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1
A maior parte das informações biográficas sobre Jacó Armínio foi tirada de Arminius: a study in the Dutch reformation,
de Carl Bangs (Grand Rapids, Zondervan, 1985).
2
afirmavam que a justiça de Cristo é imputada aos pecadores para sua salvação mediante a fé
somente.
Sem dúvida ou questionamento, Armínio é um dos teólogos mais injustamente
ignorados e grosseiramente mal interpretados da história da teologia cristã. Tanto ele como
sua teologia são “frequentemente avaliados segundo boatos superficiais”. 2 Um comentarista e
crítico reformado moderno notou que “a teologia de Jacó Armínio é desprezada tanto por
admiradores quanto por difamadores”3 e disse que Armínio, é “um dos doze ou mais teólogos
da história da igreja cristã que ofereceu um critério permanente para a tradição teológica e,
com isso, transformou seu nome em símbolo de um ponto de vista doutrinário ou confessional
específico”4, o que torna duplamente irônico que seja “um dos principais e também mais
desprezados teólogos protestantes”.5 Para compreender Armínio e sua teologia e a profunda
divisão que ela provou na teologia protestante teremos de voltar na história até antes do
próprio Armínio e examinar a teologia reformada depois de Calvino.
O escolasticismo reformado e o supralapsarismo
Embora os principais reformadores protestantes da primeira geração, como Lutero,
Zuínglio e Calvino, tenham reagido contra o escolasticismo e a teologia escolástica, seus
seguidores imediatos voltaram-se para um tipo de pensamento escolástico que dava mais
ênfase à filosofia e à lógica e procurava usá-las para desenvolver sistemas altamente coerentes
de doutrina protestante. Essa tendência dos pensadores protestantes da pós-Reforma rendeu-
lhes o rótulo dúbio de “escolásticos protestantes” e sua teologia é caracterizada com
imprecisão como escolasticismo protestante. O que muitos deles tentaram fazer foi encontrar
e construir uma ortodoxia protestante rígida que contestasse todas as heresias, inclusive os
ataques de céticos e críticos romanos. Portanto, enquanto Lutero e Calvino estavam satisfeitos
com um pouco de mistério na teologia, esses escolásticos protestantes tentaram obliterar o
mistério, a incerteza e a ambiguidade da teologia protestante ao imitarem o estilo de Tomás de
Aquino, que procurou empregar as Escrituras, a tradição e a razão para desenvolver um
sistema abrangente de toda a verdade. Naturalmente, a maioria dos escolásticos protestantes
dos séculos XVI e XVII não tinha consciência das semelhanças entre seus próprios
empreendimentos teológicos e os de Tomás de Aquino e de outros teólogos católicos
medievais. Apesar disso, os teólogos históricos posteriores, ao examiná-los, não puderam
deixar de perceber a semelhança.
2
Charles M. CAMERON, Arminius: hero or heretic?, Evangelical Quarterly 64, 3: 213, 1992.
3
Richard A. MULLER, God, creation and providence in the thought of Jacob Arminius, Grand Rapids, Baker, 1991, p. 269.
4
Ibid., p. 3.
5
Ibid., p. ix.
3
6
Ibid., p. 31.
7
Ibid., p. 32.
8
Robert SCHNUCKER, Theodore Beza, in: The new international dictionary of the Christian church, J. D. Douglas, org.,
Grand Rapids, Zondervan, 1974, p. 126.
4
salvação e outras para a perdição eterna ou o contrário? Eles concordavam que todos os
decretos de Deus são simultâneos e eternos, porque aceitavam a noção de Agostino da
eternidade como o “momento presente eterno” no qual todos os tempos – passado, presente e
futuro – são simultâneos. Acreditavam que, para Deus, não há nenhuma separação, nem
sequer sucessão, de momentos. Tudo é eternamente presente. Por isso, Deus não decreta algo
e depois espera para ver o que acontece para então, dependendo do resultado, decretar outra
coisa. Todos os decretos de Deus em relação ao que está fora dele (a criação) são simultâneos
e eternos. Logo, quando Beza e outros protestantes especulavam e debatiam a respeito da
“ordem dos decretos eternos”, referiam-se à ordem lógica e não a alguma ordem cronológica.
Portanto, a pergunta era: Qual é a ordem lógica correta dos decretos de Deus com relação à
criação e à redenção? É uma questão importante, porque a maneira de vermos os propósitos
supremos de Deus para as coisas depende de como consideramos a ordem dos decretos
divinos e vice-versa.
Beza e outros calvinistas eram obcecados pela doutrina da predestinação, muito mais do
que Calvino jamais foi. Enquanto Calvino situou essa doutrina dentro da categoria da
redenção como parte da atividade graciosa de Deus e admitia o mistério em relação aos
propósitos de Deus na eleição e reprovação divinas, Beza situou a predestinação dentro da
doutrina de Deus como a dedução direta do poder, dos conhecimentos e do governo
providencial de Deus.9 Assim, aproximava-se muito mais de Zuínglio do que de Calvino.
Beza, assim como a maioria dos calvinistas, também deduziu a doutrina da expiação limitada
– que Cristo morreu somente pelos eleitos e não pelos réprobos – a partir da doutrina da
providência e dos decretos de eleição divinos. Essa dedução, embora lógica, não se encontra
em Calvino. Para proteger a doutrina da predestinação de qualquer desgaste pelo sinergismo.
Beza e outros calvinistas rígidos do século XVI desenvolveram o supralapsarismo. Supra
indica a prioridade lógica em relação a alguma outra coisa. Lapsarismo é uma referência à
queda da humanidade (da mesma raiz que lapso – “cair”). Por isso, supralapsarismo significa,
literalmente, “alguma coisa anterior à queda”. Isso, porém, dificilmente explica sua relevância
teológica.
Teologicamente, o supralapsarismo é uma forma de ordenar os decretos divinos de tal
maneira que a decisão e o decreto de Deus em relação à predestinação dos seres humanos, ao
céu ou ao inferno, antecede seus decretos de criar os seres humanos e permitir sua queda. A
ordem típica dos decretos divinos, segundo o supralapsarismo, é a seguinte:
9
Justo GONZÁLEZ, A history of Christian thought, ed. rev., Nashville, Abingdon, 1987, p. 270-8. V. 3: From the
protestant reformation to the twentieth century.
5
acontecer. Concordavam que a queda da humanidade e o destino final de cada ser humano no
céu ou no inferno é predestinados por Deus, e não apenas previstos ou prenunciados.
Concordavam que Deus não é responsável pelo pecado nem pelo mal, no sentido de carregar
algum fardo de culpa por isso, pois ele está acima das leis e das noções humanos de equidade.
Tudo o que Deus faz é correto, porque glorifica a ele e, conforme Beza supostamente
declarou: “Os que sofrem eternamente no inferno podem pelo menos se consolar com o fato
de estarem ali para a maior glória de Deus”.
A discórdia entre os supralapsários e os infralapsários girava em torno de o primeiro
propósito (supremo) de Deus ser o de se glorificar pela predestinação ou pela criação. Outra
maneira de expressar a questão é que os supralapsários consideravam que o decreto divino da
predestinação se aplicava aos seres humanos como criaturas, sem levar em conto o fato de
também serem pecadores, ao passo que os infralapsários consideravam que o decreto divino
da predestinação se aplicava aos seres humanos como pecadores caídos. De qualquer forma,
porém, tanto os salvos quanto os perdidos são o que são porque Deus assim decidiu desde a
eternidade.
O consenso doutrinário calvinista
Na segunda metade do século XVI, os escolásticos protestantes reformados pertencentes
às duas escolas de pensamento, supralapsária e infralapsária, desenvolveram gradualmente um
sistema de doutrina calvinista que, posteriormente, foi sintetizado de acordo com o acrônico
TULIP. Os cinco pontos do calvinismo nunca tinham sido expostos exatamente dessa maneira
antes da grande controvérsia arminiana e da sua conclusão no Sínodo de Dort em 1618-1619.
Nesse sínodo calvinista na Holanda, eles foram declarados e reconhecidos como doutrina
oficial, pelo menos para as igrejas holandesas reformadas. Depois desse acontecimento,
protestantes reformados de todos os lugares começaram a aceitá-los. O acrônimo foi adotado e
os cinco pontos são corretamente entendidos como válidos pela maioria dos escolásticos
reformados, tanto supralapsários quanto infralapsários, mesmo antes de Dort os ter
canonizado. Os cinco pontos são o que Armínio questionava e seus seguidores, os
remonstrantes, rejeitavam e, por esse motivo, os últimos foram excomungados e exilados da
Holanda. É quase certo que o próprio Armínio receberia o mesmo tratamento se tivesse vivido
tempo suficiente. Em poucas palavras, os cinco pontos são:
I. Depravação Total (Total depravation). Os seres humanos estão mortos em seus
delitos e pecados antes de Deus os regenerar soberanamente e lhes outorgar a dádiva
da salvação (o que, em geral, implica na negação do livre-arbítrio).
7
II. Eleição incondicional (Unconditional election). Deus escolhe alguns seres humanos
para serem salvos, antes e independentemente de qualquer coisa que façam por conta
própria (com isso, fica em aberto a questão se Deus ativamente predestina alguns
para a perdição ou simplesmente os deixa em sua perdição merecida).
III. Expiação limitada (Limited atonement). Cristo morreu somente para salvar os eleitos
e sua morte expiatória não é universal, para a humanidade toda.
IV. Graça irresistível (Irresistible grace). Não é possível resistir à graça de Deus. Os
eleitos a receberão e serão salvos por ela. Os réprobos nunca a receberão.
V. Perseverança dos santos (Perseverance of the saints). Os eleitos perseveram
inevitavelmente para a salvação final (eterna segurança).
10
BANGS, op. cit., p. 96.
8
11
Ibid., p. 19.
9
evidências levam a uma só conclusão: Armínio não concordava com a doutrina de Beza sobre
a predestinação, quando assumiu o seu ministério em Amsterdã; na realidade, é provável que
nunca tenha concordado com ela”.12 Na série de sermões sobre a Epístola de Paulo aos
romanos, o jovem pregador começou a negar abertamente não somente o supralapsarismo, nas
também a eleição incondicional e a graça irresistível. Interpretou Romanos 9, por exemplo,
como uma referência não a indivíduos, mas a classes – crentes e incrédulos – conforme
predestinadas por Deus. Afirmou que o livre-arbítrio dos indivíduos os incluía nas classes de
“eleitos” e de “réprobos” e explicou a predestinação como a presciência divina acerca da livre
escolha dos indivíduos. Para apoiar essa ideia, Armínio apelou a Romanos 8.29. Conforme
observa o biógrafo e intérprete de Armínio, Carl Bangs, o teólogo holandês demonstrou, em
seus sermões da década de 1590, o desejo de encontrar o equilíbrio entre a graça soberana e o
livre-arbítrio humano: “o objetivo era uma teologia da graça, que não deixasse o homem
‘entre a cruz e o punhal’”.13
Os rígidos oponentes calvinistas de Armínio em Amsterdã e outros lugares não tardaram
em farejar o pavoroso erro de sinergismo em sua pregação e ensino e, publicamente,
acusaram-no de heresia para os oficiais da igreja e da cidade, que examinaram a questão e
inocentaram Armínio das acusações. Armínio apelou à tradição protestante holandesa da
independência dos sistemas teológicos específicos e à tolerância de diversidade nos
pormenores da doutrina. Os oficiais concordaram. Os oponentes supralapsários de Armínio
ressentiram-se e decidiram que o arruinariam de qualquer maneira. Sofreram uma derrota
fragosa quando Armínio foi nomeado para ocupar a prestigiosa cátedra de teologia na
Universidade de Leiden em 1603. O outro catedrático de teologia daquele período era
Francisco Gomaro, que talvez tenha sido o calvinista supralapsário mais franco e rígido de
toda a Europa. Gomaro, além de considerar todas as outras opiniões, inclusive o
infralapsarismo, falhas ou até heréticas, “tinha, segundo quase todos os relatos a seu respeito,
um temperamento extremamente irascível”.14
Quase que imediatamente, Gomaro iniciou uma campanha de acusações contra Armínio.
Algumas delas eram verídicas. Por exemplo, Armínio não escondia a rejeição não somente do
supralapsarismo, mas também da doutrina clássica calvinista da predestinação como um todo.
Gomaro distorceu esse fato e, publicamente e por trás das costas de Armínio, insinuou que ele
era um simpatizante secreto dos jesuítas – uma ordem de sacerdotes católicos romanos
especialmente temida que era chamada “tropa de choque da Contra Reforma”. Essa alegação
de Gomaro, assim como outras, era claramente falsa. Por exemplo, Gomaro acusou Armínio
12
Ibid., p. 144.
13
Ibid., p. 195.
14
Ibid., p. 248.
10
de socinianismo, que era uma negação da Trindade e de quase todas as demais doutrinas
cristãs clássicas. Não importa o que Armínio escrevesse ou dissesse em sua defesa, via-se
constantemente atacado por boatos e sob suspeita. “Quando a controvérsia ultrapassou os
limites das salas acadêmicas e chegou aos púlpitos e às ruas, suas defesas perderam o efeito.
Era mais fácil chegar à conclusão de que ‘onde há fumaça, há fogo’”.15 A controvérsia cresceu
a ponto de provocar uma guerra civil entre as províncias dos Países Baixos. Algumas
apoiavam Armínio, outras apoiavam Gomaro. O conflito eclodiu em 1604, quando Gomaro,
pela primeira vez, acusou Armínio abertamente de heresia e durou até a morte de Armínio por
causa de tuberculose em 1609. Quando morreu, sua teologia estava sob a inquisição pública
de líderes religiosos e políticos. Em seu enterro, um de seus amigos mais íntimos fez o
discurso fúnebre diante do corpo de Armínio: “Viveu na Holanda um homem que só não era
conhecido por quem não estimava suficientemente e só não o estimava quem não o conhecia
suficientemente”.16
Depois da morte de Armínio, quarenta e seis ministros e leigos holandeses respeitados
redigiram um documento chamado “Remonstrância” que resumia a rejeição, por Armínio e
por eles mesmos, do calvinismo rígido em cinco pontos. Graças ao título do documento, os
arminianos passaram a ser chamados de remonstrantes. Entre eles, estavam os estadistas e
líderes políticos holandeses que tinham ajudado a libertar os Países Baixos da Espanha. Seus
inimigos acusavam-nos de apoiar secretamente os jesuítas e a teologia católica romana, e de
simpatizar com a Espanha, só porque concordavam com a oposição de Armínio a respeito das
doutrinas da predestinação! Não existe nenhuma evidência de que qualquer um deles
realmente tivesse alguma culpa em relação às acusações políticas feitas contra eles. Mesmo
assim, acorreram tumultos em várias cidades holandesas, nos quais foram pregados sermões
contra os remonstrantes e distribuídos panfletos que os difamavam como hereges e traidores.
Finalmente, o grande poder político dos Países Baixos, o príncipe Maurício de Nassau, entrou
na luta em favor dos calvinistas. Em 1618, ordenou a detenção e o encarceramento dos
principais arminianos, para aguardar o resultado do sínodo nacional de teólogos e pregadores.
O Sínodo de Dort entrou em sessão em novembro de 1618 e foi encerrado em janeiro de 1619,
contando com a presença de mais de cem delegados, inclusive alguns da Inglaterra, da
Escócia, da França e da Suíça. “João Bogerman, um pregador calvinista com opiniões
extremadas, que havia defendido em um documento a pena de morte por heresia, foi escolhido
como presidente”.17
15
Ibid., p. 282.
16
Ibid., p. 331.
17
W. HARRISON, Arminianism, Londres, Duckworth, 1937, p. 84.
11
18
Ibid., p. 81-2.
19
Todas as citações dos tratados de Armínio foram extraídas de The Works of James Arminius, edição de Londres, trad.
James Nichols e William Nichols (Grand Rapids, Baker, 1986)
12
resumem e expressam de forma adequada e clara suas ideias básicas a respeito de Deus, da
humanidade, do pecado e da salvação.
Uma das acusações feitas com frequência contra Armínio e seus seguidores é a de terem
se desviado da teologia protestante clássica. Eles foram acusados de rejeitar as crenças
fundamentais da Reforma protestante. Ainda hoje, é possível ouvir ou ler essa alegação,
especialmente da parte de calvinistas tradicionais. O próprio Armínio não poupou esforços
para comprovar seu compromisso e suas credenciais teológicas protestantes. Por exemplo,
sobre a sola scriptura, Armínio afirmava a autoridade suprema das Sagradas Escrituras acima
de todas as demais fontes e normas. Rejeitava explicitamente a equivalência entre a tradição
ou a razão e as Escrituras e apelava por um novo exame de todas as formulações teológicas
humanas à luz da Bíblia.
A regra da verdade teológica não deve ser dividida em primária e secundária;
é una e simples, as Sagradas Escrituras. [...] As Escrituras são a regra de toda
a verdade divina, de si, em si e por si mesmas. [...] Nenhum escrito composto
por homens, seja um, alguns ou muitos indivíduos, à exceção das Sagradas
Escrituras [...] está [...] isento de um exame a ser instituído pelas Escrituras.
[...] É tirania e papismo controlar a mente dos homens com escritos humanos
e impedir que sejam legitimamente examinados, seja qual for o pretexto
adotado para tal conduta tirânica.20
Além de declarações explícitas como essa, outra prova da lealdade de Armínio ao
princípio protestante das Escrituras reside no fato de ele nunca ter contestado as Escrituras
nem apelado a uma tradição extra bíblica ou ideia filosófica contrária a elas. Discordava
abertamente de algumas interpretações tradicionais das Escrituras, mas nunca discordou dos
ensinos das Escrituras, conforme os entendia. De fato, acusou seus oponentes calvinistas de
violar o princípio bíblico ao tratarem certas declarações confessionais reformadas como
equivalente à Bíblia em dignidade e autoridade e se recusarem a reconsiderá-las ou revisá-las.
Assim como no princípio bíblico, Armínio nunca se cansou de afirmar a lealdade ao
princípio básico protestante sola gratia et fides – a salvação pela graça, mediante a fé somente.
Alan Sell, teólogo reformado contemporâneo, declara que “quanto à questão da justificação,
Armínio está em harmonia com todas as igrejas reformadas e protestantes”.21 Naturalmente, se
partirmos do fato de que qualquer forma de sinergismo é incompatível com a doutrina
protestante da justificação pela fé somente, a doutrina da salvação adotada por Armínio será
20
Certain articles to be diligently examined and weighed, in: Works of James Arminius, 2.706.
21
Alan P. F. SELL, The grear debate: Calvinism, Arminianism and salvation, Gran Rapids, Baker, 1983, p. 12.
13
excluída a priori. Mas Armínio contestava essa suposição e insistia em afirmar que, embora
negasse a teologia monergista de Agostinho, Zuínglio e Calvino, podia aderir à doutrina
protestante clássica da salvação. Na Declaração dos sentimentos, escreveu: “acredito não ter
ensinado ou nutrido sentimentos a respeito da justificação do homem diante de Deus que não
fossem unanimemente mantidos pelas igrejas reformadas e protestantes e estivessem de total
acordo com suas opiniões expressas”.22 Por ter sido publicamente acusado de negar a
justificação pela graça mediante a fé somente, Armínio incluiu uma declaração confessional
sobre essa doutrina em Sentimentos, que entregou ao governo holandês na controvérsia
imediatamente anterior à sua morte:
Pelo presente, abreviadamente, direi que “creio que os pecadores são
considerados justos unicamente pela obediência de Cristo e que a justiça de
Cristo é a única meritória pela qual Deus perdoa os pecados dos que creem e
os considera tão justos como se tivessem cumprido com perfeição a lei”. Mas
como Deus não imputa a justiça de Cristo a ninguém, a não ser aos que
creem, concluo que, já que se pode dizer com segurança, àquele que crê, a fé
é imputada pela graça como justiça – porque Deus apresentou seu Filho
Jesus Cristo para ser uma propiciação, um trono de graça [ou misericórdia]
pela fé em seu sangue –, seja qual for a interpretação aplicada a essas
expressões, nenhum de nossos ministros culpa Calvino nem o considera
heterodoxo nessa questão; a minha opinião, porém, não diverge tanto da dele
a ponto de me impedir de colocar de próprio punho minha assinatura em tudo
o que ele ensinou a respeito do assunto, no terceiro livro de suas Institutas;
isso estou disposto a fazer a qualquer momento, além de expressar a minha
aprovação total.23
Em muitos lugares e de muitas maneiras, Armínio afirmou a crença de que a salvação se
dá pela graça de Deus mediante a fé somente. A calúnia de que negava tal coisa, tão comum
em sua época e frequente desde então, é uma das maiores injustiças da história da teologia
cristã.
Por que, então, os oponentes e inimigos de Armínio o acusavam bem como seus
seguidores de negar o princípio da salvação pela graça mediante a fé somente? Só pode ser
porque se opunha abertamente às doutrinas de calvinismo que eram extremamente associadas
a esse princípio. Acreditavam que a salvação é pura dádiva – imerecida – quando a pessoa é
totalmente passiva na regeneração, na conversão e na justificação. Ou seja, a salvação
22
In: Works of the Arminius, 1.695.
23
Ibid., p. 700.
14
acontece realmente pela graça somente quando a aceitação dela pelos pecadores não é um ato
de livre escolha, mas se dá de forma incondicional e irresistível. E isso só é verdade se estiver
predestinado e eternamente decretado. Portanto, dizer que o pecador que está sendo salvo
participa da própria salvação é dar lugar à jactância, porque subentende que a pessoa que
livremente toma a decisão de aceitar a graça para a salvação a está, de certa forma,
conquistando por merecimento. Segundo a crença calvinista tradicional, isso também
despojaria Deus de sua soberania e tornaria a decisão divina, a respeito de quem deve ser
salvo, dependente das decisões e ações das criaturas. Armínio rejeitava totalmente essa linha
de raciocínio e interpretava a passagem bíblica crucial de Romanos 9 de modo diferente dos
calvinistas.
Armínio não rejeitava a predestinação. Na realidade, afirmou a crença na predestinação.
Rejeitava, isto sim, o supralapsarismo, que considerava doutrina muito perniciosa. Resumiu a
versão supralapsária do calvinismo apresentada por Gomaro da seguinte forma:
Deus, por decreto eterno e imutável, predestinou, dentre os homens (que nem
sequer considerava criados e muitos menos caídos), certos indivíduos à vida
eterna e outros à destruição eterna, sem levar em conta a justiça ou o pecado,
a obediência ou a desobediência, mas unicamente seu próprio aprazimento,
para demonstrar a glória de sua justiça e misericórdia ou, como outros
afirmam, para demonstrar sua graça salvífica, sua sabedoria e seu poder livre
e inexorável.24
Na Declaração de sentimentos, Armínio levantou vinte objeções ao supralapsarismo.
Algumas se aplicam a qualquer versão da crença calvinista na predestinação, incluindo o
infralapsarismo. Argumentou que o supralapsarismo é contrário à própria natureza do
evangelho, pois entende que as pessoas salvas ou não independentemente de serem pecadoras
ou crentes. Primeiro (no primeiro decreto de Deus), são salvas ou condenadas e, somente
então, se tornam crentes ou pecadoras. Argumentou, também, que essa doutrina é uma
novidade na história da teologia, porque nunca foi apresentada antes de Gomaro e de seus
antecessores imediatos (por exemplo, Beza). Além disso, é contrário à natureza amorosa de
Deus e à liberdade da natureza humana. Talvez a objeção mais forte de Armínio tenha sido a
de que o supralapsarismo (e, por extensão, qualquer doutrina da eleição incondicional) é
“injurioso à glória de Deus” porque “a partir dessas premissas, deduzimos, além disso, que
Deus realmente peca [...], que Deus é o único pecador [...], que o pecado não é pecado”. 25
Armínio nunca se cansou de dizer que a forte doutrina do calvinismo não pode negar que
24
Ibid., p. 614.
25
Ibid., p. 630.
15
coloca Deus como autor do pecado e, se Deus é o autor do pecado, logo, o pecado não é de
fato pecado porque tudo o que ele cria é bom. Armínio era um realista metafísico.
Quando passou a examinar o infralapsarismo, Armínio não foi mais generoso. Embora
não coloque o decreto divino da eleição e da reprovação antes da criação e da queda, o
infralapsarismo não deixa de considerar necessária a queda da humanidade e Deus seu autor. 26
Em última análise, segundo Armínio, qualquer doutrina monergista da salvação torna Deus o
autor do pecado e, portanto, hipócrita, “porque imputa hipocrisia a Deus ao supor que, em sua
exortação às pessoas, exige que creiam em Cristo, mas não o apresenta como seu Salvador”.27
Armínio apelou a João 3.16 e argumentou em seus escritos que a universalidade da vontade de
Deus de salvar deve ser levada a serio e que a predestinação deve ser entendida de forma
compatível com o amo e bondade de Deus e com o livre-arbítrio humano.
A doutrina da predestinação segundo Armínio
Armínio não se recusava a discutir os decretos de Deus. Apenas se opunha à ordem
específica em que os decretos divinos eram colocados nos dois principais ramos do
calvinismo. Segundo ele, ambos eram passíveis de críticas devastadoras da mesma espécie.
Por exemplo, nenhum colocava em primeiro lugar o decreto divino no sentido de enviar Jesus
Cristo para ser o Salvador do mundo, enquanto o evangelho é essencialmente Jesus Cristo. Na
Declaração dos sentimentos, Armínio propôs um esquema alternativo de quatro decretos
divinos a respeito da salvação intitulado “Meus próprios sentimentos a respeito da
predestinação”.
I. O primeiro decreto absoluto de Deus sobre a salvação do pecador é aquele pelo
qual decretou que nomeava seu Filho Jesus Cristo mediador, redentor, salvador,
sacerdote e rei [...]
II. O Segundo decreto exato e absoluto de Deus é aquele pelo qual decretou que
receberia em favor aqueles que se arrependessem e cressem e que, em Cristo [...]
se cumpriria a salvação dos penitentes e crentes que perseverassem até o fim; mas
que deixaria em pecado e sob a ira todos os impenitentes e incrédulos e os
condenaria pela alienação a Cristo.
III. O terceiro decreto divino é aquele pelo qual Deus decretou que administraria de
modo suficiente e eficaz os meios que eram necessários ao arrependimento e à fé
[...]
26
Ibid., p. 650-1.
27
Ibid., p. 313.
16
IV. Depois desses, segue-se o quarto decreto pelo qual Deus decretou a salvação ou a
perdição das pessoas. Esse decreto se fundamenta na presciência de Deus, pela
qual desde a eternidade ele sempre soube quais os indivíduos que, pela graça
[preveniente], creriam e, pela graça subsequente, perseverariam.28
Para Armínio, portanto, a predestinação era, antes, de Jesus Cristo e não de indivíduos
sem ele.
É importante lembrar que Armínio insistia que toda a questão da predestinação estava
relacionada à condição caída dos seres humanos carentes de redenção. Para Armínio, o
decreto divino de permitir a queda, em outras palavras, não dizia respeito à salvação. Os
decretos de Deus a respeito da salvação vêm depois (são logicamente posteriores) da
permissão divina da queda de Adão e Eva. Como Armínio concebia a queda? Deixou isso
claro em seu tratado Certos artigos a ser diligentemente examinados e ponderados: “Adão
não caiu por decreto de Deus, nem por estar destinado a cair, nem por ter sido desertado por
Deus, mas por mera permissão de Deus, que não está subordinada a nenhuma predestinação,
nem à salvação ou à morte, mas que pertence à providencia, que é distinta e oposta à
predestinação.”29 Em outras palavras, a providência divina compreende certo decretos e a
predestinação divina, outros. As duas não devem ser confundidas. Na providência, Deus
decretou que permitiria a queda de Adão e de Eva e de toda a raça humana junto com eles. No
Exame do panfleto do dr. Perkins, Armínio disse claramente que Deus não poderia evitar a
queda depois de criar seres humanos e dar-lhes o dom do livre-arbítrio. Armínio acreditava na
autolimitação e restrição de Deus e também na liberdade humana genuína no relacionamento
abrangente estabelecido pela aliança.30 Portanto, os decretos de Deus quanto à predestinação
dizem respeito aos seres humanos apenas como pecadores depois da queda e, de modo algum,
à própria queda. Deus sabia previamente que os seres humanos cairiam, mas não decretou
nem predestinou, de nenhuma forma, tal coisa.
Depois que os seres humanos caíram, argumentava Armínio, o primeiro decreto de Deus
em relação a eles foi providenciar para que Jesus Cristo fosse seu Salvador. Então, depois
disso, decretou que salvaria, por meio de Cristo, todos aqueles que se arrependessem e
cressem e que deixaria à sua merecida perdição aqueles que recusassem a salvação. A partir
daí, Armínio começa a analisar a predestinação dos seres humanos caídos. Em primeiro lugar,
trata-se de classes e grupos e não de indivíduos. Isto é, Deus decreta que salvará os que creem,
28
Ibid., p. 653-4.
29
Certain articles to be diligently examined and weighed, 2.716.
30
Examination of Dr. Perkins’s Pamphlet, in: Works of James Arminius, 3.284. Muller, com toda a razão, atribui muito
valor à crença de Armínio na autolimitação divina da aliança como uma diferença básica entre ele e os teólogos
reformados de sua época. Veja God, creation and providence, de Muller (p. 235-45).
17
31
Skevington WOOD, The declaration of sentiments: the theological testament of Arminius, Evangelical Quarterly 65,
2:219, 1993.
32
A declaration of sentiments, 1.279.
33
A letter addressed to Hippolytus A. Collibus, in: Works of James Arminius, 2.701.
18
34
Ibid., p. 700-1.
19
Está claro, portanto, que Armínio rejeitava não somente o supralapsarismo, como
também qualquer conceito monergista da salvação. No mínimo, negava a eleição
incondicional, a expiação limitada e a graça irresistível. Não se pode afirmar que negava a
depravação total. A citação apresentada da Carta a Hipólito indica que de fato acreditava
nela. Alguns remonstrantes claramente não acreditavam e isso se tornou uma questão delicada
e controversa depois da morte de Armínio. Este não negava a perseverança (a segurança
eterna dos santos), mas argumentava que a questão não estava encerrada e advertia contra a
falsa segurança e certeza. Assim como no caso da depravação total, muitos arminianos
posteriormente rejeitaram a perseverança incondicional e ensinaram que a pessoa pode perder
a salvação por indiferença e também pela rejeição consciente da graça. Muitos outros
arminianos passaram a crer na segurança eterna dos genuinamente regenerados e justificados
pela graça.
O legado do arminianismo
Uma questão ainda debatida pelos estudiosos de Armínio é se a sua teologia era uma
alternativa à teologia reformada ou uma adaptação dela. Richard Muller sustenta que era uma
alternativa e, como prova, indica a forte ênfase de Armínio à autolimitação de Deus. Os
teólogos reformados posteriores a Calvino reconheciam a condescendência de Deus na
revelação, mas negavam unanimemente qualquer autolimitação de Deus na providência ou
predestinação.35 Carl Bangs sustenta a opinião de que a teologia de Armínio representa uma
adaptação e desenvolvimento da teologia reformada.36 Embora o próprio Armínio quase
certamente entendesse dessa forma sua teologia, Muller está mais próximo da verdade. A
teologia de Armínio é totalmente protestante, mas não reformada. O teólogo holandês se
propôs reformar a teologia reformada, mas acabou criando um paradigma protestante
totalmente diferente. Os anabatistas argumentariam, com razão, que se tratava de um
paradigma que Baltasar Hubmaier e outros pensadores anabatistas começaram a desenvolver
quase um século antes. Ele poderia ser chamado de “sinergismo evangélico”.
O arminianismo, embora politicamente reprimido e posteriormente marginalizado no
país de origem, radicou-se e floresceu em solo inglês no fim do século XVI. Muitos líderes da
Igreja da Inglaterra foram simpáticos a ele no inicio e, posteriormente, adotaram-no
abertamente. Embora Os trinta e nove artigos da religião da Igreja da Inglaterra incluíssem a
afirmação da predestinação, o arminianismo tornou-se opção permanente da tradição
anglicana. No século XVII, uma era de racionalismo e avivamento na Inglaterra e Nova
Inglaterra, os arminianos dividiram-se em dois grupos: arminianos de mente e arminianos de
35
V. God, creation and providence, de Muller (p. 281).
36
BANGS, op., p. 348-9.
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coração. Os primeiros pendiam para o deísmo e a religião natural e os últimos, para o pietismo
e o avivamento. A história desses movimentos será contada nos capítulos posteriores. Basta
dizer que, no cristianismo da era moderna de língua inglesa, é possível ser arminiano liberal
ou arminiano evangélico. O movimento metodista primitivo, fundado por John e Charles
Wesley, bem como muitos batistas primitivos representavam o segundo tipo de arminianismo,
enquanto os deístas e os pensadores protestantes liberais dos séculos XVIII e XIX
representavam o primeiro. Com esses movimentos, a teologia arminiana paulatinamente
tornou-se parte das grandes tendências do pensamento protestante na Inglaterra e nos Estados
Unidos – para desgosto dos protestantes reformados mais tradicionais.
Como vimos, depois da morte dos primeiros reformadores, seus herdeiros ortodoxos e
escolásticos elevaram à importância primordial as questões da exatidão doutrinária e litúrgica.
Alguns críticos diriam que as igrejas nacionais protestantes magisteriais da Europa e da Grã-
Bretanha declinaram até se tornarem “ortodoxia morta” que crê na regeneração batismal, no
clericalismo e no constantinismo. Essa situação provocou a reação dos ministros das igrejas
estatais chamada pietismo. Entre outras coisas, ela tentava vincular a justificação à conversão,
e a regeneração ao começo de uma vida de santificação verdadeira. Também censurava a
ênfase exagerada à ortodoxia doutrinária e a indiferença diante da experiência espiritual como
sinal autêntico do cristianismo e criava lemas como: “melhor uma heresia viva do que uma
ortodoxia morta!”. É para a história do pietismo e de sua tentativa de reforma a teologia
protestante nos séculos XVI e XVII que agora dirigiremos nossa atenção.
História da Teologia Cristã: 2000 anos de tradição e reformas/ Roger E Olson; p. 465-
483. Tradução Gordon Chown – São Paulo: Editora Vida, 2001.