Domingo na praça Um menino irrompe correndo para mim,
desabalado, estaca suando e pergunta que horas são.
Domingo de manhã, eu me sentei na praça da Respondo, ainda tenho tempo. Claro que faço hora. E cidade. Era uma cidade estranha, vista em visita, e sua me levanto, acendo um cigarro com vagar. Só por que praça pulsava colorida, ensolarada, neste meio de tenho tempo? Vou até o centro da praça, olho o primavera. Do meu banco, sob uma árvore velha que monumento ao general, uma alegoria com cães de espalhava ao redor florzinhas roxas, percorri as guarda, uma república tocando violão na bandeira, construções alinhadas pelos quatro lados tão encimado por tosca reprodução da estátua da inesperadamente planos e regulares. Havia um prédio liberdade. São fascinantes as nossas adaptações. Logo centenário com jeito de prefeitura, um outro moderno adiante, modestamente, a erma de um advogado nos talvez assembléia, um antigo teatro pintado de novo, lembra: sem eles não há justiça. Estou de acordo. E uma vaga visão clássica de fórum, uma igreja levantada volto para o meu banco, agora já é meu, desistido da em obras de épocas superpostas. Por duas das faces, nossa escultura oficial. entre as edificações avantajadas, resistiam casas de Cheguei e vi. Como quem não quer nada, cinqüenta anos atrás, pedaços de jardins, barracões de sentado na manhã dominical, eu vi o rapaz em frente. madeira. E tudo se embaçava um pouco no acalorado Escorado na motocicleta, de calças jeans, nu da cintura mormaço. para cima. E vi a moça aparecer, vestida de verde. E os Sobre os ruídos em volta, difusa mistura de dois se encontrarem. E sem o menor prefácio se crianças jogando bola, vendedores ambulantes e carros beijarem. E se abraçarem, se apalparem, fazerem quase passando mais longe, os altofalantes da igreja tudo a que tinham direto. Ali no maior sol, diante de cantavam a missa da dez. Não me lembro de ter todo mundo. Confesso que ainda estranho. Mas gosto, ouvido sinos a anunciá-la, quando passei pelo centro e gostar é pouco, adoro. Como não admirar o idílio afinal caminhei para a sombra dos canteiros. Santo é o atualizado, o amor ao câmbio de hoje? Senhor. As vozes em dueto, com o acompanhamento Aquilo me iluminou. De repente eu não de órgão, dominavam a praça. No entanto sem soube mais do que era velho, encontrei o novo. O estridências, ao contrário muito calmas. Elas se movimento das pessoas avivando a manhã, das arredondavam como fundo musical, vagaroso, árvores soltas na brisa, dos gritos infantis saudando o desenovelando uma certa paz. carrinho de sorvete. Então percebi os cartazes Pela calçada vem um grupo de três mulheres. próximos: diretas-já, ecologia, desarmamento. As Aproximam-se bem juntas, e apesar do conjunto camisetas das moças, de vistosos desenhos com recortado são esmaecidas. Uma, de elevadíssima idade, palavras. As barbas dos rapazes, seus gestos falando a está numa cadeira de rodas. Outra, menos idosa, a caminho. As bicicletas borboleteando, as capas dos empurra, andando levemente. A terceira é grisalha e livros que as jovens mães traziam, as flores na força da segue pausada, também silenciosa. estação. Animada, a praça ganhou as cores do Em seqüência passa a mãe com o filho. Ela presente. usa short e blusa sumária, mostra-se bonita. Ele um Do outro lado da rua, a faixa convidava para garoto de tanga e passo incerto, aos tropeços de o debate sobre um filme que estavam exibindo. Filme brinquedo na mão. Os dois chegam e saem absortos, brasileiro, memórias da nossa ditadura anterior, ligados entre si, dizendo palavras avulsas de uma só baseado em livro de quem a sofreu. Coisas didáticas. linguagem. Alheios ao resto. Eu olhei a praça mais uma vez, me despedindo, e fui Aí surge o casal em plenitude. O homem é para lá. Naturalmente renovado. moreno, tem costeletas, uma camisa de ramagens e RAMOS, Ricardo. Domingo na praça. sandálias. A mulher é loura, volumosa, decerto porque Folha da Tarde, São Paulo, 08 nov. 1984. Geral, p. 4. está extremamente grávida. E estão imersos, continuam, os dois acordes no passo e no mundo. Ainda que não percebam, desfilam. Lindamente.