Você está na página 1de 1

As mãos de Ediene

Ediene tem 16 anos, rosto redondo, trigueiro, índio e bonito das meninas do
sertão nordestino. Vaidosa, põe anéis nos dedos e pinta os lábios com
batom. Mas Ediene é diferente. Jamais abraçará, não namorará de mãos
dadas e, se tiver filhos, não os aconchegará em seus braços para dar-lhes o
calor e o alimento dos seios de mãe. A razão é simples. Ediene não tem
braços.
Ela os perdeu numa maromba, máquina do século passado, com dois
cilindros de metal que amassam barro para fazer telhas e tijolos numa olaria.
Os dedos que enche de anéis são os dos pés, com os quais escreve, desenha
e passa batom nos lábios. Ediene, ainda menina, trabalhava na máquina
infernal, quando se distraiu e seus braços voltaram ao barro. Ela é uma das
centenas de crianças mutiladas, todos os anos, trabalhando como gente
grande em troca de minguados cobres, indispensáveis para manter a vida de
famílias miseráveis em todo o país.
Crianças que, a partir dos três anos, ajudam as famílias em canaviais,
carvoarias, plantações de sisal, garimpos e olarias, sem direito a estudo, a
brincadeiras, ao convívio dos amigos; infância para sempre roubada, para
ganhar entre R$ 12,50 e R$ 50,00 POR MÊS DE TRABALHO, COM JORNADAS
DE ATÉ 14 HORAS! Quanto tempo você leva para gastar R$ 12,50? O que
consegue comprar com isso?
Pense e reflita que custa UM MÊS de trabalho duro de um menino semi-
escravo no Brasil. [...]
Até quando? Talvez fosse o caso de aproveitar a proposta da reforma do
Judiciário e adotar de vez a lei muçulmana, a Sharia. O ladrão teria a mão
direita decepada. Se fosse crime hediondo (o que rouba criança e doente ou
explora o trabalho infantil é ladrão hediondo), perderia as duas mãos,
esmagadas numa maromba bem azeitada. O Aurélio define, entre outras
coisas, maromba como “esperteza e malandragem”. Se todos os
marombeiros e ladrões tivessem medo de perder as mãos numa maromba,
talvez Ediene não fosse obrigada a escrever com os pés, pudesse carregar
seu filho e acariciá-lo, feliz, com o carinho que só as mães sabem.
Fritz Utzeri. Jornal do Brasil. Caderno B, 2 dez. 1999.

Você também pode gostar