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UMA HISTÓRIA DO FlUXUS PARA CRIANÇAS

Dick Higgins

Muito, muito tempo atrás, quando o mundo ainda era bonito, que você ainda pode comprar, para ver as coisas
novo - isto é, aí por volta de 1958 - , um grupo de simples e bonitas que estão nele * - idéias e montes
artistas, compositores e outras pessoas que queriam de palavras e maneiras de tornar sua própria vida mais
fazer coisas bonitas começaram a olhar para o mundo maravilhosa.
em volta de um jeito novo (para eles).
Acontece que fazer livros custa dinheiro, e se você
Diziam: - Ei! Uma xícara de café pode ser mais bonita gasta seu dinheiro numa coisa, não pode gastar em
que uma escultura grandiosa. Um beijo de manhã pode outra. George Maciunas tinha alugado um salão grande
ser mais teatral que o teatro de um afetadinho qual- e bonito na zona mais fina de Nova York, e lá mantinha
quer. O barulho de meus pés nas botas encharcadas de uma galeria de arte onde as coisas do tipo fluxus eram
água pode ser mais bonito que uma imponente música apresentadas, compartilhadas ou simplesmente aconte-
para órgão. ciam. Mas quando não havia mais dinheiro para pagar
tudo isso, e o livro ficou pronto, George Maciunas teve
E quando viram essas coisas, ficaram mais ligados. E de desistir de sua AG Gallery, como ele a chamava.
começaram a fazer perguntas. Por exemplo: - Por que E resolveu ir para a Alemanha. Levou consigo umas
todas as coisas que eu vejo que são bonitas, como grandes caixas abarrotadas de sobras do que LaMonte
xícaras, beijos e pés em botas encharcadas, têm de ser e os outros haviam coletado, mas que não tinham entra-
apenas transformadas em parte de algo mais bonito e do na Antologia.
mais grandioso? Por que não posso simplesmente usá-
las como elas são? George Maciunas pretendia reunir-se com as pessoas
que, na Alemanha, estavam fazendo as mesmas coisas.
Ao fazerem perguntas desse tipo, estavam inventando E também pretendia fazer algo como um livro e algo
o fluxus. Mas isso eles não sabiam, porque o fluxus era como uma revista - que seria impressa de vez em
como um bebê ainda sem nome porque os pais não quando, e que sempre mudaria, sempre seria diferente,
chegavam a um acordo. Sabiam que estava ali, mas sempre seria ela realmente. A revista precisava de um
ainda não tinham um nome. nome. Então George Maciunas escolheu uma palavra
bem engraçada que significa mudança - fluxus. E co-
Bem, essas pessoas estavam espalhadas pelo mundo meçou a levar as coisas do fluxus para as tipografias
i J;l.te i ro. Nos Estados Unidos, havia George (George alemãs, para fazer sua revista. E para informar as pes-
Brechtl. Dick (Dick Higginsl. LaMonte (LaMonte Young), soas sobre esse tipo de livro, resolveu realizar alguns
Jackson (Jackson Mac Low) e muitos outros. Na Alema- concertos fluxus naquele país, para que os jornais escre-
nha, Wolf (Wolf Vostell) e Ben e Emmett (Ben Patterson vessem sobre eles e as pessoas pudessem ficar sabendo
e Emmett Williams), norte-americanos em visita àquele sobre os livros.
país. E também havia outro visitante na Alemanha, de
um pequeno país do outro lado do mundo, a Coréia. Assim, em setembro de 1962 ocorreu o primeiro con-
Seu nome era Nam June Paik. Oh, havia mais, lá e em certo fluxus, na pequena cidade onde George Maciunas
outros países também. vivia, Wiesbaden. Dick também compareceu, vindo de
Nova York com Alison (Alison Knowlesl. sua mulher e
Eles faziam" concertos" da vida cotidiana, e exposições também artista, levando muitas peças de outros norte-
do que encontravam, e nessas ocasiões compartilhavam americanos que vinham descobrindo e compartilhando
as coisas de que mais gostavam com todo mundo que objetos fluxus.
aparecesse. Todas as coisas eram elas mesmas, não
parte de algo maior ou mais bonito. E a gente sofisti- E como os jornais escreveram sobre os concertos! Eles
cada não gostava, porque era tudo barato e simples, sem apareceram até na televisão. Coitada da mãe de George
condições de dar muito dinheiro para ninguém. Maciunas! Era uma senhora antiquada, e quando a tele-
visão mostrou todas aquelas coisas malucas que seu
Acontece que essas pessoas estavam espalhadas pelo filho estava fazendo nos concertos fluxus, ela ficou tão
mundo inteiro. Em alguns casos recebiam notícias uns desconcertada que não saiu de casa durante ·duas sema-
dos outros, mas não se viam muito. E falavam línguas nas, com vergonha do que os vizinhos iam dizer. Bem,
diferentes e davam nomes diferentes para o que esta- é de se esperar uma reação assim. Mas a verdade é
vam fazendo, apesar de estarem fazendo a mesma coisa. que alguns vizinhos realmente gostavam dos concertos
Era uma grande confusão. fluxus. O porteiro do museu onde se realizavam os con-
certos, por exemplo, gostava tanto que comparecia a
Bem, LaMonte tinha um amigo - outro George, George todas as apresentações com a mulher e os filhos.
Maciunas - que gostava de fazer livros. Então, disse
LaMonte: - Vamos fazer um livro dessas coisas que a Pouco tempo depois, outros museus e lugares públicos
gente faz. - E seu amigo Jackson também gostou da também passaram a querer concertos fluxus. Assim, em
idéia. E fizeram o livro. LaMonte reuniu o material para seguida os concertos ocorreram na Inglaterra, na Dina-
o livro e George Maciunas colocou nas páginas e, pouco marca e na França. E as pessoas continuavam encon-
tempo depois, levaram tudo para ser impresso. O nome trando ou fazendo novos objetos - mandavam coisas
do livro foi Uma Antologia, palavra engraçada para uma do Japão, da Holanda, de todos os lugares. O "fluxus
coleção. Não puseram um nome pomposo. Nada de ficou famoso .
.. Antologia do Fluxus", porque as coisas do fluxus ainda
não tinham nome. Apenas Uma Antologia. Era um livro E então começaram a copiar o fluxus. As pessoas sofis-
ticadas começaram a copiar as coisas e as idéias do
fluxus. Mas tentavam fazer coisas bonitas com os obje-
• LaMonte Voung, ed, An Anthology, 1970 (DIA Art Founda- tos fluxus - e isso os alterava. Ou ando algumas xícaras
tion, 112 Franklin Street, New Vork, N.V., 10013) de chá eram substituídas por milhões de xícaras de chá,

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deixavam de ser simples e, portanto, não eram mais chefe. Ficou muito bravo quando um grupo de pessoas
fluxus. Essa era sempre a diferença: os objetos deixa- que faziam fluxus resolveu juntar-se com um grupo de
vam de fazer parte da vida. Era semprf fácil distinguir artistas que não faziam fluxus numa grande apresenta-
as verdadeiras coisas do fluxus das c aas falsas, por- ção que era uma espécie de circo - o Originale. Maciu-
que as verdadeiras continuavam simples, e as falsas nas e seu amigo Henry Flynt tentaram convencer o
tinham nomes pomposos. pessoal do fluxus a fazer uma manifestação do lado de
fora do circo, carregando cartazes brancos que diziam
Com a fama, George Maciunas e todo o pessoal do que o Originale era ruim. E procuravam dizer que o
fluxus tiveram de imaginar o que fazer em seguida, para pessoal do fluxus que se encontrava no circo não era
o fluxus continuar gostoso para todo mundo. George mais fluxus. Foi uma bobagem, porque provocou uma
gostava de ser o chefe. Mas ele era inteligente e sabia divisão. Eu achei engraçado, de modo que, no começo,
que não dava para ser o chefe e ensinar o que os artis- participei da manifestação junto com Maciunas e Henry,
tas do fluxus tinham que fazer. Se ele agisse assim, o carregando um cartaz, e depois entrei no circo e parti-
pessoal ia desistir e, em geral, eram artistas melhores cipei também lá dentro. Os dois grupos ficaram bravos
que ele. Então ele se tornou presidente. Isso significava comigo. Bem, algumas pessoas dizem que o fluxus mor-
que ele não podia mandar em ninguém: não podia dizer reu naquele dia - também já cheguei a acreditar nisso
o que os outros tinham de fazer, nem o que não podiam - , mas não é verdade.
fazer, para continuarem participando do fluxus. O que
George podia fazer era dizer para todas as pessoas o Por que não é verdade? Porque as coisas do fluxus ainda
que era o fluxus, e com isso quem quisesse fazer a precisam ser feitas e porque o pessoal do fluxus conti-
mesma coisa seria fluxus também. Foi uma boa idéia, nua fazendo essas coisas. Maciunas continuou impri-
porque com esse presidente o pessoal do fluxus não mindo material do fluxus - cartões, jogos, idéias - ,
se dividia em grupos discordantes, como sempre costu- colocando tudo numas caixinhas de matéria plástica
mava ocorrer com grupos de artistas. O pessoal se unia mais divertidas que a maioria dos livros. Eu mesmo fiz
em torno das coisas do fluxus, mesmo se estivessem uns livrinhos que eram realmente fluxus, embora não
fazendo outras coisas ao mesmo tempo. tivessem o nome escrito. E sempre havia concertos
fluxus.
George Maciunas esqueceu isso duas vezes. Uma vez,
no inverno de 1963, Dick e Alison foram para a Suécia E ainda há.
e deram concertos fluxus. Mas não havia dinheiro para
comprar passagens para George Maciunas, Ben e Agora já passou muito tempo. Já é quase 1980 quando
Emmett irem também. Então Dick (eu) e Alison deram estou escrevendo esta história. George Maciunas mor-
os concertos junto com o novo pessoal sueco do fluxus. reu no ano passado, depois de sofrer muito tempo com
George ficou muito bravo e disse para Dick e Alison uma doença horrível. Mas antes de morrer soube que
que eles não podiam mais ser fluxus. Mas não aconte- seu erro tinha sido perdoado, e que todo o pessoal do
ceu nada, porque ninguém 'deu importância àquilo. Dick fluxus estava junto de novo - eles se reuniam em
e Alison estavam dando concertos fluxus da mesma concertos, em festas de Ano Novo e muitas coisas
maneira que Ben e Emmett e George (Brecht) e Bob assim. E quando Maciunas estava morrendo, reuniram-se
(Watts) e os japoneses e outros. Era gostoso e era em sua casa para ajudá-lo a terminar um monte de
fluxus, e isso é que importava. caixas e trabalhos do tipo fluxus. Quando Maciunas foi
para o hospital pela última vez, os médicos disseram:
Em 1963, George Maciunas voltou para os Estados Uni- - A gente não sabe como esse homem ainda está vivo.
dos. Abriu uma loja fluxus e realizou festivais fluxus. - Mas o pessoal do fluxus sabia. Ter amigos e compar-
O pessoal do fluxus alemão foi visitar, da mesma ma- tilhar coisas simples pode ser muito importante.
neira que outros grupos de artistas já tinham feito
antes. Continuavam fazendo coisas do fluxus. Começa- E agora o fluxus já tem quase vinte anos de idade -
ram a chegar convites de lugares sofisticados - museus ou mais, dependendo de quando você acha que começou
e faculdades. Mas o pessoal do fluxus era esperto e -, mas muita gente ainda está chegando e se unindo
não se meteu com eles. Teriam perdido a liberdade. ao grupo. Por quê? Porque o fluxus tem vida própria,
Então os museus e as faculdades reuniram as pessoas independente das pessoas velhas dentro dele. São as
e as coisas falsas, que não eram fluxus (e até hoje coisas simples, tomadas por si mesmas, não apenas
continuam fazendo isso, em grande parte). Mas dava como partes de coisas maiores. É algo que muitos de
para notar que eram falsos, porque não eram eles mes- nós precisamos fazer, ao menos durante uma parte do
mos. Dava para notar pelos· nomes famosos. As coisas tempo. Assim, o fluxus está dentro de você, é parte do
verdadeiras eram bem mais baratas, e isso confundia o seu jeito. Não é só um monte de coisas e representa-
pessoal sofisticado. Enfim ... ções, mas é uma parte do jeito que você vive. Está além
das palavras.
Em 1965, algumas das próprias pessoas que faziam
fluxus começaram a ficar famosas. Isso não precisava Você quer tomar parte do fluxus quando crescer?
ser um problema, mas George Maciunas não sabia mais
lidar com essas pessoas. Continuava tentando ser o Eu quero.

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Sempre internacional, o Fluxus inclui artistas de vários países. Na
foto, a japonesa Takako Saito apresenta um de seus muitos tra-
balhos com pequenas caixas (1973).

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Conferenza

Giuseppi Chiari, de F orençq, já fazia obras Fluxus - como tantos


outros Fluxusartistas - antes de saber que era do grupo, no qual
ingressou em 1962/1963.

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Daniel Spoerri e Robert Filliou são tão atuantes como artistas inde-
pendentes quanto como ,,,tistas Fluxus. O trabalho de Spoerri apre-
sentado é porte de seu trabalho verbal/visual Les Monstres
Sont 1967. Filliou monta aqui um trabalho semelhante,
iiecherche sur j'Jrigine, 1974, que integra uma série de obras em
que ele utiliza a especulação científica como metáfora.
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80bert Watts, do grupo fundador do Fluxus [1962). muitas vezes
usou imagens da alimentação em suas construções, Na foto, obm
de Watts na rua Fluxus da 17," Bienal de São Paulo,

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GEORGE BRECHT

Piltce pour piano


centre
Instruction
branchez la radio au premier son éteignez lo.
Concert pour orc"estre
(échanger)
Trois piltces pour piano
debout
assis
marchant
(1962)
Piêce pour piano 1962 .3 PIANO PIECES
vase de fleurs
sur (vers) le piano
Quatuor à cordes • standing
se serrer la main
Solo pour violon • sitting
le nettoyer
Realisation • walking
musique émotion

G. Brecht, 1962

"I ndicações· típicas para performance de George Brecht, de 1958


a 1962, originalmente publicadas em Walter Yam (New Vork: Fluxus,
1964).

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o Fluxus se baseia no conceito de intermedia, obras incluídas con-
ceítualmente entre os media conhecidos. O trabalho Graphis 178:
Homenage to Simias of Rhodes (1982). de Dick Híggins, apresen-
tado na 17.' Bienal, é uma pintura e um poema visual.

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Objeto Fluxus, com instrumento musical: Música de Câmera (1967).


de Walter Marchetti reeditado na 17,' Bienal. Piano de brinquedo
que toca sozinho, de Joe Jones (1973). na 17,' Bienal.

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Pitd/JA

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