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Uma carta para o Vazio

Contato

EUA, 2092

As gotas da chuva se lançavam violentamente contra o para-brisa do jipe


que se guiava na estrada de terra, rodeada de milharais, daquele campo rural. A
noite já havia caído a algumas horas e uma nuvem de neblina se estendia por
toda a região, inferindo um frio cortante como uma lâmina afiada. Os vales e
montanhas podiam ser vistos de dentro do veículo, distantes e colossais. Onde
não se via a fazenda, existia florestas de pinheiros enormes que se perdiam no
horizonte.

— É isso — olhou de relance para o sargento McArter, um homem


corpulento e de pele e olhos escuros — É hora da verdade, sargento — sorria de
canto, esperançosa.

— Quinhentos metros para o local demarcado, sargento — informou o


motorista.

— Certo, estamos nos aproximando — falou em seu ponto, no ouvido —


Quero uma marcação do perímetro num raio de cem metros.

— Sim, senhor — um dos agentes respondeu na escuta com um som


distorcido e sujo, como em um rádio.

A casa da fazenda era toda de madeira, paredes e piso. As luzes de dentro,


fracas e amareladas, estavam acesas. Havia um moinho próximo, entre a casa e o
milharal, que girava insanamente devido aos fortes ventos gelados. O jipe
estacionou defronte à entrada da casa, onde havia uma varanda entelhada e uma
cadeira de balanço, também de madeira.

— Primeiro as damas — apontou o sargento à porta de entrada, ao descer


do jipe e, cavalheiramente, abrir a porta para a doutora Lia.

A doutora Lia já vestia o seu traje térmico para que não se afetasse pela
temperatura ambiente. Andou a passos rápidos em direção à entrada da casa e
esperou que se aproximassem o sargento e dois agentes que os acompanhavam.

— Certo, vamos lá — rodopiou no calcanhar e bateu na porta. Ninguém


veio os recepcionar. Insistiu então e bateu novamente, mas dessa vez ouviu-se a
porta ser destrancada em três locais diferentes em todo a sua altura. Um rosto se
materializou detrás da porta:
— O que vocês querem? — tinha uma voz fraca e falha, mas resmungava,
como se estivesse impaciente. O cabelo grisalho, o rosto com rugas e os óculos
redondos fundos lhe entregavam a idade.

— Boa noite, senhor Joseph. Nós queremos falar com o senhor —


respondeu Lia, pacientemente, quase que gritando devido ao barulho da chuva.

— Bom, vocês vieram numa hora errada. Desculpe, eu não quero receber
visitas — ia fechando a porta, quando o Sargento o impediu segurando a mesma.

— Não, velhote. Você não entendeu, nós queremos falar com você — fixou
o olhar nos do velho que estava de boca entreaberta, espantado com a ousadia
do sargento.

— Quem são vocês? — perguntou curioso. Agora observava as


vestimentas do grupo e notou que os agentes, encapuzados em negro e com LEDs
verdes brilhantes na face, empunhavam rifles de assalto.

— SIG, Serviço de Inteligência do Governo. Podemos bater um papo? —


mostrava o distintivo a doutora Lia. O velho olhava, pasmado, ora para Lia ora
para os fuzis dos agentes, até que permitiu a entrada do grupo resmungado:

— Ora bolas, se não pudessem, iriam querer ter o papo mesmo assim.

— Estamos dentro — informou no rádio o sargento McArter enquanto


entrava na casa.

Ao adentrar a casa, percebia-se de imediato uma lareira de verdade, num


dos cantos, na sala de estar. Os sofás e poltronas circundavam uma mesa de
centro de vidro, todos sobre um carpete de peles macio. A lareira, de tijolos,
estava acesa e esquentava o ambiente internamente. No teto da sala de estar, um
ventilador de teto de madeira girava tranquilamente. Ao fundo, observava-se a
cozinha da casa, onde uma cabeça de alce empalhada se suspendia, presa no alto
da parede. Ao olhar para a esquerda, via-se um arco de porta, mas não havia
porta ali. Olhando dentro, era um quarto de dormir com uma cama de casal com
lençóis brancos e um criado-mudo com um abajur em cima. Ao lado, uma porta
para o banheiro da casa.

— Veja bem, eu não sei o que vocês fazem aqui, mas seja o que for, eu não
sei de nada. Não fiz nada de errado, disso eu tenho certeza — sentou-se o velho
em sua poltrona. Em uma pequena mesinha, ao lado da poltrona, tomou um
antigo charuto marrom e o acendeu ali mesmo. Entretinha-se com as labaredas
do fogo que queimava na lareira, formando figuras curiosas.
— Senhor Joseph, nós não estamos aqui para incriminá-lo. Nós apenas —
olhou de relance para o sargento — Queremos conversar com o senhor —
continuou. Enquanto respondia, ia sentando em um dos sofás, de frente ao velho.
Tinha os cotovelos sobre os joelhos e as mãos entrelaçadas, ansiosa.

Olhava para o velho aguardando respostas e via que observava o fogo.


Olhou para as chamas e então percebeu o que o intimidava tanto. Em um gesto
com a cabeça, pediu para que o sargento ordenasse a retirada dos agentes, que
estavam em seus postos, na entrada. O sargento McArter entendeu o recado e
pediu para que os dois se retirassem. Quando os agentes saíram, o velho
imediatamente respondeu:

— Bolas! Em que eu, nesse mundo, sou útil para a gente do governo? —
não retirava os olhos da lareira, mas reclamava consigo. Tragou o seu charuto e
o depositou em um cinzeiro para charutos. Removeu então os óculos e limpou as
lentes na camisa.

— Agora, a vida da humanidade depende do senhor— respondeu o velho


com um sorriso.

— Como é? — olhou de relance para Lia.

— Nós queremos saber o que aconteceu em maio de 2055 — deu um passo


para frente o sargento. Naquele momento, todos se afogaram no silêncio. O velho
Joseph começava a corar, ainda observando a lareira. Uma única lágrima
escorreu em sua bochecha, alcançando seus lábios. Removeu os cabelos da testa,
respirou profundamente e, em um único fôlego, respondeu:

— Ah, minha pobre Natalie... — falou calmamente, em um suspiro.


O presente

Inglaterra, 2039

Olhava pela janela os flocos de gelo que cediam à gravidade. A neve já


dominava as ruas, carros e os telhados das casas, como um mar branco
aconchegante. Gostava de observá-las para saber quem chegava no peitoril da
janela primeiro, como numa corrida. Estava distraída quando percebeu a
aproximação de um casal. Vestiam sobretudos negros, cobertos de flocos de neve,
luvas, cachecóis e gorros. O rapaz brincava com a moça, beliscando-a; ela soltava
gargalhadas felizes. Os dois tinham sorrisos, estampados no rosto, brancos como
a própria neve que traziam. Caminharam até a porta da casa e abriram-na.

— Natalie, mas que surpresa adorável! — anunciou a moça ao entrar na


casa. A garotinha veio de encontro à moça e as duas se abraçaram fortemente,
como se tivessem saudades — Onde está a sua avó? — perguntava fazendo
gestos com as mãos enquanto o rapaz a ajudava a despir o sobretudo.

A garotinha, tímida, apontou para o teto da casa, enquanto a outra a mão


fechava sobre a boca, tampando os pequeninos dentes que nasciam. Olhou para
o casal, cochichavam algo entre si. O rapaz beijou a moça em sua face e ela saiu
para as escadas que a levavam para o segundo andar. A garotinha acompanhava
os passos da mãe com os olhos até sumir no final da escadaria.

— Ei, pequena. Pediu alguma coisa pro Papai Noel esse ano? — o rapaz se
agachou e limpou o ombro da garotinha, arrumando a gola do pijama dela. A
garota fez com a cabeça que sim.

— Robert, pode vir aqui rapidinho? — chamou a moça pelo rapaz, do


segundo andar.

— Já vou, doce! — respondeu o rapaz — Certo, tem um pote cookies detrás


da árvore — olhou de relance para uma árvore de Natal de enfeite, na sala de
estar que ficava ao lado de uma lareira elétrica e apontou com a cabeça pra ela —
Qualquer coisa, você descobriu sozinha. Tá? — sorriu firmemente. Despenteou
os escuros e loiros cabelos da garotinha e se levantou — Tô subindo! Ah, olá Carl.

— Boa tarde, senhor Robert. Como está o senhor hoje? — respondeu o


androide humano simpaticamente.

— Estou mais que ótimo, é Natal! — ia subindo as escadas, tinha uma das
mãos no corrimão quando parou de repente, pensativo — Carl, sabe o que tá
fazendo falta? — sempre falava e fazia os gestos com as suas mãos, para que sua
filha o entendesse sempre, como um costume.
— O que senhor Robert? — respondeu, curioso.

— Tá, primeiro, não precisa me chamar por senhor, já lhe disse — falou,
embaraçado — A essência de tudo, Carl — o androide apertava as sobrancelhas,
pensativo — Vamos, Carl, você sabe o que é, não se faça de bobo — subia as
escadas, rindo. Carl olhou de Robert para Natalie, buscando respostas.

— Música — a garota fez um gesto com as mãos, os lábios comprimidos.

— Ora, isso é um quanto constrangedor — falou consigo o androide.

Quando Robert subiu as escadas, sua esposa o chamava do quarto de sua


mãe. O quarto ficava logo à esquerda do hall, a última porta à direita: estava
entreaberta. Robert entrou no quarto e via Susan, sua esposa, sentada junto com
a mãe dela, a senhora Nora Portman. As duas choravam, mas com lágrimas de
felicidade. A senhora Portman corava e suas lágrimas escorriam seu rosto.

—Desculpa, eu tô atrapalhando algo? — ficou sem jeito.

— Não, Robert — Susan sorria alegremente, corada e falava engolindo os


soluços — Eu estou grávida — continuou baixinho, quase sussurrando. O rapaz
ficou sem reação por alguns segundos, surpreso. Os olhos esbugalharam do rosto
e a boca se manteve entreaberta, até que despertou e sua ficha caiu.

— Isso. Isso é um milagre! — abraçou sua esposa e começava a se


emocionar também, embebido pelo sentimento de felicidade que os atingiam
naquele momento — O que nós esperamos? — perguntou curioso.

— Um menino, Robert. Um menino — respondeu a senhora Portman


segurando as mãos do rapaz.

— Arthur, como você sempre quis — terminou Susan, olhando fixamente


nos olhos do rapaz — Nós vamos ter um casal.

O rapaz se ajoelhou perante Susan e a segurou pela cintura. Enxugou as


lágrimas com as costas da mão e olhava fixamente para o ventre da moça.

— Oi, filho. Eu sei que você tá aí — falava pausadamente e com afeto —


Sou eu, o seu pai. Você tem uma mãe incrível, sabia? Ela ainda não te contou, mas
eu falo por ela — inspirou profundamente — Eu espero que você cresça e tenha
uma vida maravilhosa — olhava agora para Susan e sua mãe.

— Desculpe interromper, Robert, mas eu vim avisar que não é para


esquecer o presente da princesa Natalie — o androide bateu na porta, como
alguém faz para entrar em algum lugar sem ser surpreendido.
— Ah, Deus! É verdade, onde eu estava com a cabeça! — levou as mãos à
cabeça espantado consigo — Vamos, vamos. Eu tenho uma surpresa pra vocês
também — disparou na frente, descendo a escadaria — Vem logo, vocês vão
amar! — já se ouvia a voz do rapaz vindo da cozinha.

Quando a senhora Portman, Susan e Carl desceram as escadas, avistaram


Robert com um sorriso irradiante. As mãos dele estavam para trás, segurando
um embrulho de presente. Natalie olhava, de boca entreaberta, curiosa, tentando
entender o que estava acontecendo. Afinal, o seu pai olhava para ela muito
alegre. Então ela retribuiu a alegria com um sorriso carinhoso.

— Papai Noel deixou um presente pra você, pequena — ajoelhou-se de


frente a filha.

A garotinha estava sentada, a poucos minutos atrás estava desenhando


dinossauros com lápis de colorir em um papel, no chão. A televisão, suspensa na
parede da sala de estar, passava um desenho animado infantil que ela amava.
Pegou o embrulho de presente e colocou entre as pernas, no chão onde estava
sentada. Olhou para sua mãe e depois para o seu pai.

— Abra — pediu Robert.

A garota começou a desfazer o laço do embrulho e a remover os papéis do


presente. Dentro, havia uma pequena caixa. A embalagem tinha um desenho do
produto, era com uma orelha de plástico, falsa. No momento não entendeu o que
estava acontecendo, entendia que aquilo pudesse ser um brinquedo, ou algo
parecido.

— Vou te ajudar, posso? — pediu Robert já levando as mãos à embalagem


e a abrindo. A garota fez com cabeça que sim. Ao retirar as orelhas de plástico de
dentro da embalagem, ele parou de repente e começou a olhar para a filha.

— Não vai te machucar, eu prometo — levava as orelhas às de Natalie.


Nesse momento, Susan levou as mãos à boca, segurando a forte emoção que lhe
comovia. Sua mãe que estava ao seu lado, lhe abraçou pelo ombro, dando-lhe
forças. Ao colocar as orelhas, um bipe tímido e duas pequenas luzes azuis que se
acenderam nas orelhas mostravam que funcionava.

— Filha — já não fazia gestos com as mãos —, você vai ter um irmãozinho.
Foram as primeiras palavras que ouviu. Iria ganhar um irmão caçula.
Lucas

Inglaterra, 2045

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