Você está na página 1de 13

A Luta pela Terra na década de 1960 e a presença de Jair de Moura Calixto. Uma análise preliminar.

CASSOL, Tiago Perinazzo. Universidade Federal de Pelotas1

Resumo
O artigo aqui apresentado tem como objetivo trazer a tona a luta pela terra no norte do Rio Grande do Sul, na
década de 1960, e a figura singular de Jair de Moura Calixto e sua atuação na defesa da Reforma Agrária.
Tratar-se-á de uma revisão bibliográfica, assim como procurar-se-á discutir a importância das Trajetórias
Individuais na construção historiográfica e seus avanços e limites colocados.

Palavras-chave: Reforma Agrária, Terra, Indivíduo, Historiografia.

1 Graduado em Licenciatura em História pela UFPEL. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da


UFPEL. Bolsista CAPES.
Introdução

Há dois anos venho pesquisando a questão da luta pela terra no Rio Grande do Sul e as mobilizações
empreendidas pelos camponeses, sobretudo no início da década de 1960, através do Master2, e a retomada
dessas lutas no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Com a possibilidade de cursar o mestrado, o objetivo
é aprofundar essas pesquisas3. O presente artigo é fruto de leituras realizadas na disciplina História e Sociedade,
do Programa de Pós-Graduação em História/UFPel, a partir disso e utilizando os conceitos relacionados à
História Social e, dentre esses, leituras vinculadas à importância das análises das trajetórias de vida, da micro-
história e suas perspectivas de escalas e o papel do indivíduo na história é que se abordará a trajetória de vida
de um personagem visto como “caudilho” por uns, “contraditório” por alguns, “violento” ou “revolucionário”
por outros, mas que esteve profundamente envolvido com a luta pela terra no Rio Grande do Sul, e com uma
das principais ocupações de terra que impulsionaram a luta camponesa no Brasil – a ocupação da Fazenda
Sarandi, no norte do Rio Grande do Sul, em 1962. Prefeito de Nonoai à época, cidade localizada ao norte do
Estado, esse personagem se insere, definitivamente, na história da luta pela terra gaúcha.
É importante destacar que essa análise se dará somente através de revisão bibliográfica, e a análise
de algumas fontes do Arquivo Nacional, visto a impossibilidade (pois ideal seria deslocar-me a cidade de
Nonoai para ter acesso às atas da prefeitura, realizar entrevistas de História Oral com quem vivenciou o período
em questão, por exemplo), nesse momento, para se construir, efetivamente, a trajetória desse personagem.

Os indivíduos na História
As abordagens acerca das Histórias de Vida dos indivíduos, durante muito tempo ocorreram com
disputas dentro da historiografia. À história das grandes narrativas, da longa duração e dos grandes heróis – a
história quantitativa; serial -, tão presente nos anos 1950/60 – que se propunha a identificar as “grandes leis”
do passado e a apontar seus “responsáveis” – há o surgimento da chamada história social4 (dos indivíduos, dos
grupos, das “minorias”) que introduz novidades em relação ao fazer história – como as metodologias presentes

2 O Movimento dos Agricultores Sem Terra, ampliado posteriormente para Movimento dos Agricultores Sem Terra,
Pequenos e Médios Proprietários, surgiu em 1960, no Rio Grande do Sul, a partir da tentativa de um proprietário de terras
de retomar uma área de 1.800 hectares situada em Faxinal, município de Encruzilhada do Sul, que há 50 anos estava em
poder de 300 famílias (ECKERT, 1984)
3 Com o título: “Os Sem Terra voltaram, os Sem Terra voltaram...”: uma análise sobre a história e as trajetórias dos
movimentos de luta pela terra no Rio Grande do Sul (1960 – 1980). Projeto de Mestrado, Universidade Federal de Pelotas,
2018.
4 “No início da década de 1960, a assim chamada história social (ou história econômico-social) tinha grande importância
na França e na Inglaterra, e era influente em outros países, embora o que se chamava “história tradicional” de fato
continuasse a predominar quantitativamente. […] Ela se caracterizava: (1) Pela diminuição da concentração na política e
nas instituições como objetos de estudo e uma preferência por temáticas econômicas, sociais strictu sensu (hierarquia e
estratificação, movimentos sociais, mobilidade social) e demográficas; (2) Por uma visão antisubjetivista e anti-
individualista da sociedade, aceitando como base teórica que ela existe objetivamente, tal como a causalidade social; as
explicações não se baseavam, como na história “tradicional”, no sujeito, segundo a visão burguesa da sociedade como
soma de indivíduos, e já não se insistia nas intenções subjetivas como explicação; a subjetividade, mais do que explicativa,
deve ser explicada e reflete um contexto social; (3) o sujeito é social, coletivo, e a causalidade transcende as vontades
individuais, que podem não perceber as verdadeiras causas; (4) a esfera social e econômica forma uma estrutura objetiva,
autônoma, cujo funcionamento produz significados intrínsecos: a esfera do mental e do cultural consiste em
representações do ser social”. (In: CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo (orgs). Novos Domínios da História.
Elsevier Editora Ltda, 2012.)
na micro-história e a substituição da busca dos heróis para os homens comuns -, incorporando novas
metodologias e criticando a “história sem as pessoas”. Essa passagem, de forma alguma, aconteceu de maneira
tranquila e sem percalços e, podemos afirmar, está presente desde o século XIX no fazer historiográfico.
A morte do herói não eliminou contudo a exigência de se estudar os indivíduos. Hoje
a aposta não é mais no grande homem (conceito banido e às vezes desprezado), e sim
no homem comum. Este último é o objetivo principal dos estudos sobre a cultura
popular, dos trabalhos de história oral ou de história das mulheres. O caminho foi
aberto por Edward P. Thompson que, tanto em oposição ao marxismo ortodoxo
quanto ao estruturalismo, devolveu sua dignidade pessoal aos vencidos da história, às
vítimas do passado. Desde então, a noção de experiência começou a erodir a de
estrutura. (LORIGA, p.244)

Se a morte do herói não eliminou a exigência em se estudar os indivíduos, também é verdade que a
própria historiografia tratou de escolher quais os aspectos a se levar em conta no momento de estudar essas
trajetórias. E nesse sentido, seja por influências do “fazer biográfico” ou mesmo das expectativas do leitor,
durante algum tempo os historiadores escreveram as trajetórias de indivíduos de forma idealizada. Na tentativa
de enquadrar essas trajetórias dentro do fazer historiográfico, esse período é marcado por linearidades, por
vidas “determinadas desde o nascimento” (KARSBURG, 2015), que de certa forma reforçavam a crítica a
esses mesmos heróis, não tão mortos assim. Há, apesar de tudo, novidades metodológicas importantes, como
nos assinala (SCHIMTD, 1997, p.5):
Metodologicamente, esta mudança implica o recuo da história quantitativa e serial e
o avanço dos estudos de caso e da micro-história. No círculo mais estritamente
acadêmico, é importante salientar a aproximação da história com a antropologia, na
qual o resgate das histórias de vida já é uma praxe, e com a literatura, preocupada
com as técnicas narrativas de construção dos personagens.

Essa aproximação com a antropologia e com a literatura, permitirá um novo olhar para os indivíduos,
pois há uma problematização desses percursos, inseridos em diferentes temporalidades e situações. O homem
puramente “racional” começa a dar lugar aos excluídos da história, aos indivíduos comuns. Essa contribuição
será importante para o avanço da história em relação à aproximação com diversos temas das demais ciências
sociais, e por afirmar-se como ciência capaz de ir além da simples narrativa. É a partir desses avanços que o
papel do indivíduo na história começa a ganhar novas possibilidades, assim como a utilização de fontes até
então negligenciadas como utilização da história oral; diferentes escalas de análises (projeto individual, projeto
social e os campos de possibilidades5, por exemplo); análise das redes de atuação desses indivíduos, através
do método prosopográfico e a busca de padrões e rupturas individuais, analisando as biografias coletivas.
LEVI (2001) nos provoca enquanto historiadores, quando, ainda, muitas vezes somos condicionados
a imaginar que essas histórias de vida são um modelo de racionalidade pronto e acabado:

Pode-se escrever a história de um indivíduo? Essa questão, que levanta pontos


importantes para a historiografia, geralmente se esvazia em meio a certas
simplificações que tomam como pretexto a falta de fontes. […] Em muitos casos, as
distorções mais gritantes se devem ao fato de que nós, historiadores, imaginamos
que os atores históricos obedecem a um modelo de racionalidade anacrônico e
limitado. Seguindo uma tradição biográfica estabelecida e a própria retórica da nossa

5 Ver VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura. Notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Jorge
Zahar editora, 8° edição (pp. 13-40).
disciplina, contentamo-nos com modelos que associam uma cronologia ordenada,
uma personalidade coerente e estável, ações sem inércia e decisões sem incertezas.

Nessa passagem fica clara a crítica ao fazer história de alguns historiadores, porém, muitas vezes a
escolha pela “simplificação e pretexto pela falta de fontes” devem-se a deficiências na própria formação
curricular dos cursos de História, na não discussão sobre inovações de pesquisa e novas possibilidades de
utilização de fontes. Contudo, devemos sim problematizar a forma como realizamos nossa narrativa e os
métodos e fontes as quais nos debruçamos.
É provável que essa “desculpa” se deva também a dificuldade em empreender essas pesquisas de
caráter individual. A realidade é indisciplinada, portanto, a necessidade em organizar e descrever a história,
uma disciplina, tende a nos forçar a construção de uma linearidade. Escrever biografias torna-se
aparentemente mais simples quando seguimos como horizonte uma linearidade preconcebida, mesmo ela
sendo inexistente. Materializamos isso quando construímos, a posteriori, uma determinada narrativa. Mesmo
assim, precisamos ter clareza de que, quando o fazemos, precisamos deixar claro ao leitor, ao longo do texto,
as nossas escolhas. Como observa MONTAGNER (2007):

A rigor, não existe, ainda que esta ideia seja extremamente atrativa e sedutora ao
senso comum, uma sequência cronológica e lógica dos acontecimentos e ocorrências
da vida de uma pessoa. […] Os eventos biográficos não seguem uma linearidade
progressiva e de causalidade, linearidade de sobrevoo que ligue e dê sentido a todos
os acontecimentos narrados por uma pessoa. Eles não se concatenam em um todo
coerente, coeso e atado por uma cadeia de inter-relações: esta construção é realizada
a posteriori pelo indivíduo ou pelo pesquisador no momento em que produz um
relato oral, uma narrativa. (p.251-252).

Precisamos, contudo, não esquecer que, embora o indivíduo faça parte e tenha papel ativo na
construção da história, existe todo um contexto em que esse indivíduo emerge. Esse contexto é a sociedade,
mais amplo, portanto, do que a simples trajetória individual. BOURDIEU (2006) nos provoca com a sua
“Ilusão biográfica”, chamando atenção de que a vida é feita de percalços, superáveis ou não, mas que influem
na nossa trajetória e que estamos em constante deslocamento no espaço social:

Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de
acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um “sujeito”
cuja constância certamente não é senão aquela de um nome próprio, é quase tão
absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a
estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações.
Os acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos no
espaço social […] O que equivale dizer que não podemos compreender uma trajetória
(isto é, o envelhecimento social que, embora o acompanhe de forma inevitável, é
independente do envelhecimento biológico) sem que tenhamos previamente
construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o
conjunto das relações objetivas que uniram o agente considerado – pelo menos em
certo número de estados pertinentes – ao conjunto dos outros agentes envolvidos no
mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço possível.

A trajetória que iremos analisar a seguir se insere nessa lógica. Não compactuo com a ideia de que
existem indivíduos “a frente de seu tempo”. Entendo que existem indivíduos que, por diversos fatores,
destacaram-se de alguma forma dentro de um contexto determinado, mas isso não os torna pessoas
“iluminadas”. A trajetória a seguir é, muito mais, a expressão de um momento coletivo da luta política
brasileira, materializada na luta camponesa, do que, simplesmente, capacidade individual.

A Trajetória de Jair Calixto: uma revisão bibliográfica

A década de 1960 é fundamental para entendermos a disputa pela terra e suas consequências no
Brasil e no Rio Grande do Sul. É desse período inicial que principiará a organização de um sujeito que durante
a história de nosso país luta, diariamente, para permanecer e transformar a realidade agrária: os/as
camponeses/as. A partir da década anterior, 1950, há a organização de diversos instrumentos de luta
camponesa: as Ligas camponesas6, a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB)7,
da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG)8 e do Movimento dos Agricultores
Sem Terra (MASTER), no Rio Grande do Sul. A luta pela terra no Rio Grande do Sul, principalmente no norte
do Estado, foi resultado dessa capacidade de organização camponesa que durante o início da década de 1960,
e sofre um forte impulso a partir da criação do Master e a política de Reforma Agrária idealizada pelo governo
de Leonel Brizola (1959 – 1962).9
A cidade de Nonoai localiza-se no extremo norte do Rio Grande do Sul e faz divisa com o Estado de
Santa Catarina. É uma região marcada, durante a sua história, pela questão agrária – seja por seu nascimento
enquanto cidade, como local de paragem de tropeiros (a partir do século XIX), seja pelas disputas por terra
empreendidas por colonos sem terra e índios caigangues. Nesse município, tornou-se conhecido um
personagem que, à sua maneira, empreendeu esforços para a realização da Reforma Agrária: Jair de Moura
Calixto.
Calixto nasceu no dia 10 de janeiro de 1921, no município de Chapecó/SC. Filho de Delfino Calixto
e Ceci Moura Calixto10. A maior parte das informações acerca da sua vida se devem a década de 1960, quando
Calixto torna-se prefeito de Nonoai. Durante esse período, Calixto foi uma das principais lideranças na luta

6 As Ligas foram uma forma de organização política de camponeses proprietários, parceiros, posseiros e meeiros que
resistiram a expropriação, a expulsão da terra e ao assalariamento. Foram criadas em quase todos os Estados e organizaram
dezenas de milhares de camponeses. Elas tinham o apoio do Partido Comunista Brasileiro, do qual eram dependentes.
(In: FERNANDES, 1999).
7 A ULTAB foi fundada em São Paulo, 1954, tendo à frente Lindolfo Silva, militante do PCB. Ela foi responsável pela
criação de associações de lavradores que buscavam organizar os camponeses e suas lutas. A partir do início dos anos
1960, as associações foram sendo transformadas em sindicatos. A ULTAB não só desempenhou papel fundamental nesse
processo de sindicalização, que culminou na criação, em 1963 da Confederação Nacional dos Trabalhadores da
Agricultura (Contag), como também se constituiu na principal força em ação no interior da nova entidade. Disponível
em: https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/glossario/ultab Acesso em: 21 de janeiro de 2018.
8 A Contag foi criada em 1963, sendo a representante oficial dos trabalhadores junto ao Estado.
9 “As primeiras indicações de que o governo Brizola pretendia tratar de questões relacionadas ao acesso a terra por parte
de pequenos agricultores foi dada a partir da criação da Comissão Estadual de Terra e Habitação (CETH) em 29 de
fevereiro de 1960” (ALVES). Uma das principais tarefas dessa Comissão foi elaborar um levantamento com os nomes e
localização de propriedades rurais acima de 2.500 ha no Estado, por exemplo. Também será criado, posteriormente
(1961), o Instituto Gaúcho de Reforma Agrária. Porém, é a partir da ocupação da Fazenda Sarandi que a política agrária
do governo Brizola se materializa.
10 Fonte: Conselho de Segurança Nacional. Estado do Rio Grande do Sul. Secretaria de Estado dos Negócios da
Segurança Pública. Departamento de Polícia Civil. 27 de abril de 1964. Referência:
br_dfan_bsb_n8_0_pro_pai_0018_0035_d0001de0001.pdf 10 páginas. Acervo: Arquivo Nacional. Pesquisa online.
pela terra no norte gaúcho e do Master, suscitando mitos, divergências, apoios e inimizades. Já no processo
eleitoral de 1959 isso se torna aparente, conforme CARINI e TEDESCO, 2007)11

Após ter sido delegado do SPI [Serviço de Proteção ao Índio] do Posto indígena de
Nonoai, Calixto ascendeu à política municipal em 1958, tendo sido elevado ao posto
de primeiro prefeito daquela comuna por uma coalizão de partidos […] Após
incompatibilizar-se com o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), partido ao qual
pertencia, Calixto cria em Nonoai o Partido Social Progressista (PSP) e decide
concorrer a Prefeito Municipal pelo mesmo, contra o seu antigo partido, numa aliança
com o Partido Social Democrata (PSD), Partido Libertador (PL) e a União
Democrática Nacional (UDN). Vitorioso no pleito municipal, Calixto monta seu
governo, porém, imediatamente após sua posse, rompe com os seus aliados e volta às
fileiras do PTB de Brizola, seu primo-irmão.

Na citação acima nota-se a referência a Brizola como “primo-irmão” de Calixto. De fato, eram
primos e militavam no mesmo partido. Essa relação entre os dois será muito debatida quando da ocupação da
Fazenda Sarandi, no ano de 1962, que trataremos mais adiante. Calixto era um homem de posições firmes,
intransigente na defesa da Reforma Agrária. Segundo relatos, antes mesmo de ser prefeito de Nonoai e portanto
uma figura mais conhecida, por algum motivo foi convidado a participar de um debate com estudantes sobre
o tema da Reforma Agrária, na PUC em Porto Alegre. Segundo CARINI e TEDESCO, conforme entrevista
realizada com narrador que conviveu com Calixto, quando questionado sobre sua opinião acerca do tema teria
afirmado: “Olha, meu amigo, a reforma agrária já está debatida demais neste nosso Congresso e este nosso
Congresso não vai resolver esse problema. Pra mim reforma agrária é igual a um filme mexicano: o camarada
vai entrando na propriedade, vai cortando o arame, vai balizando os lotes e vai dizendo: - Este aqui é teu,
este é meu, etc. De outra forma, não sai RA. Fica só na conversa de Deputado”12. Não sabemos como Calixto
vai adquirindo sua consciência; por quais motivos envereda por essa luta? Qual sua trajetória até a década de
1960? Essas são questões que necessitam serem aprofundadas.
Documentos presentes no Arquivo Nacional13, da Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança
Pública, Departamento de Polícia Civil do Rio Grande do Sul, relatam algumas atividades de Calixto a partir
do ano de 1950: teria protestado, o “marginado”, contra a Lei de Segurança, conforme o jornal comunista “A
Tribuna”; também conforme o referido jornal, Calixto teria se insurgido contra o envio de tropas brasileiras a
Coreia, declarando que no futuro “nossos patrícios não irão nem amarrados”. Também nesse documento há a
referência ao ano de 1954 e a uma tentativa de homicídio, por parte de Calixto, autor de disparo de arma de

11 Essa obra é a que melhor retrata o período aqui abordado e a trajetória de Jair Calixto. Baseada em entrevistas, análise
de fontes paroquiais e de jornais da época, os autores traçam uma abordagem sobre esse personagem, porém, não se
propondo a uma investigação biográfica. Ver mais em CARINI, Joel João; TEDESCO, João Carlos. Os conflitos agrários
no norte gaúcho: 1960 – 1980. Porto Alegre: Edições Est., 2007 (cap. 5, p. 81-99).
12 Esse episódio também nos é relatado por ALVES (2010), a reunião teria sido com estudantes de direito e a fala do
futuro prefeito de Nonoai teria sido essa (segundo uma fonte ouvida pelo autor): “A gente reúne o povo, vai entrando,
vai cortando os arames, vai balizando. E vai botando: aqui é você. Aqui é você. Essa é a legítima reforma agrária! De
outra forma reforma agrária não sai. Se não invadir, não entrar e não distribuir na hora, não sai reforma agrária!”(p.39)
13 Fonte: Conselho de Segurança Nacional. Estado do Rio Grande do Sul. Secretaria de Estado dos Negócios da
Segurança Pública. Departamento de Polícia Civil. 27 de abril de 1964. Referência:
br_dfan_bsb_n8_0_pro_pai_0018_0035_d0001de0001.pdf 10 páginas. Acervo: Arquivo Nacional.
fogo por ter sido ofendido quando se encontrava na janela de seu apartamento. Essas passagens podem nos
confirmar a disposição para o confronto? Essa será uma característica intrínseca a esse personagem?
A Campanha da Legalidade (1961) contribuirá para a radicalização da luta pela terra na região do
Alto Uruguai. Jair Calixto se valerá da defesa de Jango ser presidente14 para arregimentar voluntários (em
torno de mil voluntários armados, somente em Nonoai). Segundo registro paroquial, 20% desses por livre
vontade e 80% para “evitar casos piores” (CARINI E TEDESCO, 2007). Esses autores irão atribuir essas
práticas ao caudilhismo. Existem diversas narrativas sobre esse momento da Campanha da Legalidade: há o
relato de que teria mandado fechar o aeroporto de Nonoai com colocação de galões de gasolina, prontos para
serem explodidos em caso de aterrissagem por aviões inimigos; a necessidade de utilização de passaporte,
cedido por Calixto, para quem desejasse atravessar a fronteira com Santa Catarina, por exemplo. SIGAUD,
ROSA E ERNANDEZ (2008), afirma que:
Primo de Brizola e filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, Calixto era uma
figura polêmica e sobre ele pesavam acusações de ter assassinado um homem e
atentado contra a vida de outro. Em 1961, participou ativamente da campanha da
legalidade em prol da posse de João Goulart. Formou uma milícia com os habitantes
do município, barrou todas as entradas da cidade, enfrentou o Exército e, pelo menos
uma vez, teria ameaçado marchar com seus homens armados em direção a Porto
Alegre. Mesmo após a posse de João Goulart, manteve Nonoai em estado de guerra,
e foi nesse contexto que comandou a invasão da Sarandi. (p.113)

É interessante notar que a construção da figura de Jair Calixto está permeada por diversos mitos,
expressados na oralidade de quem viveu o período e permeada, portanto, de fantasias e folclores (a maioria
dos relatos dos acontecimentos presentes nos trabalhos que citam Calixto, baseiam-se em entrevistas com
quem conviveu e se restringem ao período de governo na prefeitura municipal de Nonoai)15. Um exemplo é
um texto, que me foi enviado pela Escola Municipal de Ensino Fundamental Jair de Moura Calixto, do
município de Nonoai com a qual fiz contato, via correio eletrônico, para saber se possuíam algum material
para me fornecer, visto a escola levar esse nome. O texto enviado caracteriza Calixto como alguém que “andava
sempre armado e com uma cartucheira atravessada em diagonal nos peitos”, portanto, “possuía espírito (e
rompantes) de bandoleiro social”16. Fiquei me perguntando se trabalham esse texto com os estudantes da
escola. Mas chama a atenção a pouca documentação sobre a história desse personagem, mesmo ele sendo
homenageado com o nome da escola. Por que motivo recebe essa homenagem? Lutou, também, pela educação
no município? Pesquisas posteriores poderão dar conta dessas lacunas.

14 A Campanha da Legalidade foi um movimento liderado pelo então governador do Rio Grande do Sul para garantir a
posse do vice-presidente João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961. A investidura de Jango na
presidência estava ameaçada por um veto imposto pelos ministros militares. Brizola então ―ocupou a Rádio Guaíba e a
Rádio Farroupilha, formando a chamada ‘cadeia da legalidade’, cujo objetivo era organizar a população em defesa da
posse de Jango. As mobilizações populares e as divisões nas forças armadas levaram a um impasse que só foi superado
com a aprovação, pelo Congresso, de emenda constitucional que implantou o parlamentarismo no país. ABREU, op. cit,
2001. Verbete: Leonel Brizola. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/biografias/leonel_brizola (In:
GASPAROTTO, 2016).
15 Ver: ALVES (2010); CARINI E TEDESCO (2007); SIGAUD, ROSA E ERNANDEZ (2008); STÉDILE E
FERNANDES (1999).
16 diariogauche.zip.net/arch2006-07-16_2006-07-31.html texto de Cristovão Feil. Enviado pela escola.
Mas voltando ao “caudilho socialista” ou ao “bandoleiro social”, assim que toma posse, Calixto, para
referendar esse estigma, segundo relatos colhidos em entrevistas (CARINI e TEDESCO), teria formado seu
próprio bando armado, para fazer valer suas ideias na gestão da prefeitura. Esse bando seria responsável por
“fazer arruaças pela cidade” e imprimir medo aos contrários a suas políticas. Ressaltando, na visão dos autores,
o caráter violento e de certa forma referendando a descrição acima, CARINI E TEDESCO reforçam:

Andar armado era para Calixto uma prática corriqueira e considerada normal. […] O
próprio prefeito costumava andar armado. Nosso entrevistado informa que “o assento
da cadeira dele – que alguém aqui de Nonoai tem guardada, não me lembro quem –
do lado direito, furou o forro, devido ao permanente atrito do cano do revólver. Aquilo
chegou a afundar. O revólver dele era um Schmith cano longo.

Porém, nesse período, andar armado era algo corriqueiro ou somente uma prática de Jair? Em se
tratando de disputas no campo, essa característica não subsiste, de certa forma, até os dias atuais? Jair Calixto
exprimia sentimentos opostos em quem com ele conviveu. Em outros relatos há a referência a ele como o
“Deus da caboclada”, em relação a sua escolha ao lado dos caboclos, na luta contra o latifúndio; seria, portanto
um revolucionário. Já na visão do padre de Nonoai, devia-se combater o comunismo, representado pelo Master
e pelo prefeito Calixto (esse embate irá se plasmar também a nível de Estado, com a Igreja Católica fundando
a FAG17 e propondo uma Reforma Agrária que não compactuasse com o “perigo vermelho” e com a política
de Brizola). Um episódio curioso se dá nessa disputa. Certa feita, segundo relato de entrevistado por CARINI
E TEDESCO, o padre vigário de Nonoai, durante o sermão de uma missa, tece duras críticas à política agrária
de Calixto e seu “movimento comunista”. Em represália, no amanhecer do dia posterior, Calixto manda fixar
uma faixa, na torre da Igreja, com os dizeres: “Quem tem terra tá com Cristo, quem não tem tá com Calixto”.
Esse episódio nos revela como a disputa pela terra estava colocada em termos explícitos, claros,
inclusive contrapondo poderes institucionais (Igreja Católica e Prefeitura Municipal) e que, após o término da
gestão de Brizola, com o governo de Ildo Meneghetti e o golpe militar de 1964, não será mais possível.

A ocupação da Fazenda Sarandi

A ocupação da Fazenda Sarandi18 revela um momento importante na história das lutas pela terra no
Rio Grande do Sul e também no Brasil. Os camponeses reivindicavam por acesso a terra e para permanecer
nela. A historiografia tem debatido tanto a questão de onde partiu a ideia de empreender tal luta, quanto quem

17 Frente Agrária Gaúcha (FAG). Fundada em outubro de 1961 por clérigos e leigos católicos, tal entidade concorria
com o Master na organização dos trabalhadores do campo e ganhou rápida expansão mediante o apelo para o engajamento
de fiéis na paróquia. (GASPAROTTO, 2016).
18 “A Fazenda Sarandi se tornou emblemática na questão da luta pela terra no RS pelas invasões ocorridas por sem-terra,
desapropriações, reapropriações, conflitos entre camponeses e latifundiários, esses com o Estado, camponeses com o
Estado, camponeses com camponeses em acampamentos e invasões variadas. Proprietários absenteístas, fragmentações
da mesma entre membros da família proprietária nas primeiras décadas do sécula XX (família Maílhos – uruguaios,
latifundiários e industriais do fumo no referido país), arrendamentos, exploração da madeira (dentre as maiores
madeireiras estão a Iochpe S.A. e a Macali), plantação de trigo e soja por grandes granjeiros (dentre eles Ari Dalmolin e
Lin Yen Sun), aquisições de áreas expressivas como a da família Anoni com mais de 16.000 ha, etc, dão a tônica de um
processo de lutas e envolvimentos políticos e sociais que, ainda, não está resolvido no seu todo.” (RUCKERT APUD
TEDESCO e CARINI, 2007).
foram suas principais lideranças. É importante ressaltar que essa mobilização aconteceu em 1962, já no auge
da política de Reforma Agrária do governo de Leonel Brizola (1959 – 1962) e que, portanto, muito do que se
produziu a respeito dialoga com essa questão. Seria uma luta autônoma ou haveria atrelamento ao governo
estadual? Brizola foi quem deu a ordem? Jair Calixto (que foi um dos organizadores) teria recebido as ordens
de seu “primo-irmão”?19 Essa luta, portanto, foi fruto de uma luta maior, coletiva ou esteve atrelada a interesses
individuais? Qual o papel empreendido pelo Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master)? Enfim, essas
são algumas das problemáticas debatidas pelos diferentes trabalhos. Em relação a Jair Calixto e seu papel nesse
processo, ALVES (2010), também valendo-se de entrevista com quem vivenciou o episódio, ressalta:

[…] que havia um prefeito que estava organizando um movimento camponês na


cidade. […] o organizador do dito movimento era o prefeito Jair Calixto. […] Calixto
teria dito que precisava de ajuda para organizar o povo. Para Araújo [Carlos Araújo,
entrevistado], a ideia de ocupar a fazenda teria vindo exclusivamente de Calixto, que
teria pensado em todo o processo sozinho. O conhecimento de Brizola sobre a
ocupação, ou mesmo seu incentivo não são considerados por Araújo. Segundo ele,
Calixto dizia acreditar que Brizola não apoiaria sua empreitada porque aquilo poderia
provocar uma reação do exército, que tinha enormes contingentes em Passo Fundo,
cidade próxima da região. A organização das pessoas teria sido feita de casa em casa
no município de Nonoai, não foram realizadas reuniões. Araújo afirma que Calixto
falava sobre os riscos da existência de espiões, tanto do exército quanto de Brizola,
interessados em saber onde seria o acampamento. Até mesmo por isso, ninguém teria
ficado sabendo do local até o momento dele. As pessoas eram convidadas para ocupar
terra, mas sem saber nem mesmo onde. Calixto teria, inclusive, ordenado a abertura
de uma espécie de estrada dentro da propriedade, de pouco mais de um metro de
largura para que as famílias pudessem construir suas barracas. (p.38)

Já outros entrevistados, que tiveram também papel ativo nessa “empreitada” - caso do Seu Chico,
responsável por mapear o local do acampamento - colocam o conhecimento e a liderança de Brizola em todo
o processo, inclusive inserindo Calixto como alguém subordinado às ideias do governador:

Para Seu Chico tudo começa no dia nove de janeiro de 1962 quando, segundo ele,
Brizola manda um avião buscar Calixto em Nonoai. Nesse ínterim, enquanto o
prefeito embarca para falar com o governador, um funcionário da prefeitura vai até a
casa de Seu Francisco para lhe dizer que fosse, ao final da tarde, na prefeitura, para
encontrar Calixto. Quando este voltou contou que Brizola queria alguém para
organizar o movimento. O governador teria dito: “Eu mandei te chamar porque o Ivo
tá aqui olha, mas não quis assumir. Então você pega um homem bom, que conheça a
região para escolher o local!” Ivo, mencionado na fala de Brizola, seria Ivo Sprandel,
prefeito de Sarandi...(ALVES, 2010. p.40)

Nota-se, através desse relato, que Calixto não seria nem a primeira opção, inclusive. Outro trabalho
atribui exclusivamente a Calixto a liderança na ocupação da Fazenda Sarandi, retirando, ademais, o papel do
Master enquanto organização e movimento camponês. Esse trabalho, baseado na metodologia de entrevistas
com os protagonistas do episódio (camponeses sem terra) põe em dúvida a construção coletiva dessa luta.

19 Durante a realização da IV Conferência Rural Brasileira, em 1962, congresso das associações rurais, vinculadas ao
latifúndio, “as ocupações de terras e as desapropriações no Rio Grande do Sul foram objeto de discussão. Membros da
delegação gaúcha manifestaram-se contra as ações do governo. Batista Luzardo denunciou: “Todo mundo sabe
perfeitamente que a ocupação da Fazenda Sarandi foi cuidadosa e previamente combinada entre o prefeito de Sarandi e o
Governador Leonel Brizola”.” (In: GASPAROTTO, 2016). Esse episódio nos confirma as tensões e disputas em relação
a Reforma Agrária no período.
Esses protagonistas do episódio Sarandi não mencionaram em seus relatos quem havia
organizado a ocupação. A questão parecia não lhes importar. Só quando interrogados
é que a atribuíam ao prefeito Calixto, cuja liderança foi também destacada em outros
relatos. […] Como o Master nunca foi citado pelos nossos interlocutores e também
nunca reivindicou a ocupação da Sarandi, o mais plausível é que ela tenha sido uma
iniciativa de Calixto, com ou sem a chancela de Brizola. Assim, as centenas de
colonos que entraram na Sarandi o fizeram a partir de um chamado do prefeito, que
participou com eles da invasão. Verifica-se então que a primeira ocupação de que se
tem notícia no Rio Grande do Sul foi concebida e comandada por uma autoridade da
República e legitimada por outra, o governador do estado. (SIGAUD, ROSA E
ERNANDEZ (2008))

A afirmação acima põe em dúvida o caráter coletivo e organizativo dos camponeses sem terra. Minha
opinião é a mesma compartilhada por DOSSE: “É por sua capacidade de se apropriar de valores coletivos, de
lhes incarnar em um percurso singular que a vida dos indivíduos guarda um sentido que ultrapassa a simples
equação pessoal para adquirir uma glória durável no olhar do outro, por seu reconhecimento” (DOSSE, apud
SCHIMTD, 2014 - p.130). Ora, só foi possível a Calixto ter papel de liderança na luta pela terra porque havia
uma massa de camponeses sem terra que necessitavam empreender tais mobilizações para que pudessem
sobreviver e se manter atrelados ao campo. Além disso, essa luta se insere em um contexto de mobilizações e
lutas nacionais que marcaram o início dos anos 1960 e que serão profundamente afetadas com o golpe militar
de 1964. Calixto ocupa-se de sua posição de figura pública para liderar o movimento, contudo, sem a
disposição e a organização das famílias camponesas sem-terra, a luta não se concretizaria.

O fim do governo Leonel Brizola e o golpe militar de 1964

O governo de Leonel Brizola se encerra em 1962, sem a eleição de seu sucessor. Entre 1963 e 1966,
governará o Estado do Rio Grande do Sul Ildo Meneghetti, político atrelado ao latifúndio, tendo a luta pela
terra sofrido um forte abalo e, de certa forma, a repressão que se tornará política de Estado pós 1964, tem seu
início antecipado no Rio Grande do Sul. Os movimentos e mobilizações de camponeses serão duramente
reprimidos, sobretudo o Master. Conforme nos aponta GASPAROTTO (2016):
[...] as mobilizações camponesas foram reprimidas pela administração do
Governador Ildo Meneghetti (PSD), com inúmeros registros de camponeses
ameaçados, ferramentas apreendidas, acampamentos cercados pela Brigada Militar.
A repressão se ampliou após o golpe, pois ainda em abril de 1964, a sede do
MASTER foi arrombada e seus líderes passaram a ser perseguidos. (GASPAROTTO,
2014).

Com Jair Calixto não será diferente. Como grande expoente da luta pela terra no Estado, conforme
já apontado, Calixto será preso ainda durante o governo de Brizola, em setembro de 1962, quando da tentativa
de organização de nova ocupação de terras em área contígua a Fazenda Sarandi. Calixto foi enquadrado na já
vigente Lei de Segurança Nacional. Essa será a primeira prisão das muitas que lhe acompanharão
posteriormente. Concedido habeas corpus e ao sair da prisão (permanece preso em torno de 03 meses), Calixto,
já de revólver à cintura é indagado por um repórter de jornal local: - “Como estás “branco” vivente! Ao que
lhe responde: - “Pudera, estive na sombra”! (CARINI E TEDESCO, 2007). Ao que tudo indica, o ânimo de
Calixto não havia sido abalado, pois posteriormente, lidera nova invasão, agora na Reserva indígena de Nonoai
(que tornou-se conhecido como o acampamento do Passo Feio). Porém, nesse momento, o governo do Estado
estava sob a administração de Meneghetti e esse acampamento é sitiado e posteriormente, incendiado pelas
autoridades estatais.
Com o advento do golpe militar, Jair Calixto terá seus direitos políticos cassados por 10 anos20, a
exemplo do que ocorreu com diversos líderes e políticos no período. A bibliografia consultada diverge em
relação ao rumo tomado por Calixto. CARINI E TEDESCO dizem que o agora ex-prefeito firma residência
em Porto Alegre e acaba sendo preso “diversas vezes” durante o período militar, tendo sido exilado no Uruguai,
juntamente com Brizola e o ex-presidente João Goulart. Com a redemocratização, participa dos debates no
PTB e trabalha na Assembleia Legislativa em cargos de comissão de alguns políticos do PDT. Calixto faleceu
de infarto, em 10 de fevereiro de 1986, com 65 anos de idade.
GEHLEN (1983) registra em sua dissertação que Calixto acabou tornando-se vereador na cidade
metropolitana de Canoas/RS, nas “últimas eleições”, provavelmente no ano de 1982, portanto21. Teria Calixto
seguido a defesa e a luta sobre a Reforma Agrária, 20 anos depois? Como atuou enquanto vereador? Essas
questões serão buscadas com o andamento da pesquisa e dissertação do mestrado.
Já STÉDILE E FERNANDES (1999) apontam outra versão para a trajetória de Calixto pós anos de
1960: citam que houve a perseguição durante o regime militar e que Calixto caiu no ostracismo, vindo a migrar
para o estado de Rondônia na década de 1970, onde veio a falecer. É interessante que nessa mesma obra, há
ainda o relato que, quando da fundação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), na década
de 1980, houveram diversas reuniões e conversas com os remanescentes das lutas anteriores (das Ligas
Camponesas, da ULTAB, etc) e que entre Francisco Julião22; Clodoir de Moraes23 e Elizabeth Teixeira24, para

20 Em 07/05/1964. Suspensão de Direitos Políticos e Mandato Cassado. Fonte: Conselho de Segurança Nacional. Estado
do Rio Grande do Sul. Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Pública. Departamento de Polícia Civil. 27 de
abril de 1964. Referência: br_dfan_bsb_n8_0_pro_pai_0018_0035_d0001de0001.pdf 10 páginas. Acervo: Arquivo
Nacional.
21 Creio tratar-se de um equívoco. Em consulta ao site do Tribunal Superior Eleitoral, vereador eleito em 1982 foi Ney
de Moura Calixto, pelo PDT, com 991 votos. Ney Calixto, também primo de Brizola, foi sargento da Aeronáutica e
envolveu-se no episódio da Campanha da Legalidade. Teria relação/parentesco com Jair Calixto? Fazia parte de sua rede
de relações? Fonte: Resultado Eleição. Formulário Resumo. Eleição Municipal de 15 de Novembro de 1982. 66° zona,
Rio Grande do Sul, Canoas. Pdf, 1 página. Tribunal Superior Eleitoral, Secretaria de Gestão da Informação. Pesquisa
online.
22 Francisco Julião (1915-1999), pernambucano, foi o primeiro advogado dos camponeses que se organizaram em ligas
nos engenhos. Elegeu-se deputado federal pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Passou a liderar as Ligas Camponesas,
sendo sua principal expressão pública. Considerado brilhante orador, alinhava-se com os setores mais moderados. Com
o golpe militar, foi perseguido e exilou-se no México, onde faleceu. (In: STÉDILE E FERNANDES, 1999).
23 Advogado baiano, foi militante do PCB. Participou de uma dissidência política, que priorizou o trabalho junto às
Ligas Camponesas, em vez das ULTABs. Teve muita influência sobre as Ligas, contrapondo-se à liderança de Julião.
Elegeu-se deputado federal pelo PTB. Esteve preso em 1963, foi perseguido após o golpe militar e exilou-se. Trabalhou
como consultor do Fundo das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura na questão da reforma agrária. Escreveu
a história das Ligas Camponesas do Brasil e também um importante ensaio (A teoria da organização no campo) que
fundamenta um método de desenvolvimento da consciência social, chamado de “laboratório”. De volta ao Brasil em 1980,
tornou-se professor na Universidade da Rondônia e professor visitante da Universidad Autónoma de Chapingo – México.
(In: STÉDILE E FERNANDES, 1999).
24 Casada com João Pedro Teixeira, líder das Ligas Camponesas da Paraíba, assassinado em 1962 em Sapé (PB). Após
o assassinato, assumiu a liderança da Liga, desenvolvendo inúmeras atividades organizativas. Com o golpe militar, teve
de fugir e esconder sua identidade até 1984, vivendo clandestinamente. (In: STÉDILE E FERNANDES, 1999).
citar alguns, é citado o próprio Jair Calixto. Estaria então Calixto com os ideais da década de 1960 ainda ativos?
Como ocorreu essa contribuição? Quais formas de empreender a luta pela terra foram conversadas nessa
ocasião? Quais análises fazia Calixto nesse momento?

Considerações Finais

A trajetória das lutas pela terra no Rio Grande do Sul, além de empreenderem uma nova forma de se
conquistar um pedaço de chão, produziram, com certeza, inúmeras lideranças e histórias de vida “singulares”.
Jair de Moura Calixto, expresso nas linhas acima, foi um destes personagens-protagonistas. Como visto, há
ainda muito do que se resgatar e esclarecer sobre a trajetória deste militante da Reforma Agrária. Como Calixto
desenvolve sua consciência crítica em defesa da Reforma Agrária? O que o fez sair de Chapecó/SC, sua cidade
natal, rumar a Nonoai e lá começar carreira política? Quais foram, de fato, suas ligações e influências com
Brizola? Os trabalhos bibliográficos aqui citados nos permitem compreender uma parte dessa importante
trajetória, porém, estão muito vinculados aos anos de 1960 e as lutas por terra empreendidas no Rio Grande
do Sul desse período. O que fez Calixto após o golpe militar de 1964? Por sua postura aguerrida, teria pensado
militar na luta armada? Recolheu-se ao ostracismo? Quais suas redes de relações? São questões fundamentais
para, inclusive, compreendermos o caráter do seu engajamento na defesa da Reforma Agrária e que serão
aprofundadas ao longo de pesquisas posteriores.
Para além disso e retomando o debate historiográfico, devemos ter a capacidade, enquanto historiadores,
de trazer à luz esses contextos individuais sem esquecer do contexto mais amplo que possibilitou a emergência
dessas histórias. Como nos alerta (HOBSBAWN apud SCHMIDT, 1997, p.14):

O acontecimento, o indivíduo, e mesmo a reconstrução de algum estado de espírito, o


modo dele pensar o passado, não são fins em si mesmos, mas constituem o meio de
esclarecer alguma questão mais abrangente, que vai muito além da estória particular
e seus personagens.

Dessa forma, estudar a trajetória de vida de Jair Calixto nos permite uma melhor compreensão de um
momento tão importante da política brasileira e que será interrompido com a “longa noite dos 21 anos”.

Referências Bibliográficas

ALVES, Bernard José Pereira. A política agrária de Leonel Brizola no Rio Grande do Sul: Governo,
Legislação e Mobilização. Dissertação de Mestrado: Rio de Janeiro/UFRRJ. 2010.

__________________________ Construindo a política pública: o processo de reforma agrária no Rio


Grande do Sul (1959 – 1963). Disponível em
https://www.uniara.com.br/legado/nupedor/nupedor_2010/00%20textos/sessao_6B/06B-02.pdf

CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo (orgs). Novos Domínios da História. Elsevier Editora Ltda,
2012.
CARINI, Joel João; TEDESCO, João Carlos. Governador Brizola, o Master e o conflito na Fazenda Sarandi,
1960-62. Artigo. In: Associação Nacional de História – APNPUH. XXIV Simpósio Nacional de História.
2007.

________ Os conflitos agrários no Norte gaúcho: 1960-1980. Porto Alegre: Edições Est., 2007.

ECKERT, Córdula. Movimento dos Agricultores Sem Terra no Rio Grande do Sul: 1960-1964. Rio de Janeiro:
Dissertação de Mestrado/UFRJ. 1984.

GASPAROTTO, Alessandra. Companheiros Ruralistas: Mobilização patronal e atuação política da


Federação das Associações Rurais do Rio Grande do Sul (1959-1964). Porto Alegre: Tese de
Doutorado/UFRGS. 2016.

GEHLEN, Ivaldo. Uma estratégia camponesa de conquista da terra e o Estado: o caso da Fazenda Sarandi.
Porto Alegre: dissertação de mestrado/UFRGS, 1983.

KARSBURG, Alexandre. A Micro-história e o método da micro-análise na construção de trajetórias. In:


VENDRAME, Maíra Ines; KARSBURG, Alexandre; WEBER, Beatriz e FARINATTI, Luis Augusto (orgs).
Micro-história, trajetórias e imigração. E-book. Universidade Federal de Santa Maria. Editora Oikos, 2015.

LEVI, Giovanni. Usos da Biografia. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e Abusos
da História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.

LORIGA, Sabrina. A biografia como problema. In: REVEL, Jacques. Jogos de Escalas.

MONTAGNER, Miguel. Trajetória e biografia na ótica de Bourdieu. Porto Alegre, Sociologias, ano 9, n° 17,
jan./jun. 2007, p.240-264.

SCHMITD, Benito Bisso. Construindo biografias...Historiadores e jornalistas: aproximações e afastamentos.


Estudos históricos, 1997 – 19.

____________________ Quando o historiador espia pelo buraco da fechadura: biografia e ética. História
(São Paulo), v.33, n.1, p. 124 – 144, jan./jun. 2014.

SIGAUD, Lygia; ROSA, Marcelo; ERNANDEZ, Marcelo Macedo. Ocupações de terra, Acampamentos e
demandas ao Estado: uma análise em perspectiva comparada. Dados – Revista de Ciências Sociais, vol.51,
n.1, 2008, pp. 107-142. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Brasil.

STÉDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo Mançano. Brava Gente – A trajetória do MST e a luta pela
terra no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1999.

VELHO, Gilberto. “Projeto, Emoção e Orientação em Sociedades Complexas”. In: ____Individualismo e


cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 1980.

Você também pode gostar