que o domine e o envolva, destrói o fenômeno do tempo. Se
devemos encontrar uma espécie de eternidade, será no cora- ção de nossa experiência do tempo e não em um sujeito in- temporal que estaria encarregado de pensá-lo e de pô-lo. Ago- ra o problema é explicitar este tempo em estado nascente e prestes a aparecer, sempre subentendido pela noção do tem- po, e que não é um objeto de nosso saber, mas uma dimen- são de nosso ser. É em meu "campo de presença" no sentido amplo — neste momento em que passo a trabalhar tendo, atrás dele, o horizonte da jornada transcorrida e, diante dele, o horizonte da tarde e da noite — que tomo contato com o tempo, que aprendo a conhecer o curso do tempo. O passado mais dis- tante tem, ele também, sua ordem temporal e uma posição temporal em relação ao meu presente, mas enquanto ele mes- mo foi presente, enquanto "em seu tempo" ele foi atraves- sado por minha vida, e enquanto ela prosseguiu até agora. Quando evoco um passado distante, eu reabro o tempo, me recoloco em um momento em que ele ainda comportava um horizonte de porvir hoje fechado, um horizonte de passado próximo hoje distante. Portanto, tudo me reenvia ao campo de presença como à experiência originária em que o tempo e suas dimensões aparecem em pessoa, sem distância interpos- ta e em uma evidência última. E ali que vemos um porvir deslizar no presente e no passado. Essas três dimensões não nos são dadas por atos discretos: eu não me represento mi- nha jornada, ela pesa sobre mim com todo o seu peso, ela ainda está ali, não evoco nenhum de seus detalhes, mas te- nho o poder próximo de fazê-lo, eu a tenho "ainda em mãos" 4 . Da mesma maneira, eu não penso na tarde que vai chegar e em sua seqüência, e todavia ela "está ali", como o verso de uma casa da qual vejo a fachada, ou como o fundo sob a figura. Nosso porvir não é feito apenas de conjecturas e de divagações. Adiante daquilo que vejo e daquilo que per- 558 FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO
cebo, sem dúvida não há mais nada de visível, mas meu
mundo continua por linhas intencionais que traçam anteci- padamente pelo menos o estilo daquilo que virá (embora nós esperemos sempre, e sem dúvida até a morte, ver apa- recer outra coisa). O próprio presente (no sentido estrito) não é posto. O papel, minha caneta, eles estão ali para mim, mas eu não os percebo explicitamente, eu antes conto com uma circunvizinhança do que percebo objetos, eu antes me dedico à minha tarefa do que estou diante dela. Husserl cha- ma de protensões e retenções às intencionalidades que me ancoram em uma circunvizinhança. Elas não partem de um Eu central, mas de alguma maneira de meu próprio campo perceptivo, que arrasta atrás de si seu horizonte de reten- ções e por suas protensões morde o porvir. Não passo por uma série de agoras dos quais eu conservaria a imagem e que, postos lado a lado, formariam uma linha. A cada mo- mento que chega, o momento precedente sofre uma modifi- cação: eu ainda o tenho em mãos, ele ainda está ali, e toda- via ele já soçobra, ele desce para baixo da linha dos presen- tes; para conservá-lo, é preciso que eu estenda a mão atra- vés de uma fina camada de tempo. É exatamente ele, e te- nho o poder de alcançá-lo tal como ele acaba de ser, não estou cortado dele, mas enfim ele não seria passado se nada tivesse mudado, ele começa a se perfilar ou a se projetar sobre meu presente, quando há pouco ele era meu presente. Quando sobrevém um terceiro momento, o segundo sofre uma nova modificação; de retenção que era, ele se torna retenção de retenção, a camada de tempo entre mim e ele se espassa. Podemos, como o faz Husserl, representar o fe- nômeno por um esquema, ao qual seria preciso acrescentar, para ele ser completo, a perspectiva simétrica das proten- sões. O tempo não é uma linha, mas uma rede de intencio- nalidades. O SER-PARA-SI E O SER-NO-MUNDO 559
Passado A Porvir
segundo Husserl (Zeitbewusztsein, p. 22)
Linha horizontal: série dos "agora". Linhas oblíquas: Abs- chattungen dos mesmos "agora" vistos de um "agora" ul- terior. Linhas verticais: Abschattungen sucessivos de um mes- mo "agora".
Dir-se-á sem dúvida que esta descrição e este esquema
não nos fazem avançar um só passo. Quando passamos de A a B, depois a C, A se projeta ou se perfila em A', depois em A " . Para que A' seja reconhecido como retenção ou Abs- chattung de A, e A" de A', e até mesmo para que a transfor- mação de A em A' seja experimentada como tal, não é ne- cessária uma síntese de identificação que reúna A, A', A" e todos os outros Abschattungen possíveis, e isso não significa fazer de A uma unidade ideal como o quer Kant? E todavia, com essa síntese intelectual, nós sabemos que não haverá mais tempo. Para mim, A e todos os momentos anteriores do tem- po serão identificáveis, de alguma maneira eu estarei salvo do tempo que os faz deslizar e os embaralha, mas com o mes- mo movimento eu terei perdido o próprio sentido do antes e do depois, que só é dado por esse deslizamento, e nada mais distinguira a série temporal de uma multiplicidade espacial. Se Husserl introduziu a noção de retenção e disse que eu ainda tenho em mãos o passado imediato, foi justamente para ex- primir que eu não ponho o passado ou não o construo a par- tir de um Abschattung realmente distinto dele e por um ato ex- presso, que eu o alcanço em sua ecceidade recente e todavia já passada. O que me é dado não é em primeiro lugar A', 560 FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO
A" ou A ' " , e eu não remonto desses "perfis" ao seu origi-
nal como se vai do signo à significação. O que me é dado é A visto por transparência através de A', depois este conjunto através de A" e assim por diante, da mesma maneira como vejo o próprio pedregulho através das massas de água que deslizam sobre ele. Existem sínteses de identificação, mas ape- nas na recordação expressa e na evocação voluntária do pas- sado distante, quer dizer, nos modos derivados da consciên- cia do passado. Por exemplo, hesito sobre a data de uma re- cordação, tenho diante de mim uma certa cena, não sei em que ponto do tempo prendê-la, a recordação perdeu sua an- coragem, posso então obter uma identificação intelectual fun- dada, por exemplo, na ordem causai dos acontecimentos: mandei fazer este traje antes do armistício, já que logo de- pois não se encontravam mais tecidos ingleses. Mas, neste caso, não é o próprio passado que eu atinjo. Ao contrário, quando reencontro a origem concreta da recordação, é por- que esta se recoloca em uma certa corrente de temor e de es- perança que vai de Munique à guerra, é porque encontro o tempo perdido, é porque, desde o momento considerado até meu presente, a cadeia das retenções e o encaixe dos hori- zontes sucessivos asseguram uma passagem contínua. Os pró- prios referenciais objetivos em relação aos quais, na identifi- cação mediata, eu localizo minha recordação e, em geral, a síntese intelectual só têm um sentido temporal porque pouco a pouco a síntese da apreensão me liga a todo o meu passado efetivo. Portanto, não se poderia tratar de reduzir a segunda à primeira. Se os Abschattungen A' e A" me aparecem como Abschattungen de A, não é porque eles todos participam de uma unidade ideal A que seria sua razão comum. É porque, atra- vés deles, eu tenho o próprio ponto A em sua individualida- de irrecusável, fundada de uma vez por todas por sua passa- gem no presente, e porque vejo brotar dele os Abschattungen A', A"... Em linguagem husserliana, abaixo da "intencio- O SER-PARA-SI E O SER-NO-MUNDO 561
nalidade de ato", que é a consciência tética de um objeto e
que, na memória intelectual por exemplo, converte o isto em idéia, precisamos reconhecer uma intencionalidade "operan- te" (fungierende Intentionalitàtf, que torna a primeira possível e que é aquilo que Heidegger chama de transcendência. Meu presente se ultrapassa em direção a um porvir e a um passa- do próximos e os toca ali onde eles estão, no próprio passa- do, no próprio porvir. Se só tivéssemos o passado sob forma de recordações expressas, a cada instante seríamos tentados a evocá-lo para verificar sua existência, assim como aquele doente do qual fala Scheler, que se virava para assegurar-se de que os objetos estavam ali — quando sentimos o passado atrás de nós como um saber adquirido irrecusável. Para ter um passado ou um porvir, não precisamos reunir, por um ato intelectual, uma série deAbschattungen, estes têm como que uma unidade natural e primordial, e é o próprio passado ou o próprio futuro que se anunciam através deles. Tal é o pa- radoxo daquilo que poderíamos chamar, com Husserl, de "síntese passiva" do tempo6 — uma expressão que eviden- temente não é uma solução, mas um índice para designar um problema. O problema começa a se esclarecer se nós nos lembra- mos de que nosso diagrama representa um corte instantâneo no tempo. O que existe na realidade não é um passado, um presente, um futuro, não são instantes discretos A, B, C, Abs- chattungen realmente distintos A', A", B', não é uma multi- dão de retenções e, por outro lado, uma multidão de proten- sões. O surgimento de um presente novo não provoca uma com- pressão do passado e um despertar do futuro, mas o novo pre- sente é a passagem de um futuro ao presente e do antigo pre- sente ao passado, é com um só movimento que, de um extremo ao outro, o tempo se põe a mover. Os "instantes" A, B, C não são sucessivamente, eles se diferenciam uns dos ou- tros e, correlativamente, A passa para A' e dali para A " . En- 562 FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO
fim o sistema das retenções, a cada instante, recolhe em si
mesmo aquilo que, um instante antes, era o sistema das pro- tensões. Ali existe não uma multiplicidade de fenômenos li- gados, mas um só fenômeno de escoamento. O tempo é o úni- co movimento que em todas as suas partes convém a si mes- mo, assim como um gesto envolve todas as contrações mus- culares que são necessárias para realizá-lo. Quando se passa de B a C, existe como que uma dissolução, uma desintegra- ção de B em B', de A' em A"; o próprio C, que, quando estava para chegar, se anunciava por uma emissão contínua de Abschattungen, logo que chega à existência já começa a per- der sua substância. "O tempo é o meio, oferecido a tudo aqui- lo que será, de ser a fim de não ser mais." 7 Ele não é outra coisa senão uma fuga geral para fora do Si, a lei única desses movimentos centrífugos, ou ainda, como diz Heidegger, um "ek-stase". Enquanto B se torna C, ele também se torna B', e no mesmo momento A, que se tornando B também tinha se tornado A', cai em A". A, A' e A", por um lado, B e B', por outro, são ligados entre si não por uma síntese de identi- ficação, que os fixaria em um ponto do tempo, mas por uma síntese de transição (Uebergangssynthesis), enquanto eles saem uns dos outros, e cada uma dessas projeções é apenas um as- pecto da dissolução ou da deiscência total. Eis por que o tem- po, na experiência primordial que dele temos, não é para nós um sistema de posições objetivas através das quais nós pas- samos, mas um ambiente movente que se distancia de nós, assim como a paisagem na janela do vagão. Todavia, não cre- mos deveras que a paisagem se move, o guarda-cancela pas- sa como uma rajada, mas a colina lá embaixo mal se move e, da mesma maneira, se o começo de minha jornada já se distancia, o começo de minha semana é um ponto fixo, um tempo objetivo se desenha no horizonte e portanto deve esbo- çar-se em meu passado imediato. Como isso é possível? Co- mo o ek-stase temporal não é uma desintegração absoluta em O SER-PARA-SI E O SER-NO-MUNDO 563
que a individualidade dos momentos desapareça? E porque
a desintegração desfaz aquilo que a passagem do futuro ao presente tinha feito: C está ao termo de uma longa concen- tração que o conduziu à maturidade; à medida que se prepa- rava, ele se assinalava por Abschattungen sempre menos nu- merosos, ele se aproximava em pessoa. Quando chegou ao pre- sente, ele trazia para ali a sua gênese, da qual ele era apenas o limite, e a presença próxima daquilo que devia vir depois dele. Dessa forma, quando esta se realiza e o impele para o passado, ela não o priva bruscamente do ser, e sua desinte- gração é para sempre o avesso ou a conseqüência de sua ma- turação. Em suma, como no tempo ser e passar são sinôni- mos, tornando-se passado o acontecimento não deixa de ser. A origem do tempo objetivo, com suas localizações fixas sob nosso olhar, não deve ser procurada em uma síntese eterna, mas no acordo e na recuperação do passado e do porvir atra- vés do presente, na própria passagem do tempo. O tempo con- serva aquilo que fez ser no próprio momento em que o ex- pulsa do ser, porque o novo ser era anunciado pelo prece- dente como devendo ser e porque para este era a mesma coi- sa tornar-se presente e ser destinado a passar. "A temporali- zação não é uma sucessão (Nacheinander) de êxtases. O porvir não é posterior ao passado e este não é anterior ao presente. A temporalidade se temporaliza como porvir-que-vai-para- o-passado-vindo-para-o-presente."8 Bergson estava errado em explicar a unidade do tempo por sua continuidade, pois isso significa confundir passado, presente e porvir sob o pre- texto de que se caminha de um para o outro por transições insensíveis, e enfim significa negar o tempo. Mas ele tinha razão em apegar-se à continuidade do tempo como a um fe- nômeno essencial. E preciso apenas elucidá-lo. O instante C e o instante D, por mais vizinhos que se queira do primeiro, não são indiscerníveis, pois então não haveria tempo, mas um passa pelo outro e C torna-se D porque C sempre foi ape- 564 FEN0MEN0L0G1A DA PERCEPÇÃO
nas a antecipação de D como presente e a antecipação de sua
própria passagem ao passado. Isso significa dizer que cada presente reafirma a presença de todo o passado que expulsa e antecipa a presença de todo por-vir, e que por definição o presente não está encerrado em si mesmo e se transcende em direção a um porvir e a um passado. O que existe não é um presente, depois um outro presente que sucede o primeiro no ser, e nem mesmo um presente com perspectivas de passado e de porvir seguido por um outro presente em que essas pers- pectivas seriam subvertidas, de forma que seria necessário um espectador idêntico para operar a síntese das perspectivas su- cessivas: existe um só tempo que se confirma a si mesmo, que não pode trazer nada à existência sem já tê-lo fundado como presente e como passado por vir, e que se estabelece por um só movimento. Portanto, o passado não «passado, nem o futuro é futu- ro. Eles só existem quando uma subjetividade vem romper a plenitude do ser em si, desenhar ali uma perspectiva, ali introduzir o não-ser. Um passado e um porvir brotam quan- do eu me estendo em direção a eles. Para mim mesmo, eu não estou no instante atual, estou também na manhã deste dia ou na noite que virá, e meu presente, se se quiser, é este instante, mas é também este dia, este ano, minha vida intei- ra. Não é preciso uma síntese que, do exterior, reúna os têm- pora em um único tempo, porque cada um dos têmpora já com- preendia, além de si mesmo, a série aberta dos outros têmpo- ra, comunicava-se interiormente com eles, e porque a "coe- são de uma vida" 9 é dada com seu ek-stase. A passagem do presente a um outro presente, eu não a penso, não sou seu espectador, eu a efetuo, eu já estou no presente que virá, as- sim como meu gesto já está em sua meta, eu mesmo sou o tempo, um tempo que "permanece" e não "se escoa" nem "muda", como Kant o disse em alguns textos10. A sua ma- neira, o senso comum apercebe esta idéia do tempo que se O SER-PARA-SI E O SER-NO-MUNDO 565
antecipa a si mesmo. Todo mundo fala do tempo, e não co-
mo o zoólogo fala do cão ou do cavalo, no sentido de um no- me coletivo, mas no sentido de um nome próprio. Por vezes, até o personificam. Todo mundo pensa que ali existe um único ser concreto, presente por inteiro em cada uma de suas ma- nifestações, assim como um homem está em cada uma de suas falas. Diz-se que existe um tempo, assim como se diz que exis- te um jato d'água: a água muda e o jato d'água permanece porque a forma se conserva: a forma se conserva porque ca- da onda sucessiva retoma as funções da precedente: onda im- pelente em relação àquela que impelia, ela se torna, por sua vez, onda impelida em relação a uma outra; e enfim exata- mente isso provém do fato de que, desde a fonte até o jato, as ondas não são separadas: há um só ímpeto, uma única la- cuna no fluxo bastaria para romper o jato. E aqui que se jus- tifica a metáfora do rio, não enquanto o rio se escoa, mas en- quanto ele permanece um e o mesmo. Mas esta intuição da permanência do tempo está comprometida no senso comum, porque ele o tematiza ou o objetiva, o que é justamente a ma- neira mais segura de ignorá-lo. Há mais verdade nas perso- nificações míticas do tempo do que na noção do tempo consi- derado, à maneira científica, como uma variável da nature- za em si ou, à maneira kantiana, como uma forma idealmente separável de sua matéria. Há um estilo temporal do mundo, e o tempo permanece o mesmo porque o passado é um anti- go porvir e um presente recente, o presente é um passado pró- ximo e um porvir recente, o porvir enfim é um presente e até mesmo um passado por vir, quer dizer, porque cada di- mensão do tempo é tratada ou visada como outra coisa que não ela mesma — quer dizer, enfim, porque no âmago do tempo existe um olhar ou, como diz Heidegger, um Augen- blick, alguém por quem a palavra como possa ter um sentido. Nós não dizemos que o tempo é para alguém: isso seria estendê-lo ou imobilizá-lo novamente. Dizemos que o tempo 566 FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO
é alguém, quer dizer, que as dimensões temporais, enquanto
se recobrem perpetuamente, se confirmam umas às outras, nunca fazem senão explicitar aquilo que estava implicado em cada uma, exprimem todas uma só dissolução ou um só ím- peto que é a própria subjetividade. É preciso compreender o tempo como sujeito e o sujeito como tempo. Evidentemen- te, essa temporalidade originária não é uma justaposição de acontecimentos exteriores, já que ela é a potência que os man- tém juntos distanciando-os uns dos outros. A subjetividade última não é temporal no sentido empírico da palavra: se a consciência do tempo fosse feita de estados de consciência que se sucedem, seria necessária uma nova consciência para ter consciência dessa sucessão e assim por diante. Somos obri- gados a admitir uma consciência que não tenha mais, atrás de si, nenhuma consciência para ter consciência dela" 11 , que, conseqüentemente, não esteja estendida no tempo e cujo "ser coincida com o ser para si" 12 . Podemos dizer que a consciência última é "sem tempo" (zeitlosè) no sentido em que ela não é intratemporal13. " E m " meu presente, se eu o re- tomo ainda vivo e com tudo aquilo que ele implica, há um êxtase em direção ao porvir e em direção ao passado que faz as dimensões do tempo se manifestarem, não como rivais, mas como inseparáveis: ser presentemente é ser sempre, e ser pa- ra sempre. A subjetividade não está no tempo'porque ela as- sume ou vive o tempo e se confunde com a coesão de uma vida. Retornamos assim a uma espécie de eternidade? Estou no passado e, pelo encaixe contínuo das retenções, conservo minhas mais antigas experiências, não tenho delas alguma reprodução ou alguma imagem, eu as tenho elas mesmas, exa- tamente tais como foram. Mas o encadeamento contínuo dos campos de presença, pelo qual me é garantido este acesso ao próprio passado, tem por caráter essencial só efetuar-se pou- co a pouco e passo a passo; cada presente, por sua própria O SER-PARA-SI E O SER-NO-MUNDO 567
essência de presente, exclui a justaposição com os outros pre-
sentes e, mesmo no passado distante, só posso abarcar uma certa duração de minha vida desenrolando-a novamente se- gundo seu tempo próprio. A perspectiva temporal, a confusão dos longínquos, essa espécie de "encolhimento" do passado cujo limite é o esquecimento não são acidentes da memória, não exprimem a degradação, na existência empírica, de uma consciência do tempo em princípio total, eles exprimem sua ambigüidade inicial: reter é ter, mas à distância. Mais uma vez, a "síntese" do tempo é uma síntese de transição, ela é o movimento de uma vida que se desdobra, e não há outra maneira de efetuá-la senão viver essa vida, não há lugar do tempo, é o próprio tempo que se conduz e torna a se lançar. Somente o tempo enquanto ímpeto indiviso e enquanto tran- sição pode tornar possível o tempo enquanto multiplicidade sucessiva, e o que nós colocamos na origem da intratempo- ralidade é um tempo constituinte. Quando há pouco descre- víamos a recuperação do tempo por si mesmo, só conseguía- mos tratar o futuro como um passado acrescentando um pas- sado por vir, e o passado como um porvir acrescentando um porvir já advindo — o que representa dizer que, no momen- to de nivelar o tempo, era preciso afirmar novamente a ori- ginalidade de cada perspectiva e fundar essa quase-eternidade no acontecimento. O que não passa no tempo é a própria pas- sagem do tempo. O tempo se recomeça: ontem, hoje, ama- nhã, esse ritmo cíclico, essa forma constante pode-nos dar a ilusão de possuí-lo por inteiro de uma só vez, assim como o jato d'água nos dá um sentimento de eternidade. Mas a ge- neralidade é apenas um atributo secundário do tempo e só dá dele uma visão inautêntica, já que não podemos nem mes- mo conceber um ciclo sem distinguir temporalmente o ponto de chegada e o ponto de partida. O sentimento de eternidade é hipócrita, a eternidade se alimenta do tempo. O jato d'água só permanece o mesmo pelo ímpeto continuado da água. A 568 FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO
eternidade é o tempo do sonho, e o sonho reenvia à vigília,
à qual ele toma de empréstimo todas as suas estruturas. Qual é então este tempo desperto em que a eternidade se enraíza? Ele é o campo de presença no sentido amplo, com seu duplo horizonte de passado e de porvir originários e a infinidade aberta dos campos de presença findos ou possíveis. Só existe tempo para mim porque estou situado nele, quer dizer, por- que me descubro já envolvido nele, porque todo ser não me é dado em pessoa, e enfim porque ura setor do ser me é tão próximo, que ele nem mesmo se expõe diante de mim e não posso vê-lo, assim como não posso ver meu rosto. Existe tem- po para mim porque tenho um presente. É vindo ao presente que um momento do tempo adquire a individualidade inde- lével, o "de uma vez por todas" que lhe permitirão em se- guida atravessar o tempo e nos darão a ilusão da eternidade. Nenhuma das dimensões do tempo pode ser deduzida das ou- tras. Mas o presente (no sentido amplo, com seus horizontes de passado e de porvir originários) tem todavia um privilégio porque ele é a zona em que o ser e a consciência coincidem. Quando me recordo de uma percepção antiga, quando ima- gino uma visita a meu amigo Paulo que está no Brasil, é ver- dade que viso o próprio passado em seu lugar, o próprio Paulo no mundo, e não algum objeto mental interposto. Mas en- fim meu ato de representação, à diferença das experiências representadas, me está efetivamente presente, um é percebi- do, os outros justamente são apenas representados. Uma ex- periência antiga, uma experiência eventual precisam, para me aparecer, ser trazidas ao ser por uma consciência primá- ria, que é aqui minha percepção interior da rememoração ou da imaginação. Dizíamos acima que é preciso chegar a uma consciência que não tenha mais nenhuma outra atrás de si, que portanto apreenda seu próprio ser, e em que enfim ser e ser consciente sejam um e o mesmo. Esta consciência últi- ma não é um sujeito eterno que se aperceba em uma trans- O SER-PARA-SI E O SER-NO-MUNDO 569
parência absoluta, pois um tal sujeito seria definitivamente
incapaz de decair no tempo e não teria portanto nada de co- mum com nossa experiência — ela é a consciência do pre- sente. No presente, na percepção, meu ser e minha consciên- cia são um e o mesmo, não que meu ser se reduza ao conhe- cimento que dele tenho e esteja claramente exposto diante de mim — ao contrário, a percepção é opaca, ela põe em ques- tão, abaixo daquilo que eu conheço, meus campos sensoriais, minhas cumplicidades primitivas com o mundo —, mas por- que aqui "ter consciência" não é senão "ser em..." e por- que minha consciência de existir confunde-se com o gesto efe- tivo de "ex-situação" 14 . É comunicando-nos com o mundo que indubitavelmente nos comunicamos com nós mesmos. Nós temos o tempo por inteiro e estamos presentes a nós mes- mos porque estamos presentes no mundo. Se é assim, e se a consciência se enraíza no ser e no tem- po assumindo ali uma situação, como podemos descrevê-la? E preciso que ela seja um projeto global ou uma visão do tem- po e do mundo que para manifestar-se, para tornar-se expli- citamente aquilo que implicitamente ela é, quer dizer, cons- ciência, precisa desenvolver-se no múltiplo. Nós não deve- mos realizar à parte nem a potência indivisa, nem suas ma- nifestações distintas, a consciência não é um ou o outro, ela é um e o outro, ela é o próprio movimento de temporaliza- ção e, como diz Husserl, de "fluxão", um movimento que se antecipa, um fluxo que não se abandona. Tentemos descrevê-la melhor a partir de um exemplo. O romancista, o psicólogo que não remonta às fontes e toma a temporaliza- ção inteiramente pronta, vê a consciência como uma multi- plicidade de fatos psíquicos entre os quais ele tenta estabele- cer relações de causalidade. Por exemplo15, Proust mostra como o amor de Swann por Odete acarreta o ciúme que, por sua vez, modifica o amor, já que Swann, sempre preocupado em arrebatá-la de qualquer outro, perde o tempo disponível 570 FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO
para contemplar Odete. Na realidade, a consciência de Swann
não é um meio inerte em que fatos psíquicos suscitam-se uns aos outros do exterior. O que existe não é o ciúme provocado pelo amor e em troca alterando-o, mas uma certa maneira de amar em que de um só golpe se lê todo o destino desse amor. Swann gosta da pessoa de Odete, desse "espetáculo" que ela é, dessa maneira de olhar que ela tem, dessa maneira de sorrir, de modular sua voz. Mas o que é gostar de alguém? Proust o diz a propósito de um outro amor: é sentir-se ex- cluído dessa vida, querer entrar nela e ocupá-la inteiramen- te. O amor de Swann não provoca o ciúme. Ele já / ciúme, e desde o seu começo. O ciúme não provoca uma modifica- ção do amor: o prazer que Swann tinha em contemplar Ode- te trazia em si mesmo sua alteração, já que era o prazer de ser o único a fazê-lo. A série dos fatos psíquicos e das rela- ções de causalidade apenas traduz no exterior uma certa vi- são de Swann sobre Odete, urna certa maneira de ser para outrem. O amor ciumento de Swann deveria, aliás, ser posto em relação com suas outras condutas, e talvez agora ele mes- mo apareceria como a manifestação de uma estrutura de exis- tência ainda mais geral, que seria a pessoa de Swann. Reci- procamente, toda consciência enquanto projeto global se per- fila ou se manifesta a si mesma em atos, experiências, "fatos psíquicos" em que ela se reconhece. E aqui que a temporali- dade ilumina a subjetividade. Nunca compreenderemos co- mo um sujeito pensante ou constituinte pode pôr-se ou per- ceber-se a si mesmo no tempo. Se o Eu é o Eu transcendental de Kant, nunca compreenderemos como ele possa em algum caso confundir-se com seu rastro no sentido interno, nem co- mo o eu empírico ainda seja um eu. Mas, se o sujeito é tem- poralidade, então a autoposição deixa de ser uma contradi- ção, porque ela exprime exatamente a essência do tempo vi- vo. O tempo é "afecção de si por si" 16 : aquele que afeta é o tempo enquanto ímpeto e passagem para um porvir; aque- O SER-PARA-SI E O SER-NO-MUNDO 571
le que é afetado é o tempo enquanto série desenvolvida dos
presentes; o afetante e o afetado são um e o mesmo, porque o ímpeto do tempo é apenas a transição de um presente a um presente. Este ek-stase, esta projeção de uma potência indivi- sa em um termo que lhe está presente, é a subjetividade. O fluxo originário, diz Husserl, não apenas é: necessariamente ele deve dar-se uma "manifestação de si mesmo" (Selbsters- cheinung), sem que precisemos colocar, atrás desse fluxo, um outro fluxo para tomar consciência do primeiro. Ele "se cons- titui como fenômeno em si mesmo" 17 , é essencial ao tempo não ser apenas tempo efetivo ou que se escoa, mas ainda tem- po que se sabe, pois a explosão ou a deiscência do presente em direção a um porvir é o arquétipo da relação de si a si e desenha uma interioridade ou uma ipseidade18. Aqui brota uma luz19, aqui não tratamos mais com um ser que repousa em si, mas com um ser do qual toda a essência, assim como a da luz, é fazer ver. É pela temporalidade que, sem contradi- ção, pode haver ipseidade, sentido e razão. Isso se vê até na noção comum do tempo. Nós delimitamos fases ou etapas de nossa vida, pòr exemplo consideramos como fazendo parte de nosso presente tudo o que tem uma relação de sentido com nossas ocupações do momento; portanto, reconhecemos im- plicitamente que tempo e sentido são um e o mesmo. A sub- jetividade não é a identidade imóvel consigo: para ser subje- tividade, é-lhe essencial, assim como ao tempo, abrir-se a um Outro e sair de si. Não é preciso representarmo-nos o sujeito como constituinte e a multiplicidade de suas experiências ou de seus Erlebnisse como constituídos; não é preciso tratar o Eu transcendental como o verdadeiro sujeito e o eu empírico co- mo sua sombra ou seu rastro. Se a relação entre eles fosse esta, poderíamos retirar-nos no constituinte, e esta reflexão fenderia o tempo, ele seria sem lugar e sem data. Se, de fato, até mesmo nossas reflexões mais puras nos aparecem retros- pectivamente no tempo, se existe inserção no fluxo de nossas 572 FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO
reflexões sobre o fluxo20, é porque a consciência mais exata
da qual sejamos capazes encontra-se sempre como que afeta- da por si mesma ou dada a si mesma, e porque a palavra cons- ciência não tem nenhum sentido fora dessa dualidade. Nada do que se diz do sujeito é falso: é verdade que o sujeito enquanto presença absoluta a si é rigorosamente in- declinável, e que nada pode advir-lhe do qual ele não traga em si mesmo o esboço; é verdade também que ele se dá em- blemas de si mesmo na sucessão e na multiplicidade, e que esses emblemas são ele, já que sem aqueles ele seria como um grito inarticulado e nem mesmo chegaria à consciência de si. Aquilo que provisoriamente chamávamos de síntese pas- siva encontra aqui seu esclarecimento. Uma síntese passiva é contraditória se a síntese é composição, e se a passividade consiste em receber uma multiplicidade em lugar de compô- la. Falando em síntese passiva, queríamos dizer que o múlti- plo é penetrado por nós e que, todavia, não somos nós que efetuamos sua síntese. Ora, a temporalização, por sua pró- pria natureza, satisfaz a essas suas condições: com efeito, é visível que eu não sou o autor do tempo, assim como não sou autor dos batimentos de meu coração, não sou eu quem to- ma a iniciativa da temporalização; eu não escolhi nascer e, uma vez nascido, o tempo funde-se através de mim, o que quer que eu faça. E todavia este jorramento do tempo não é um simples fato que eu padeço, nele posso encontrar um recurso contra ele mesmo, como acontece em uma decisão que me envolve ou em um ato de fixação conceptual. Ele me arranca daquilo que eu ia ser, mas ao mesmo tempo me dá o meio de apreender-me à distância e de realizar-me enquanto eu. Aquilo que se chama de passividade não é a recepção por nós de uma realidade estranha ou a ação causai do exterior sobre nós: é um investimento, um ser em situação antes do qual nós não existimos, que recomeçamos perpetuamente e que é constitutivo de nós mesmos. Uma espontaneidade "ad- O SER-PARA-SI E O SER-NO-MUNDO 573
quirida" de uma vez por todas que "se perpetua no ser em
virtude do adquirido" 21 , eis exatamente o tempo e eis exa- tamente a subjetividade. Eis o tempo, já que um tempo que não tivesse suas raízes em um presente e, através disso, em um passado não seria mais tempo, mas eternidade. O tempo histórico de Heidegger, que flui do porvir e que, pela decisão resoluta, antecipadamente tem seu porvir e salva-se de uma vez por todas da dispersão, é impossível segundo o próprio pensamento de Heidegger: pois, se o tempo é um ek-stase, se presente e passado são dois resultados desse êxtase, como dei- xaríamos totalmente de ver o tempo do ponto de vista do pre- sente, e como sairíamos definitivamente do inautêntico? É sempre no presente que estamos centrados, é dele que par- tem nossas decisões; portanto, elas sempre podem ser postas em relação com nosso passado, nunca são sem motivo e, se elas abrem em nossa vida um ciclo que pode ser inteiramen- te novo, devem ser retomadas na seqüência, elas só nos sal- vam da dispersão por certo tempo. Portanto, não se pode tra- tar de deduzir o tempo da espontaneidade. Nós não somos temporais porque somos espontâneos e porque, enquanto cons- ciências, nos afastamos de nós mesmos, mas ao contrário o tempo é o fundamento e a medida de nossa espontaneidade, a potência de ir além e de "niilizar'' que nos habita, que nós mesmos somos, ela mesma nos é dada com a temporalidade e com a vida. Nosso nascimento, ou, como diz Husserl em seus inéditos, nossa "generatividade", funda simultaneamen- te nossa atividade ou nossa individualidade, e nossa passivi- dade ou nossa generalidade, esta fraqueza interna que nos impede de obter alguma vez a densidade de um indivíduo ab- soluto. Nós não somos, de uma maneira incompreensível, uma atividade junto a uma passividade, um automatismo do- minado por uma vontade, unia perceção dominada por um juízo, mas inteiramente ativos e inteiramente passivos, por- que somos o surgimento do tempo.