, as quais norteiam
os objetivos do presente artigo. Aproximando-se da abordagem genealógica do poder
proposta por Michel Foucault, no início deste texto é discutida as procedências violentas do
direito, não apenas enquanto resultado de sangrentas batalhas, mas também como
instrumento de fixação de tais conquistas a partir de assimetrias, hierarquias e subjugações.
Em seguida, a DUDH é lida enquanto um artifício jurídico nascido na guerra, isto é, como
um direito marcado pelo sangue das batalhas da Segunda Guerra Mundial. A partir dessa
leitura, é discutido como os efeitos da Declaração produziram uma padronização das
interpretações até então dispersas sobre os direitos humanos, assim como um programa
universal destinado ao estabelecimento de atenções políticas sobre a humanidade.
Nesse sentido, para além dos discursos que se limitam a ressaltar as positividades
da DUDH, a Declaração é aqui analisada como um dispositivo que reflete e reproduz a
perspectiva vencedora da guerra e que se dirige pelo interesse de controle sobre a vida dos
Homens. Por conseguinte, busca-se uma possibilidade analítica que leia a DUDH dentro da
perspectiva foucaultiana de continuidade silenciosa da guerra, problematizando-a enquanto
um direito “ocidental” e um dispositivo biopolítico de pretenso caráter universal. Como
corolário, ao final do texto sugere-se que a DUDH é perpassada por certa lógica dualista
que opõe civilizados e bárbaros. Na perspectiva adotada neste artigo, a DUDH reproduz a
manutenção do domínio conceitual e cultural ocidental nos últimos séculos, ao reverberar
um padrão histórico segundo o qual toda a moralidade vem da capacidade civilizadora do
Ocidente. Desta forma, em meio à estratégia biopolítica de potencializar determinada forma
de vida ocidental, está intrínseca uma função de morte contra populações/pessoas
percebidas como inadequadas, anormais, resistentes, nocivas ou desimportantes.
Diante da multiplicidade de questões político-econômicas, normativas e culturais que
têm caracterizado o grande roteiro de internacionalização dos direitos humanos,
especialmente à luz das raízes históricas do movimento, objetiva-se, por meio deste artigo,
contribuir com as análises críticas sobre a DUDH, compreendendo-a como resultado de
lutas cotidianas em um ambiente de disputa de poder.

2. A guerra fundadora de direito

Entre os apontamentos de Michel Foucault acerca de seu projeto genealógico de


investigação do poder, a análise dos discursos jurídico-políticos construídos no interior da
teoria da soberania é certamente um dos pontos fundamentais de sua problematização. De

4
vasta procedência na filosofia política, os discursos fixados como peças interpretativas do
que seria a conformação do Estado e do arcabouço jurídico a ele relacionado, segundo
Foucault (2005, p. 49), são exemplares de uma forma produzida de verdade que impôs a
distinção estanque entre a guerra e a política. Narrativas que, a exemplo de Thomas
Hobbes e seu Leviatã, teriam heroificado e glorificado um suposto alcance da paz civil pela
unificação do poder político, e que, por consequência, atribuíram o surgimento das
sociedades, dos Estados e das estruturas jurídicas ao momento em que supostamente teria
sido cessado o ruído das armas.
Transformados em acepções verdadeiras, tais saberes ganharam, inclusive, a
rubrica de Ciência Política com a emergência, por volta do século XIX, das Ciências
Humanas.4 Ao problematizar a forma como essas narrativas ganharam o status de verdade,
Foucault chama a atenção para o movimento argumentativo-metodológico de desvincular as
relações incessantes de força do exercício regular da política. Em outros termos, atenta para
os esforços bem-sucedidos dessas narrativas na fixação do entendimento de que a guerra –
seja ela manifesta em suas formas bélicas ou em demais configurações de embates –
apenas antecedeu e precipitou a instituição da política. Como corolário, a guerra foi afastada
para o espaço exterior da política; ou seja, para as relações internacionais. Um movimento
que foi interpretado por Carl Von Clausewitz (1780-1831) – reconhecido como o grande
teórico da guerra, e que igualmente reproduziu tais narrativas ao adaptá-las aos estudos
militares – como a comprovação de que, nesse ambiente de relacionamento dos Estados, a
guerra, expulsa do ambiente de manifestação da normalidade política, ocorre no âmbito
internacional precisamente como uma extensão da política.
Segundo Foucault (2005, p. 22-23), essa interpretação de Clausewitz,
emblematizada no aforismo que afirmou a guerra como continuação da política por outros
meios5, apesar de reconhecer a relação da guerra com a política, não o fez em seu inverso.
Ao contrário, reforçou os argumentos dos discursos jurídico-políticos que estancaram a

4
Um efeito dessa dinâmica pode ser observado, por exemplo, no estabelecimento das teorias tradicionais das
Relações Internacionais, no decorrer do século XX. Embora divirjam quanto à aplicação, no plano internacional,
de uma comunidade política nos moldes do que há internamente nos Estados, Liberalismo e Realismo nas RI
estão igualmente filiados à crença na política estatal enquanto sinônimo da paz civil. Tais perspectivas teóricas
retroalimentam a lógica jurídico-política de que há uma rígida fronteira que delimitaria o ambiente interno aos
Estados (caracterizado pela paz civil) e a arena internacional (atravessada pela lógica “anárquica”, enquanto
espaço “exterior à estrutura política estatal). Dentre as importantes problematizações sobre essa questão,
sugere-se Walker (2013) e Rodrigues (2010).
5
O referido aforismo consta no livro Da Guerra, escrito por Clausewitz em decorrência da sua atuação como
oficial do exército prussiano contra as forças de Napoleão Bonaparte. Ao se impressionar com o desempenho do
exército francês (embebido pelo ideal nacionalista), Clausewitz decidiu escrever uma obra que se consolidasse
como uma teoria da guerra moderna. Ao relacionar guerra e política, ele destaca a diferença entre guerra
absoluta (que objetiva a morte, a aniquilação absoluta) e a guerra real (a qual submete o outro à sua vontade).
Diferente do que ocorre entre os homens, nos conflitos entre Estados a guerra absoluta seria puro conceito, pois
é preciso que estes entes sobrevivam à guerra. Nas relações internacionais, o que existe é a guerra controlada
pelo Estado, ou seja, como um instrumento da política. Assim, a política (Razão de Estado) procura certos fins, e
a guerra seria mais um meio para isso, o que explica a sua máxima de que “a guerra é a política prolongada por
outros meios”.
5
relação da política com a guerra. Dessa maneira, funcionou como mais uma interpretação
que concedeu novos subsídios para forjar e esconder, de acordo com o autor, a função
própria do poder político: reinserir perpetuamente as relações de força presentes na guerra
instauradora da política, sendo esse um mecanismo responsável por dar continuidade às
relações de dominação, poder, força e enfrentamento naquilo que se concebeu como paz
civil. Buscando desviar suas análises dos postulados consagrados em torno do princípio da
soberania, é nesse ponto então que Foucault sugere a pertinência da inversão do aforismo
de Clausewitz, afirmando que a política é a continuação da guerra por outros meios, assim
expondo como a política reinscreve nas instituições, na linguagem, nos corpos, no cotidiano
da forjada e imaginada normalidade política, uma guerra silenciosa e permanente no interior
da chamada paz civil.6
Interessado em mostrar com tal inversão como esse enredo jurídico-político também
se estabeleceu como saber científico de inquestionabilidade quase absoluta, relegando
outros saberes à condição de subalternidade e esquecimento, Foucault (2005, p. 56-58)
indica que discursos com sentidos opostos ao do aforismo de Clausewitz podem ser
identificados até mesmo antes dos escritos do General prussiano. Na França e na Inglaterra
de finais do século XVII, e ao longo do século XVIII, segundo Foucault, filósofos e literatos
cujos nomes são de desconhecimento quase geral, já apontavam, contrariamente à teoria
da soberania, que o poder político não começava quando se fazia cessar a guerra.
Discursos, portanto, que mesmo esquecidos e considerados menores ou não científicos,
indicaram a guerra como uma espécie de motor das instituições e da ordem, e, assim, como
um acontecimento presente na política na mesma medida em que se podia identificar a
política na guerra. Nesses termos, ainda, discursos que ao afirmarem que a guerra não é
encerrada com a instituição da política, igualmente apontaram como todo arcabouço jurídico
tem sua fundamentação na guerra.
A partir da exposição dessas procedências, Foucault propõe uma das observações
que guiam seu projeto genealógico, isto é, a consideração dos saberes histórico-políticos
das lutas, das guerras, dos enfrentamentos como cifra indispensável para se analisar o
poder. Dessa forma, a consolidação do Estado Moderno envolveria uma complexa produção
de verdades que não se limitaria ao discurso jurídico-político, balizado pela teoria da
soberania. Ao assumir a guerra como elemento norteador das análises sobre as relações de
poder (entendidas como inesgotáveis relações de guerra), Foucault identifica a existência
dos discursos histórico-políticos, baseados no entendimento compartilhado da guerra “como

6
Por conseguinte, a perspectiva analítica empreendida por Foucault permite, conforme ressalta Rodrigues
(2010, p. 378), a compreensão da “política internacional como continuação da guerra, borrando a separação
entre o dentro e fora da política, fazendo-se notar uma continuidade não linear entre os problemas de governo, a
formação do Estado e as relações internacionais como guerra perpétua”.
6
relação social permanente, como fundamento indelével de todas as relações e de todas as
instituições de poder” (ibidem, p.56).
Visto que a política aparece como uma guerra constante, o Estado não nasce da
interrupção da guerra, mas da recondução dos conflitos a partir das instituições e relações
de poder resultantes de seu estabelecimento. Enquanto a perspectiva jurídico-política
anunciava o estabelecimento do Estado como sinônimo de paz civil, os discursos histórico-
políticos permitiriam reproduzir a política como uma guerra constante, como o campo de
batalha de frequentes tensões que conformam as relações sociais. As leis não seriam o
resultado de um acordo espontâneo entre os Homens para superarem a “guerra perpétua de
cada homem contra seu vizinho” (HOBBES, 1979, p. 131), que caracterizava o estado de
natureza primordial hobbesiano e kantiano. Para o discurso histórico-político, “a lei nasce
das batalhas reais, das vitórias, dos massacres, das conquistas” (FOUCAULT, 2005, p. 58).
Em consequência, a ordem política e social em que se vive seria “produto de uma guerra
que subsistiria após o fim da violência explícita do campo de batalha, de uma guerra que
restaria ativa apesar das leis e dos juristas terem dito o contrário” (RODRIGUES, 2010, p.
312-313). Através desse entendimento, a formação e preservação do Estado, incluindo suas
leis e instituições, são resultado de conquistas e sujeições (RODRIGUES, 2013), mais do
que pacificações consentidas.7
A recuperação de enunciados histórico-políticos permite a Foucault implementar uma
análise genealógica que busca identificar os saberes sujeitados pela perspectiva teleológica
e monumentalista que atravessa os discursos jurídico-políticos. Uma abordagem que o leva
a afirmar que a guerra não apenas presidiu o nascimento do Estado – o espaço feito regular
da política –, como também presidiu – e preside continuamente – a paz e o direito. De
maneira mais objetiva, significa dizer que, para Foucault, o direito, a paz, as leis nascem no
sangue e na lama das batalhas.

A lei não nasce da natureza, junto das fontes frequentadas pelos primeiros
pastores; a lei nasce das batalhas reais, das vitórias, dos massacres, das
conquistas que têm sua data e seus heróis de horror; a lei nasce das
cidades incendiadas, das terras devastadas; a lei nasce com os famosos
inocentes que agonizam no dia que está amanhecendo. (FOUCAULT, 2005,
p. 58-59).

Acompanhando tal proposição de Michel Foucault no que nos interessa expor e


problematizar nesse artigo, podemos então indicar – ao contrário da grandiloquência que

7
No entanto, não se deve cair em um maniqueísmo ao avaliar os discursos histórico-políticos. Tal perspectiva
não deve ser vista como histórias verdadeiras, que denunciam a suposta falsidade do discurso do soberano.
Conforme ressalta Rodrigues (2010), os discursos jurídico-políticos seriam tão falsos ou tão verdadeiros quanto a
história do soberano. Contudo, essa “contra-história” inserida nos discursos histórico-políticos é diferente daquela
do soberano, por ser “voltada para a guerra: para mostrar que a situação presente derivara de uma série de
guerras, para exibir que essa própria situação presente era uma guerra e para anunciar a verdade daqueles que
se sublevavam” (ibidem, p. 316).
7
comumente acompanha a instituição de um direito – como as leis, os princípios jurídicos, as
diretrizes legais que regem as relações humanas não decorrem do alcance da paz e do
estabelecimento da ordem. Em primeiro lugar, porque o que se concebeu como “paz” e
“ordem” são definições positivas da política que escamoteiam a continuidade da guerra, e,
em segundo, porque efetivamente o resultado das guerras, conflitos e batalhas de violências
e violentações reais, igualmente produzem o direito, sendo os chamados “tratados da paz”
talvez os exemplos mais candentes. Nesse mesmo sentido, podemos ainda indicar que a
instituição de um direito tampouco decorre da natureza humana ou da suposta consecução
do atributo da razão por parte dos Homens, pois mais uma vez as definições apregoadas ao
sentido de “natureza humana” e “razão humana” são acepções que igualmente derivam de
embates políticos localizáveis temporal e territorialmente, e, portanto, produzem significados
circunstanciais, contingenciais e eventuais de “justiça”. O direito à propriedade, um direito
tido como “natural”, explicita essa observação.
Entre os autores presentes no debate atual das Relações Internacionais, Frédéric
Gros é uma das vozes que propõem apontamentos semelhantes acerca dessa relação
existente entre a política, a guerra e o direito. Apoiando-se em um texto pouco lido do
filósofo anarquista Pierre-Joseph Proudhon, intitulado A guerra e a paz – que inspirou o
título do romance homônimo de Tolstoi –, Gros (2009, p. 167), assim como Foucault,
também busca explicitar a guerra como o elemento fundador do direito. Em seu
entendimento, apesar de ter sido transformada em uma “ideia monstruosa”, é a força que
faz o direito, pois a força é antes de tudo uma afirmação, uma afirmação comprovada pela
vitória, que se torna justa exatamente porque foi vitoriosa. Nessa análise de estreita
proximidade com a afirmação de Proudhon indicadora de que a justiça não é senão a
dignidade da força, o autor mostra como o chamado “Estado de direito” é como um
testemunho empírico da manifestação da guerra pelo direito. Isso porque, de acordo com
sua reflexão, “a guerra fundadora de um direito estatal é, então, a ideia antes de tudo de que
todo sistema de direito repousa na origem sobre um golpe de força; todo Estado de direito
começou em e por violência; pudenda origo, [sua] origem vergonhosa” (2009, p. 169). Uma
manifestação, diga-se, que não é pueril, mas sim permanente, pois, segundo Gros, entre a
guerra e o Estado de direito há não só relação de proveniência, mas também de atualidade
e futuro, isto é, uma tripla dimensão temporal na qual se pode verificar a presença da guerra
no direito. A lei constitucional, nesse sentido, pode ser vista, a um só tempo, tanto como o
direito da conquista – o direito da vitória de um povo ou um agrupamento de Homens sobre
outros –, como também o direito que fixa tal conquista nas hierarquias e subjugações atuais
e futuras.

8
Seguindo essa análise de Gros, podemos traçar um paralelo ao lançarmos um olhar
para o direito internacional, que também carrega consigo a proveniência elementar e
evidente da guerra, porém, é envolto de uma imagem produzida de jurisdição de decisiva
instituição da paz. Nesse caso, igualmente não há consentimento unânime entre as partes
no momento da consagração jurídica, mas a clara inscrição de um direito da conquista, em
geral pronunciado ou narrado como direito decorrente da última e definitiva guerra, sempre a
mais sombria e violenta, que derradeiramente impõe uma justiça universal e atemporal.
Narrativa, no entanto, que mais uma vez escamoteia a fixação, pela força, dos parâmetros
de justiça que buscarão nortear a permanência da conquista.
Essa mesma perspectiva analítica nos oferece importantes problematizações sobre o
estabelecimento dos direitos humanos, que também adentraram ao âmbito do direito
internacional. Isso porque, embora atrelados politicamente a representações jurídicas que
ativam noções de “humanidade”, é notável como são direitos nos quais a guerra e seus
efeitos estão presentes como instituição e manutenção da conquista. Tendo seu emblema
maior na Revolução Francesa, especialmente com a promulgação da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, os direitos humanos – ou podemos dizer, o que
se tornou direitos humanos –, afirmaram-se não pela súbita disseminação da razão
iluminista de glorificação dos “valores humanos”, mas por lutas e enfrentamentos reais,
cujas marcas mais evidentes ficaram registradas nos patíbulos e cadafalsos.8 Assim, é
fundamental reconhecer, nos direitos humanos, os elementos que os associam à fixação de
uma legislação burguesa que explora a cidadania dos Homens como mecanismo de
redimensão de assujeitamentos na sociedade, mantendo-os como cifra da guerra.
Quando observamos seu deslocamento e ajustamento no direito internacional, de
ocorrência emblemática no pós-Segunda Guerra Mundial, com a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, é igualmente na guerra em que podemos analisar sua afirmação e
fixação. Afirmação pelo limite da exposição humana à violência dos conflitos – diante da
disseminação de campos de concentração e da utilização da bomba atômica –, e fixação
pela imposição dos resultados e efeitos desses enfrentamentos. Diga-se, enfrentamentos
que não cessaram com o silêncio das armas que levou ao morticínio de aproximadamente
60 milhões de pessoas, mas que prosseguiram nos negócios, negociações, tensões e
distensões da emergente Guerra Fria.

8
Destaca-se, por exemplo, a forma repressora e predatória por meio da qual a França lidou com a Revolução
Haitiana (1804), a qual ocorreu apenas 15 anos após a promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão. Ao mesmo tempo em que a França apregoava uma série de princípios supostamente universais, os
haitianos eram alijados de quaisquer desses direitos inalienáveis à humanidade (FERNANDÉZ, 2018).
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3. DUDH, uma declaração solene de guerra?

A solenidade com a qual a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi


proclamada no Palais de Chaillot, em Paris, no dia 10 de dezembro de 1948, em sessão da
Assembleia Geral das Nações Unidas, contrastou com as imagens da cidade ocupada pelo
exército nazista, poucos anos antes. Um dos cenários das tétricas confrontações da
Segunda Guerra Mundial, Paris simbolicamente sediou os trabalhos da Comissão de
Direitos Humanos da ONU que resultaram na assinatura do documento, anunciado como o
mais importante, amplo e abrangente registro de reconhecimento jurídico da suposta
condição de dignidade humana de todos membros da família humana. Com inúmeras
referências de exaltação aos “valores humanos”, os adágios que acompanharam sua
inscrição normativa, no entanto, também podem ser vistos como instrumentos que
encobrem as procedências e as correlações de força envolvidas na Declaração. Um registro
pronunciado como direito contra as marcas da guerra, mas que também pode ser lido como
uma formal e, ao mesmo tempo, silenciosa declaração de guerra em meio ao retorno dos
ditos tempos de paz.
Não obstante a relação e proximidade da DUDH com a guerra, sua consagração e
estabelecimento, tal como é próprio a um direito tido como “natural”, têm sido marcados pelo
esforço de vinculação a princípios que seriam inerentes à naturalidade dos Homens, como a
razão e o bom senso. Contudo, como derivada dos campos de batalha da Segunda Guerra
Mundial (HENKIN, 1990), podemos indicar que a DUDH é, antes de qualquer avaliação mais
acurada, um direito que nasce como uma tentativa de equacionamento aos prejuízos e
perdas humanas inéditos ocorridos, especialmente, na Europa. Nesse sentido, um direito
que buscou – contra a guerra que sistematizou e banalizou a morte nos campos de
concentração e extermínio, e que anunciou a descoberta de armamentos capazes de
extinguir a humanidade – parametrizar normativas dirigidas aos problemas humanitários
causados pelo conflito, sobretudo quando se constatou que o morticínio de civis atingiu um
nível alarmante. Não por acaso, em seu preâmbulo, ao elencar as motivações dos
contratantes em assinar as normativas dispostas no documento, a DUDH, em referência
implícita à Segunda Guerra Mundial, reage à constatação de que o “desprezo e o
desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a
consciência da humanidade”, considerando essa uma das premissas elementares a serem
então afirmadas. Sua ativação, portanto, diante do limite de exposição da vida à morte,
funcionou estrategicamente como um engajamento jurídico-político que, para além das
limitações nacionais, e para além dos tempos de guerra, buscaria minimizar os efeitos do
potencial bélico que havia sido utilizado durante o conflito – que colecionou atos e situações
de horror contra a vida humana –, assim como algumas de suas reverberações, que
10
incluíram do alastramento de doenças e vulnerabilidades sanitárias à devastação
socioeconômica.
Embora concebido como um instrumento jurídico pertencente a um ramo distinto
daquele dedicado aos problemas da guerra, concentrando-se, diferentemente do Direito
Internacional Humanitário (DIH), no objetivo de promover regulamentações de direitos para
a humanidade durante os períodos de normalidade pacífica, a DUDH, ao afirmar, também
em seu preâmbulo, dispositivos dirigidos à “manutenção da paz no mundo” e ao
“desenvolvimento de relações amistosas entre as nações”, mais uma vez sinalizou sua
fundamentação na Segunda Guerra Mundial. Segundo Schindler (1979, p. 4), disposições
como essas revelam que a Declaração teve como uma de suas procedências precisamente
o DIH9, um conjunto jurisdicional que nasceu na segunda metade do século XIX dirigido à
moderação dos conflitos internacionais. Tendo como um de seus principais marcos a
Convenção de Genebra, acordada pela primeira vez em 1864, o DIH, ao longo de seu
desenvolvimento, inscreveu normativas que buscaram estabelecer o reconhecimento da
dignidade humana nas situações de guerra. Sua emergência esteve atrelada ao surgimento
do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, instituição que nasceu reagindo ao crescente
potencial que as guerras adquiriam em razão da chamada revolução militar, ocorrida ao
longo do século XIX, e que passou a requisitar neutralidade em meio aos conflitos europeus
para a prestação de serviços de assistência médica e hospitalar para os feridos em
combate. A experiência que precipitou a instituição da Cruz Vermelha – por consequência,
também do DIH –, de acordo com relatos de seu fundador, Henri Dunant (2016), foram as
cenas de horror que havia presenciado na Batalha de Solferino, uma das guerras do
processo de unificação da Itália, ocorrida em 1859, e que teria anunciado a necessidade de
se afirmar, pelo viés humanitário, ainda que de maneira embrionária, mecanismos jurídicos
direcionados ao controle da guerra entre as nações.
Tal engajamento, no entanto, refletia a perspectiva política liberal da época, de
prevalência de discursos que afirmavam a interdependência econômica e a renúncia das
ações protecionistas, armamentistas e de expansão territorial, todas atreladas ao
desenvolvimento do direito internacional, como instrumentos mais eficientes ao crescimento
dos Estados. Uma interpretação que enxergava a guerra – na Europa – como um evento
dispendioso, que trazia, do ponto de vista econômico, mais prejuízos do que vantagens e

9
Sobre essa observação, é interessante notar também a aclamação que a Cruz Vermelha fez à DUDH, em texto
publicado em 1949, em seu periódico. Nele, a Cruz Vermelha indica os dispositivos da Declaração como uma
extensão de seus engajamentos, elencando aproximações entre ambos, como o princípio de igualdade
proclamado na DUDH, equivalente à proibição de todos os tipos de discriminação no direito humanitário; o
espírito de fraternidade, equivalente ao significado de caridade; e o direito à vida e à liberdade, equivalentes aos
impedimentos de execução, escravização e maus tratos aos prisioneiros de guerra. Cf.: “La Déclaration
Universelle des Droit de L’Homme et les conventions internationales protégeant les victimes de la guerre”. In:
Bulletin International des Sociétés de la Croix-Rouge, Quatre-vingtiène annèe. T. LXXX, p. 252-258, Março de
1949.
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lucratividade, inclusive quando consideradas as perdas humanas, que já sinalizavam
contagens nas cifras de milhões. Ademais, uma posição que, na prática, se voltava também
contra o crescimento do poderio alemão em finais do século XIX. No pós-Segunda Guerra
Mundial, portanto, caberia a DUDH uma função semelhante: reforçar os dispositivos
presentes na Carta de São Francisco por meio de uma atenção universal aos direitos
humanos, assim promovendo, junto ao restabelecimento dos mecanismos de controle da
guerra internacional, uma abordagem política liberal de investimento na economia de
mercado, nas formas democráticas de governo e nas condições de vida da humanidade.
Uma posição que ora se voltava, especialmente, contra a União Soviética e àquilo que ela
simbolicamente representava.10
Essa colocação é reforçada pela observação de que os dispositivos da DUDH, ao
centrarem-se no direito à vida e nas “liberdades fundamentais”, notadamente têm também
como procedência a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, e a precedente
Declaração de Independência dos Estados Unidos, promulgada em 1776. Uma observação
que se explicita, sobretudo, quando analisamos as correlações de força que marcaram a
sua elaboração e promulgação. Conforme assinalou Alves (1994, p. 47), embora tenha sido
aprovada na Assembleia Geral sem votos contrários, e com apenas oito abstenções, o
processo foi marcado pela denúncia de que o texto exprimiu uma perspectiva meramente
ocidental sobre os direitos humanos. Esse questionamento foi levantado precisamente pela
União Soviética e alguns dos países a ela circunscritos politicamente, que indicaram um
vínculo estreito entre a Declaração e os ideais ocidentais. Foi nesse sentido que, durante as
sessões de elaboração da DUDH, o representante da diplomacia iugoslava advertiu que:

(...) la Declaración se ha limitado a enunciar antiguos conceptos, y la


delegación de Yugoeslavia lamenta que los esfuerzos tenaces de ciertas
delegaciones, especialmente los de la delegación de la U.R.S.S., cuyos
puntos de vista comparte la delegación yugoeslava, no hayan encontrado a
este respecto, una mayor comprensión en la mayoría de los miembros de la
Comisión y que gran número de propuestas que hubieran dado a la
Declaración un carácter progresivo y decisivo hayan sido rechazadas. Sólo
en algunos artículos de la Declaración se ha ampliado la categoría

10
Essa dinâmica também pode ser observada por meio do estabelecimento das teorias tradicionais das
Relações Internacionais. Da mesma forma que o predomínio da vertente liberal no início da área acadêmica das
RI também servia como resposta à Revolução Russa, o fortalecimento da perspectiva realista mostrou-se como
importante recurso analítico para a academia e os centros de decisão diplomático-militares dos EUA e de países
capitalistas europeus, em um cenário no qual havia o fortalecimento da URSS e o crescimento da perspectiva
socialista em diversas partes do mundo. Desta forma, a emergência das teorias tradicionais de RI pode ser lida,
dentre outros elementos, “como uma produção de saber voltada à capacitação conceitual e estratégica de
Estados democrático-capitalistas dispostos a enfrentar o socialismo de Estado em ascensão” (RODRIGUES,
2010, p. 53).
12
tradicional de los derechos del hombre mediante la inclusión de
disposiciones referentes a los derechos sociales.11

Tal apontamento é indicativo de que ao longo do processo de elaboração da DUDH,


estabeleceu-se uma disputa entre os dois blocos que se conformavam na chamada Guerra
Fria, atrelados a Estados Unidos e União Soviética – os responsáveis diretos pela
capitulação alemã, em 1945. Isso porque ambos os lados buscaram estabelecer uma
relação de proximidade e correspondência entre as prescrições da Declaração e as
diretrizes políticas e sociais que cada um deles representava; esquematicamente, o
capitalismo e o comunismo. Um esforço, pois, para fazer com que a DUDH tendesse a
certos princípios que se tornariam universais desde suas perspectivas políticas. Ou seja,
fundamentalmente baseados, por exemplo, na liberdade ou na igualdade, que refletia, de
maneira oposta, dois dos símbolos das doutrinas em competição.
Sintomaticamente, ao fim das negociações, entre os nomes destacados como
principais responsáveis pela escritura da DUDH, estavam os da ex-primeira-dama
estadunidense, Eleanor Roosevelt, e do influente jurista francês René Cassin. O texto, por
consequência, em seus 30 artigos, conforme mostrou Alves (1994, p. 46-47), dividiu-se em
sete categorias, nas quais se agruparam direitos pessoais (artigos 2, 3 4, 5, 6, 7 e 15);
direitos judiciários (artigos 8, 9, 10, 11 e 12); normativas sobre liberdades civis (artigos 13,
18, 19 e 20); direitos de subsistência (artigo 25); direitos econômicos (artigos 17, 22, 23, 24
e 26); direitos sociais e culturais (artigos 26 e 28); e direitos políticos (artigos 21 e 29).
Desse modo, tensionou para uma perspectiva que privilegiou direitos pessoais, civis e
econômicos, e que pouco abordou direitos sociais, destacando, por exemplo, o direito à
propriedade privada, o direito à liberdade de expressão e o direito ao sufrágio; e, em seu 29°
artigo, indicando a democracia como modelo de governo compatível com a plena execução
e respeito aos direitos humanos.
Um dos efeitos dessa tendência foi então a recusa ao documento, através da
abstenção no processo final da Declaração, por parte da União Soviética e mais cinco
países que compunham seu bloco (Bielorrússia, Iugoslávia, Polônia, Tchecoslováquia e
Ucrânia), além da África do Sul e Arábia Saudita. De maneira geral, o argumento que
sustentou essa posição foi de que as normativas da Declaração seriam regimentos dirigidos
à viabilização mundial do sistema capitalista, assim como não respeitavam os costumes
sociais e diversidades culturais dos diferentes povos, já que teriam padronizado diretrizes
sobre os direitos humanos de uma forma estanque, baseada na categoria de cidadania

11
Cf.: “Sesíon plenária de la Asamblea General: Continuación de los debates sobre el proyecto de Declaración
Universal de Derechos del Hombre: Informe de la Tercera Comisión (A/777)”. Proyecto de resoluci6n propuesto
por la Unión de Repúblicas Socialistas Soviéticas (A/785/Rev. 2. Dicembre 1948). Disponível em:
<http://www.un.org/es/comun/docs/?symbol=A/PV.183>. Acesso em: 18 jun. 2018.
13
proveniente das Revoluções Burguesas do século XVIII. Ou seja, teriam ignorado a
pluralidade e as divergências sobre o sentido ou entendimento do que seriam, de maneira
ampla, os direitos humanos.
Segundo Lafer (2008, p. 311), no esforço de contra-argumentação a esse
questionamento, ainda durante o processo, a Comissão de Direitos Humanos – fortemente
influenciada pelos Estados Unidos –, requisitou apoio da Unesco para a realização de uma
pesquisa em diversos países sobre a condição de correspondência dos principais
enunciados do documento com as mais distintas tradições sociais e culturais do mundo.
Realizada visando afastar os argumentos em torno do chamado relativismo cultural, o
resultado da pesquisa teria produzido um efeito legitimador ao supostamente indicar que
haveria um denominador comum entre os diferentes povos no que diz respeito aos
entendimentos sobre direitos humanos e sobre o sentido geral de humanidade, abrindo o
caminho, ainda que diante das controvérsias e críticas, para sua proclamação como
universal.12 Situação, no entanto, que só teria alcançado êxito sem votos contrários pelo
caráter não vinculante da Declaração, isto é, por ter sido inscrita como um registro jurídico
que não obrigava as partes contratantes a cumprirem suas diretrizes (RAMINA,
FRIEDRICH, 2018).
É importante ressaltar, contudo, que o que estava em jogo por parte da União
Soviética e seus apoiadores derrotados nos processos de negociação da DUDH era
igualmente a intenção de espelhar os direitos humanos conforme sua perspectiva política, e
não uma abordagem que seria supostamente mais fiel, completa ou verdadeira sobre o
conteúdo dos direitos humanos. Objetivamente, isso significava o propósito de introdução de
normativas que ficaram conhecidas como direitos de segunda geração, e que só obteve
respaldo anos mais tarde, a partir dos acordos que resultaram na inscrição do Pacto
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 1966, também por meio da
Assembleia Geral das Nações Unidas. Os direitos de segunda geração, como ficaram
conhecidos, foram regulamentações dirigidas a garantia do direito à saúde, à educação, ao
trabalho e condições de vida dignos, entre outras medidas cuja ênfase se centrava no
princípio de igualdade social dos Homens. Diferentes, portanto, dos direitos de primeira
geração, que compuseram o cerne da Declaração por ela ter sido direcionada, de maneira
fundamental, à garantia do direito à vida e ao reconhecimento das liberdades individuais dos
Homens.

12
Para Makau Mutua (2001), a construção da concepção de vítima a partir da DUDH é um dos exemplos que
balizam a crítica à pretensa universalidade dessa declaração. Isso porque em seus princípios e proposições
haveria o reconhecimento de apenas um tipo particular de vítima decorrente de transgressões de direitos
humanos internacionalmente reconhecidos. Por exemplo, uma pessoa que morre de fome ou sofre de
desnutrição por falta de acesso a alimentos não é reconhecida como uma vítima de direitos humanos. Isto
demonstra o status secundário dos direitos econômicos e sociais na jurisprudência dos direitos humanos
subjacentes à DUDH.
14
Desdobramentos da DUDH, tanto o Pacto Internacional de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, quanto o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos13, também
acordado em 1966, igualmente mostraram como as correlações de força da Guerra Fria
moldaram os direitos que neles foram inscritos. Com entrada em vigor somente dez anos
mais tarde, em 1976, é notável como seus destravamentos coincidiram com a chamada
détente, período em que as disputas entre os blocos comunista e capitalista arrefeceram.
Nesse mesmo sentido, é também notável a não ratificação, por parte dos EUA, do Pacto
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, mais uma posição que mostrou
como as definições e determinações acerca dos direitos humanos estavam submetidas a
enfrentamentos, embates e interesses políticos factuais, que incluíam negócios e
negociações, ajustes, conquistas e recuos nas relações de poder, guerras, acordos e
desacordos diplomático-militares; seja nos gabinetes dos organismos internacionais, seja
nos campos de batalha dos conflitos vinculados aos dois projetos de expansão geopolítica
sob áreas de influência nos chamados países periféricos.
Para além da problematização sugerida por essa análise, é também relevante
destacar que a Declaração e seus desdobramentos pouco a pouco fixaram, subjacente à
grande atenção política dirigida à Guerra Fria – e independentemente da oposição
doutrinária a ela associada –, a imposição jurídica do reconhecimento de uma personalidade
internacional aos Homens. Isso porque estabeleceu uma farta regulamentação sobre os
costumes a serem prescritos à humanidade, autorizando ações para a proteção ou defesa
dela em seu percurso de vida. Um investimento que, paralelamente ao exercício tradicional
das relações internacionais, situou as condições de existência da humanidade como um
interesse a ser tratado por ações políticas da esfera nacional à esfera transnacional,
demarcando as primeiras noções ou percepções mais efetivas sobre o nascimento de uma
sociedade civil global. Assim, agenciamentos governamentais exercidos em concerto por
Estados, organizações internacionais, instituições não governamentais e demais agentes,
passaram a arregimentar, por exemplo, políticas dirigidas à segurança humana. Uma
categoria utilizada para coordenar e ativar ações que, embora de maneira lenta e não linear,
e em meio às dinâmicas de guerra e paz, voltam-se à produção de cuidados e atenções aos
Homens por meio da gestão e de controles sobre as populações do planeta.
Sobretudo a partir das décadas de 1980 e 1990, quando novos enquadramentos e
derivações das diretrizes da DUDH foram estabelecidas em vários protocolos, programas,
projetos, acordos e tratados, essa função gradativamente exercida pelo documento e seus
efeitos ficaram ainda mais evidentes. Manifestações que foram viabilizadas, otimizadas e

13
Cf.: “Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos” (1966). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm>. Acesso em: 20 jun. 2018.
15
aglutinadas, exemplarmente, em torno da cultura de paz, da responsabilidade de proteger,
dos objetivos do milênio, e que emergiram como uma tecnologia de poder de investimentos
securitários confirmadores aos direitos humanos. Assim, cada vez mais se tornou notável a
ativação frequente de um conjunto de dispositivos, de combinação jurídico-político-
diplomática, operacionalizado para prevenir e conter ameaças, calcular riscos e prejuízos,
equacionar vulnerabilidades avaliadas como perigos à humanidade. Por consequência,
dirigido a produzir qualidade de vida, desenvolvimento sustentável, tolerância entre os povos
em um mundo melhor.
Todavia, como função decorrente da Declaração, mesmo discursada como de
exercício universal, a confirmação dos direitos humanos ora requerida e executada, além de
ser parametrizada pelas balizas da cidadania – carregando, portanto, as procedências
dessa categoria –, não é sinalizadora de um geral e irrestrito atendimento de direitos aos
seres humanos. Acompanhando apontamentos de Rodrigues (2012, p. 9) acerca do
aparecimento do conceito de segurança humana, é possível indicar que os efeitos
propagados pela DUDH são produtores de ações planetárias empreendidas para o governo
das populações, gerindo e dispondo, no interior delas, misérias e riquezas, deslocamentos e
sedentarismos, vulnerabilidades e potencialidades, crises e desenvolvimentos, déficits e
superávits, violentações e pacificações. Nesses termos, significa dizer que ao fixar, amparar,
respaldar uma governamentalidade fundada no provimento daquilo que foi concebido como
direitos humanos – para além e aquém da soberania –, a DUDH projeta a produção
contínua de uma vida segura para a humanidade a partir de balizas representativas de certo
modelo de democracia liberal de mercado, com todas as implicações biopolíticas que isso
pressupõe.
É através dessa proposição analítica que podemos sugerir uma mirada sobre a
Declaração Universal dos Direitos Humanos que atente para os seus dispositivos e
reverberações enquanto inscrição formal, solene e silenciosa de uma declaração de guerra.
Isto é, uma declaração de guerra contra as formas ou manifestações políticas em desacordo
com suas disposições tornadas universais; contra os Estados violadores de suas previsões;
contra os comportamentos, costumes e culturas tidos como excêntricos, exóticos, estranhos
ou atrasados; e, sobretudo, contra os grupos de indivíduos e parcelas de populações
avaliados como perigosos à produção da vida segura.

4. A DUDH e a cruzada de “civilizados” contra “bárbaros”

A exposição acima, atravessada pelo interesse em questionar se a Declaração


Universal dos Direitos Humanos opera como um dispositivo normativo orientado para o
16
acompanhamento dos processos de vida das populações do planeta, encontra seu
embasamento analítico nos estudos de Michel Foucault sobre a governamentalidade.14 Tal
categoria foi proposta por Foucault (2008, p. 138) a partir de análises dedicadas ao
surgimento do que denominou de “problema da população”, e o consequente aparecimento
de uma nova forma de dominação política. Identificado por volta do século XVIII, em países
europeus que apresentavam à época um aumento demográfico acompanhado de
crescimento econômico e da circulação monetária e de produtos, o chamado problema da
população, de acordo com o autor, teria colocado em evidência novas urgências que
provocaram o desbloqueio de uma arte de governar dedicada ao desenvolvimento de
aparelhos, normas e técnicas destinadas à uma atenção ao conjunto dos Homens e às
coisas que lhes são peculiares. Distinta do exercício de reinar ou comandar – centrado no
objetivo fundamental de conquista, manutenção e controle de territórios –, essa
governamentalidade teve na emergência da biopolítica um de seus principais traços ou
características.
Segundo Foucault (2005, p. 289), a biopolítica – ou o biopoder –, de maneira
abreviada, pode ser caracterizada como uma atenção política à espécie humana. Nesses
termos, um conjunto de tecnologias de poder que se volta à produção de estabilidade no
interior dos agrupamentos humanos e ao acompanhamento de suas condições de
existência, buscando potencializar a vida humana pela contenção de acidentes, ameaças e
eventos fortuitos em seu curso, e pela criação de padrões comportamentais, regularidades,
normalizações para sua vivência. Um conjunto de tecnologias de poder, contudo, que
embora possua caráter de pretensa universalidade, precisamente por criar padrões, normas
e regularidades, opera pela cisão, exclusão, desqualificação, sujeição e efetivos
aniquilamentos de parcelas ou grupos de indivíduos no interior da sociedade. De acordo
com Foucault (Idem), um empreendimento que se volta àqueles que se mostram
inadequados, anormais, resistentes, desimportantes ao objetivo do biopoder de potencializar
a vida; leia-se, a vida destacada como digna de ser vivida.
Seguindo as análises de Foucault, é importante destacar que na estratégia
biopolítica de fazer viver, para se intensificar, desenvolver e fortalecer a vida, está sempre
intrínseca uma função de morte. Isto é, o exercício regular de deixar morrer aqueles que

14
Na perspectiva assumida neste artigo, os direitos humanos são um importante objeto para compreensão das
facetas contemporâneas e planetárias da concepção de governamentalidade trabalhada por Foucault (2008). Isto
é, enquanto um conjunto atual de investimentos, procedimentos e táticas alinhadas às institucionalizações e
gestões diante das novas ameaças à segurança da humanidade: a justificativa de promoção da conservação do
meio ambiente; o combate aos tráficos transterritoriais; o combate à pobreza extrema; o controle das migrações
massivas e das epidemias em larga escala; além da própria garantia dos direitos humanos. Entende-se que a
aplicação da noção de governamentalidade (enquanto forma de compreender como o poder é exercido, a partir
da análise de práticas de governo), em análises sobre relações de poder em âmbito global na
contemporaneidade, contribui para a identificação de como as novas ameaças transterritoriais e a
implementação de um modelo democrático-liberal são tidos enquanto objetivos a serem compartilhados e
executados por toda a comunidade internacional.
17
impedem o pleno investimento biopolítico, seja por meio da morte factual, seja por meio da
morte política. E é nesse sentido em que também podemos observar, a partir da proposição
de que a DUDH e seus efeitos sobre a produção e afirmação dos direitos humanos
executam redimensionamentos contemporâneos do biopoder, que o documento, com suas
normativas e demais reverberações políticas, também exerce uma função de morte, uma
declaração de guerra.15 Ou seja, por investir em uma forma de vida referencial,
necessariamente executa desqualificações, sujeições e aniquilamentos de grupos de
indivíduos e populações no planeta, sendo essa a maneira através da qual, precisamente,
se torna possível defendê-la, protegê-la e, sobretudo, produzi-la.
Ao alertar para a necessidade de problematização dos direitos humanos como
“valores eternos, metajurídicos”, Agamben (2002, p. 137-138) destaca como “uma das
características essenciais da biopolítica moderna [...] é a sua necessidade de redefinir
continuamente na vida, o limiar que articula e separa aquilo que está dentro daquilo que
está fora”. Assim, segundo o autor, no estabelecimento das articulações e dos limiares que
permitem isolar uma “vida sacra”, opera-se não apenas a cisão entre cidadão e não cidadão,
mas, para além disso, uma separação entre humano e inumano. Nesses termos é que
podemos indicar como a DUDH está inserida em uma dinâmica na qual o Direito
Internacional, em geral, e os Direitos Humanos, em específico, operam em uma lógica
seletiva e hierarquizante, diferenciando os mais humanos daqueles que são menos
humanos ou menos que humanos.
Segundo Makau Mutua (2001, p. 201), o movimento pelos direitos humanos –
constituído pela coleção de normas, processos e instituições derivadas da Declaração
Universal dos Direitos Humanos – é marcado por uma “metáfora condenatória”, que retrata
uma disputa épica que coloca “selvagens”, de um lado, contra “salvadores”, do outro. Para o
autor, a DUDH, o mais grandiloquente de todos os documentos de direitos humanos,
endossa a lógica dualista de que na luta entre o bem e o mal, a vitória do primeiro só é
possível através da universalização das normas e dos valores eurocêntricos, demonizando,
por consequência, tudo o que é diferente, que representa o “Outro”. Desse modo, em meio a
uma perspectiva redentora, o documento reproduz a manutenção do domínio conceitual e
cultural ocidental nos últimos séculos, ao reverberar um padrão histórico segundo o qual
toda a moralidade vem da capacidade civilizadora do Ocidente. Não por acaso, o
Holocausto é visto como um “acidente de percurso”, uma ruptura pontual em relação à
história dos direitos humanos estabelecida desde a Revolução Francesa.

15
Não por acaso, nas décadas posteriores ao lançamento da DUDH, viu-se o inverso da harmonia professada
pela declaração: “as guerras se multiplicaram em todo o mundo, os massacres e genocídios eram cada vez mais
comuns, e houve o alargamento do abismo entre os países do Norte e os países do Sul” (BACK; MENDONÇA,
2008, p. 416).
18
Na sequência de suas análises, Mutua (2001, p. 210) então indica como qualquer
crítica que se direcione a DUDH deve reconhecer que o movimento pelos direitos humanos,
tal como o movimento das cruzadas, carrega consigo um conjunto de contradições. Isso
porque, embora o movimento dos direitos humanos esteja localizado dentro de certo
monopólio de virtudes por parte do Ocidente, é fundamental notar como as atrocidades
europeias contribuíram para as barbaridades que a DUDH alega combater. No contexto de
criação da Declaração era evidente a indiferença quanto às violências perpetradas por
europeus fora de seu território, com suas consequências bárbaras e dimensões genocidas,
tais como a escravização dos africanos ou a colonização dos asiáticos, africanos e latino-
americanos. E é nesse sentido que Mutua (Idem, p. 211) ressalta que as barbaridades do
Holocausto promovidas pelo Nazismo – um governo branco europeu –, predominantemente
contra os judeus – um povo branco em território europeu –, foram centrais para a
concretude atingida pelo movimento dos direitos humanos. O cenário no qual a DUDH foi
aprovada teria sido influenciado pela sensação desconfortável experimentada pelos
europeus quanto ao fato de serem alvos de declaradas discriminações e repressões,
quando experimentaram, de forma mais latente, a letalidade que atravessa a biopolítica.
Ao mesmo tempo em que os demais países europeus negavam a validade das
tentativas nazistas de demonstrar a superioridade da raça ariana, a supremacia ocidental
permanecia sendo formalmente afirmada em colônias na África e Ásia (para além do deixar
morrer que caracterizava as práticas biopolíticas em âmbito doméstico). Conforme destaca
Césarie (2000, p. 36), o Nazismo era uma nova forma de representação de todos os
“barbarismos diários” previamente colocados em prática por nações colonizadoras. Assim,
provocativamente, indica como haveria um Hitler habitando cada humanista que era
condescendente com os procedimentos colonialistas antes que eles fossem aplicados,
durante o Nazismo, no próprio território europeu. O universalismo e humanismo ocidentais
que permeiam a DUDH estão, portanto, umbilicalmente associado à prévia naturalização da
violência no mundo colonial e à transformação de povos colonizados em bárbaros.
Embora os discursos que justificavam uma hipotética separação entre o mundo dito
civilizado e o colonial tenham sofrido modificações após a promulgação da DUDH, isso não
significou a rejeição da ideia de civilização como um objetivo da ordem global política e
jurídica que ascendeu no pós-Segunda Guerra Mundial. Não por acaso, a ONU passou a
desenvolver técnicas para avaliar e corrigir comportamentos considerados indesejados e
irracionais em todas as regiões do mundo. Inclusive, Fernández (2018, p. 520) alerta que a
partir do final da Guerra Fria “o movimento de provincializar os direitos humanos tem se
revelado ainda mais premente dada a crescente mobilização da gramática dos direitos
humanos nas intervenções humanitárias”. Na paz liberal que passou a ser exportada via

19
intervenções, os direitos humanos, ao lado da democracia liberal, são vistos como
elementos imprescindíveis para a paz internacional. Assim, ao discurso jurídico-político no
qual está ancorada a segmentação do mundo em povos civilizados e bárbaros se inseriu
outro dualismo: a divisão entre sociedades liberais e não liberais, em que os primeiros são
entendidos como moralmente superiores, e, consequentemente, plenamente capacitados
para realizarem as intervenções tidas como necessárias para o estabelecimento de uma
justiça universal.
É sugestivo, por exemplo, que ao escreverem o volume dedicado aos direitos
humanos para o Projeto de História Intelectual das Nações Unidas – uma série com 17
volumes publicados entre 2001 e 2010 –, Roger Normand e Sarah Zaidi (2008) tenham
fornecido ao livro o título “Direitos Humanos na ONU: A História Política da Justiça
Universal”, além de intitularem o capítulo 4, dedicado à relação entre a construção dos
direitos humanos internacionais e os embates entre os países Aliados e as potências do
Eixo, como “A Cruzada de Direitos Humanos na Segunda Guerra Mundial”. Essa “cruzada”
em prol da defesa dos direitos humanos no contexto desse conflito internacional
representaria a execução de certa concepção de “justiça” baseada em princípios
“universais”. Tendo em vista a referência histórica associada à palavra “cruzada”, é possível
depreender que as proposições de Normand e Zaidi fornecem margem para uma releitura
das batalhas que resultaram na DUDH nos termos da concepção medieval e civilizatória de
guerra justa.
De forma associada a conceitos como “Estado falido” e “Responsabilidade de
Proteger”, nas últimas décadas viu-se uma ênfase ainda maior no resgate da teoria da
guerra justa como forma de justificar o uso permissivo da força contra Estados, grupos e
indivíduos que não respeitam os princípios liberais, tais como os direitos humanos. Vale
ressaltar que a autoridade irrestrita e autoconcedida como uma responsabilidade para
proteger é, acima de tudo, das potências ocidentais em detrimento dos demais países, ou
seja, o movimento contrário não é uma possibilidade. Para verificar os efeitos biopolíticos
dessa justiça universal, inequivocamente ancorada na DUDH, a chamada Guerra ao Terror
é um exemplo ímpar, pois expõe, de maneira patente, a violência contra inimigos em nome
dos valores ocidentais.
Em seu texto Lines of Insecurity: International, Imperial, Exceptional, R. B. J. Walker
problematiza algumas regras aceitas como “sacrossantas” que permeiam a “ordem
internacional moderna” (2006, p. 69). Dentre tais princípios, o autor destaca que a vida
política moderna ainda é realizada a partir do binômio “bárbaros” versus “modernos”, um
artifício responsável por decidir sobre quem pode ser tratado como ser humano
propriamente dito, e a quem não cabe a participação na ordem internacional

20
contemporânea, por não estar apto a ser reconhecido como um membro legítimo da
comunidade internacional. Escrevendo em meio à Guerra ao Terror, Walker sugere como o
combate aos terroristas islâmicos e aos governos que estariam associados a eles – naquele
momento, o exemplo mais sintomático era Saddam Hussein –, reforçaria uma antiga
produção de alteridades nas relações internacionais. As ações de diversos representantes
do Ocidente no pós-11 de setembro seriam mais uma amostra de como constituem-se os
termos para inclusão/exclusão daqueles “Outros” que atuam à revelia dos comportamentos
aceitáveis, limites e fronteiras do que é considerado a legítima vida política moderna no
ordenamento internacional vigente.

Mais recentemente, vimos a dupla tentativa de dar prioridade (altamente


seletiva) a valores supostamente internacionais (geralmente entendidos
como humanitários ou simplesmente universais) sobre o princípio da não-
intervenção, e a tentativa relacionada de enquadrar vários povos como
bárbaros, que estariam além dos limites do moderno/internacional (a figura
do terrorista islâmico) e além dos limites do comportamento aceitável por
parte de um estado soberano (a figura de Saddam Hussein como tirano
assassino). (WALKER, 2006, p. 72).

Essa experiência contemporânea de produção de alteridades “bárbaras” ilustra o


contínuo estabelecimento de critérios articulados temporalmente para a definição de quais
vidas devem ser potencializadas e quais mortes podem ser negligenciadas ou precisam ser
providenciadas. Em meio à definição dos comportamentos agora16 inaceitáveis por parte de
Estados e indivíduos, a operacionalização dos direitos humanos enquanto valores universais
guarda recorrentes relações com a proscrição de figuras “não modernas” – como o
“terrorista” –, localizadas “fora” das diretrizes e práticas afeitas à política considerada
legítima enquanto sinônimo de “paz civil”. Figuras que, por consequência, representariam o
que é “externo” ao sistema internacional moderno. Em meio à atribuição do caráter universal
aos direitos humanos – por serem supostamente inerentes a todo e qualquer indivíduo – sua
construção e aplicabilidade é demarcada pelo “pressuposto de que toda ordem político-
jurídica inter/nacional é constituída por práticas soberanas de inclusão e exclusão, práticas
essas que concomitantemente autorizam e legitimam a delimitação de um ‘dentro’ e um
‘fora’, e de suas correspondentes subjetividades” (YAMATO, 2014, p. 7).

16
São vários os exemplos que demonstram como a conveniência impera no momento de definir quais e quando
as violações de direitos humanos devem ser combatidas. No que tange ao exemplo específico apresentado por
Walker em relação à Guerra ao Terror, basta lembrar que Saddam Hussein manteve uma relação considerada
amistosa com os EUA desde o golpe de Estado que o colocou no poder, em 1969 (com destaque para o apoio
recebido durante a Guerra Irã-Iraque, na década de 1980). Em relação ao suporte a grupos ou indivíduos
associados ao terrorismo internacional, é possível mencionar o treinamento oferecido pela CIA ao cubano Luiz
Posadas Carriles, o qual passou décadas organizando atentados em Cuba (incluindo, em 1976, chegou a
derrubada de um avião civil, vitimando 76 pessoas). Seu parceiro Orlando Bosch esteve envolvido com a
Operação Condor, que consistiu na colaboração político-militar entre ditaduras sul-americanas nas décadas de
1970 e 1980, visando perseguir os que se opunham a esses regimes autoritários. Também é possível ressaltar o
famoso escândalo Irã-Contras, quando a CIA vendeu armas ao Irã para financiar os Contras, grupo antigoverno
da Nicarágua que recorria a práticas terroristas.
21
Verifica-se, dessa forma, uma espécie de regra de admissão à política moderna, a
qual, segundo Walker (2006, p. 71), também pode ser observada nas histórias, descrições e
análises predominantes sobre a expansão da sociedade internacional, as transições do
colonialismo para a autodeterminação nacional, o chamado padrão civilizacional que
atravessa o direito internacional, e a teleologia da modernização enquanto processo de
desenvolvimento, maturidade e internalização de uma razão/humanidade supostamente
universal. Na atualidade, tal princípio poderia ser observado, conforme já ressaltado, dentre
os múltiplos interesses que determinam os apelos por um projeto de paz liberal a ser
aplicado por todos os Estados que advogam certo status de “modernidade”, a partir do qual
todos devem estar em conformidade com preceitos básicos de justiça e conduta
cosmopolitas, associados à democracia e ao direito internacional. Segundo Richmond
(2010), a efetivação dessa “paz liberal” se mostra ontologicamente incoerente e oferece
diversos estados de ser:

(...) um mundo estado-centrista dominado pelas democracias constitucionais


soberanas, um mundo dominado por instituições e um mundo onde os
direitos humanos e a autodeterminação são válidos. O único caminho onde
este sistema de paz pode ser coerente é no caso de ser compreendido
enquanto hierárquico e regulativo, liderado por hegemonias que definem as
prioridades políticas e econômicas, e que providencia a estrutura que os
direitos humanos e a autodeterminação podem ser observados. (ibidem, p.
29).

Dessa forma, na consolidação da chamada governança global contemporânea é


fortalecido o desprezo pelas formas de democracia não-anglo-saxãs, ao passo que a forma
liberal é considerada como a única aceita e legítima. Em consequência, se os Estados que
são alvo de processos de peacebuilding não aceitam as condições da democracia liberal
euro-americana, esta é imposta pela força, em nome da civilização e progresso humanos,
embora tais termos não permeiem explicitamente os discursos que legitimam as atuais
intervenções. Segundo Paris (2002, p. 637-638), embora os modernos peacebuilders
abrandem o uso da linguagem dicotômica entre “civilizados” versus “incivilizados”, “eles
parecem agir a partir da crença de que um modelo de governança doméstica – democracia
liberal de mercado – é superior a todos os outros”.
Conclui-se que o movimento dos direitos humanos, atrelado à promulgação da
DUDH, é um elemento central da tentativa de estabelecer parâmetros de normalidade
globais operados pelo intuito de controle das populações do planeta a partir da efetivação de
certa paz liberal. Assim, não surpreende que as diretrizes e princípios expostos a partir da
DUDH funcionem amplamente como forma de identificação e contenção daqueles que são
considerados inferiores ou insubmissos (pobres, criminosos, terroristas, anormais, migrantes
precários, refugiados, etc.). Embora seja apresentada como a redenção da humanidade, a

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DUDH encabeça um conjunto de normas e práticas culturalmente tendenciosas e inerentes
ao pensamento e filosofia liberais, que reafirma uma antiga missão civilizatória eurocêntrica
e representa o resultado de determinadas relações de forças ao final da Segunda Guerra
Mundial.
O tratamento dos EUA aos detidos no âmbito da Guerra ao Terror ou as recentes
detenções de migrantes como forma de dissuadir os “refugiados econômicos” são apenas
alguns dos exemplos do redimensionamento das práticas biopolíticas e de sua relação com
os direitos humanos. Atentar para o caráter biopolítico dos direitos humanos não significa
observá-los a partir de um olhar maniqueísta, pois, conforme ressalta Mutua (2001, 210), os
direitos humanos não são ruins per se. Pelo contrário, essa perspectiva analítica permite vê-
los para além de sua positivação em instrumentos normativos internacionais,
compreendendo-os como resultados, sempre provisórios, de lutas constantes em um
ambiente de disputa de poder.
Dessa forma, é possível avaliar a DUDH como eficiente maneira de gerir condutas
em âmbito global, tendo em vista seu pressuposto caráter universal e seu papel enquanto
núcleo de direitos que irradiam valores que determinam a vida humana em todo o planeta.
Isto é, que determinam a potencialização de uma forma de vida que podemos indicar como
orientada à utilidade, conformidade, sustentabilidade e ao apaziguamento, assujeitada não
mais diante do surgimento e fixação do capitalismo industrial – contexto estudado por
Foucault em suas análises sobre a biopolítica –, mas diante do cosmopolitismo e de fluxos
capitalistas financeiros, tecnológicos e comunicacionais.

5. Considerações Finais

O 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos tem motivado um


importante movimento de debates a respeito da internacionalização dos direitos humanos.
Em meio às avaliações produzidas, consta a preocupação em problematizar a DUDH
enquanto fruto de certa estrutura de poder nas relações internacionais. Tal questão é assaz
pertinente, visto que permanece patente o uso relativizado do discurso de defesa dos
direitos humanos, uma situação que se explicita diariamente, como, por exemplo, na
estratégia de separação de famílias para restrição do fluxos de migrantes precários e
refugiados, de ocorrência atual nos EUA. Em consonância com esse questionamento,
buscou-se, por meio deste artigo, contribuir com as reflexões críticas que problematizam
esse documento e seus efeitos, atentando, em especial, às suas pretensões universais para
a proteção da vida humana a partir de uma matriz liberal ocidental.

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Como consequência da utilização da analítica foucaultiana, foi possível apontar,
mesmo que de forma sucinta, as procedências violentas do direito, não apenas enquanto
resultado de sangrentas batalhas, mas também como instrumento de fixação de tais
conquistas a partir de relações assimétricas e de subjugação. Tal discussão foi necessária
para situar a DUDH enquanto um artifício jurídico nascido na guerra, isto é, como um direito
marcado pelo sangue das batalhas da Segunda Guerra Mundial, e pelos embates e
correlações de força que atravessaram, posteriormente, a Guerra Fria. Ao utilizar a
perspectiva foucaultiana de continuidade silenciosa da guerra, foi possível problematizar a
DUDH enquanto um direito “ocidental” e um dispositivo biopolítico de pretenso caráter
universal. Tal esforço analítico contribuiu para a identificação de certa lógica dualista que a
perpassa, opondo os ditos civilizados e bárbaros. A DUDH reproduziria, portanto, a
manutenção do domínio conceitual e cultural ocidental nos últimos séculos, ao reverberar
um padrão histórico segundo o qual toda a moralidade vem da capacidade civilizadora do
Ocidente. Desta forma, em meio à estratégia biopolítica de potencializar determinada forma
de vida ocidental, está intrínseca uma função de morte contra populações/pessoas
historicamente exploradas e subalternizadas.
Ressalta-se que a ideia deste texto não é sugerir a perspectiva foucaultiana como
mais “legítima” para a compreensão da problemática dos direitos humanos, mas
potencializar a apropriação de possibilidades menos “tradicionais” de análise sobre essa
questão. Nesse sentido, por meio do esforço analítico contido neste artigo, espera-se
contribuir com as discussões que localizam a DUDH em meio aos discursos e interesses
que estabelecem certo “regime de verdades” que regula a estrutura da realidade
internacional contemporânea. Assim, buscou-se compreender a Declaração Universal
através de novas miradas, a partir de perspectivas que possam oxigenar as análises sobre a
problemática dos direitos humanos.

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