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Qualidades Primárias e Secundárias;

Experimento Mental dos Qualia Invertidos

John Locke (1632-1704)

Trechos selecionados do Ensaio sobre o Entendimento Humano (1690),


coordenação da tradução de Eduardo Abranches de Soveral, 2 vols.,
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1999, pp. 156-61, 518-9. Original em
inglês, An Essay concerning Humane Understanding, está disponível em:
http://www.gutenberg.org/ebooks/10615

Selecionado para a disciplina TCFC3: Filosofia das Ciências Neurais, prof.


Osvaldo Pessoa Jr., FFLCH, USP, 2013.

Livro II, Cap. VIII nosso entendimento, chamo-as ideias. Se


algumas vezes falo dessas ideias como se elas
7. Ideias na mente, qualidades nos corpos estivessem nas próprias coisas, deve-se partir
Para melhor descobrir a natureza das do princípio de que eu pretendo com isso
nossas ideias e discorrer inteligivelmene significar as qualidades que se encontram nos
acerca delas, será conveniente distingui-las objetos que produzem em nós essas ideias.
enquanto são ideias ou percepções na nossa
mente e enquanto são modificações da 9. Qualidades primárias dos corpos
matéria nos corpos que causam em nós essas Posto isto, deve-se distinguir nos corpos
percepções. É preciso distinguir exatamente duas espécies de qualidades. Em primeiro
estas duas coisas para que não pensemos lugar, aquelas inteiramente inseparáveis do
(como habitualmente se faz) que as ideias são corpo, qualquer que seja o estado em que se
exatamente as imagens e semelhanças de algo encontre, de modo que ele as conserva sempre
inerente ao objeto que as produz, porque a em todas as alterações e mudanças que sofra,
maioria das ideias de sensação não são mais a por maior que seja a força que possa exercer-
cópia na nossa mente de algo existente fora de se sobre ele. Estas qualidades são de tal
nós, do que os nomes que as significam são natureza que os nossos sentidos as encontram
uma cópia das nossas ideias, ainda que esses constantemente em cada partícula de matéria
nomes não deixem de as suscitar em nós, com grandeza suficiente para ser percebida e a
quando os ouvimos pronunciar. mente considera-as inseparáveis de cada
partícula de matéria, mesmo que seja
8. Nossas ideias e as qualidades dos corpos demasiado pequena para que os nossos
Chamo ideia a tudo aquilo que a mente sentidos a possam perceber individualmente.
percebe em si mesma, tudo o que é objeto Por exemplo: tomai um grão de trigo e dividi-
imediato de percepção, de pensamento ou de o em duas partes; cada parte possui ainda
entendimento; e à potência de produzir solidez, extensão, figura e mobilidade; dividi-
qualquer ideia na nossa mente, chamo o uma vez mais e as partes ainda conservam as
qualidade do objeto em que reside essa mesmas qualidades; e se continuas a dividi-lo
capacidade. Assim, uma bola de neve tem a até que as partes se tornem insensíveis,
potência de produzir em nós as ideias de nenhuma delas perderá jamais qualquer dessas
branco, frio e redondo; e essas potências de qualidades. Porque a divisão (que é tudo
produzir em nós essas ideias, enquanto estão quanto um moinho ou um triturador ou
na bola de neve, chamo-as qualidades; qualquer outro corpo faz a outro, quando o
enquanto são sensações ou percepções no reduz a partes insensíveis) não pode nunca

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suprimir num corpo a solidez, a extensão, a 12. Por meio de movimentos, externos, em
figura e a mobilidade, mas unicamente faz, nosso organismo
daquilo que antes era apenas uma, várias Se, portanto, os objetos exteriores não se
massas de matéria distintas e separáveis; todas unem à nossa mente quando nela produzem
essas massas de matérias, consideradas a partir ideias, e, no entanto, percebemos essas
desse momento como tantos corpos distintos, qualidades originais daqueles objetos que
constituem um certo número determinado, individualmente caem sob o alcance dos
uma vez acabada a divisão. A essas qualidades nossos sentidos, é evidente que haverá algum
chamo qualidades originais e primárias de um movimento nesses objetos que, afetando
corpo, as quais, a meu ver, podemos algumas partes do nosso corpo, se prolongue
considerar causas produtoras das nossas ideias por meio dos nossos nervos ou dos espíritos
simples de solidez, extensão, figura, animais até ao cérebro ou sede da sensação
movimento ou repouso e número. para aí produzir na nossa mente as ideias
particulares que temos acerca dos ditos
10. Qualidades secundárias dos corpos objetos. E, posto que a extensão, a figura, o
Há, em segundo lugar, qualidades tais que, número e o movimento de corpos de grandeza
nos próprios corpos, não são mais do que observável podem ser percebidos à distância
potências para produzir em nós várias por meio da vista, é evidente que alguns
sensações por meio das suas qualidades corpos individualmente imperceptíveis devem
primárias, isto é, pelo volume, pela figura, vir do objeto que nós olhamos aos olhos, e
pela textura e movimento das suas partes desse modo comunicam ao cérebro algum
insensíveis. Tais são as cores, os sons, os movimento que produz essas ideias que temos
paladares, etc. A estas dou o nome de em nós acerca de tais objetos.
qualidades secundárias, às quais se poderia
acrescentar uma terceira espécie que todos 13. Como qualidades secundárias produzem
admitem não serem mais do que potências, suas ideiais
ainda que sejam qualidades tão reais no objeto Podemos conceber, pelo mesmo meio,
como as que eu, acomodando-me à como se produzem em nós as ideias das
terminologia habitual chamo qualidades, mas a qualidades secundárias, quer dizer, pela ação
que chamo qualidades secundárias para as de partículas insensíveis sobre os nossos
distinguir das que existem realmente nos sentidos. Porque é manifesto que há corpos, e
corpos e não podem deles ser separados. corpos em grande quantidade, cada um dos
Porque, por exemplo, a potência que existe no quais é tão pequeno que não podemos
fogo para produzir, por meio das suas descobrir pelos nossos sentidos nem o seu
qualidades primárias, uma nova cor ou uma volume, nem a sua figura, nem o seu
nova consistência na cera ou no barro é tanto movimento – como é evidente no caso das
uma qualidade no fogo como a potência que partículas do ar e da água e no caso de outros
ele possui para produzir em mim, pelas muitíssimo mais pequenas do que essas; e que
mesmas qualidades primárias, isto é, pelo talvez sejam muito mais pequenas em relação
volume, pela textura e pelo movimento das às partículas do ar e da água do que estas em
suas partes insensíveis, uma nova ideia ou comparação com ervilhas ou pedras de
sensação de calor ou de queimadura que eu granizo. Suponhamos agora que os diferentes
antes não sentia. movimentos e figuras, volume e número de
tais partículas, ao afetar os diversos órgãos dos
11. Como os corpos produzem ideias em nós nossos sentidos, produzem em nós essas
A próxima coisa a considerar é o modo diferentes sensações que nos causam as cores
como os corpos produzem ideias em nós e, e os odores dos corpos; que a violeta, por
manifestamente, o único modo que podemos exemplo, por meio da impulsão de tais
conceber que atuem os corpos é por impulsão. partículas insensíveis de matéria, de figura e
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volume particulares e em diferentes graus e essas ideias que estão em nós, havendo uma
modificações dos seus movimentos faça que as perfeita semelhança entre umas e outras, como
ideias da cor azul e do doce aroma dessa flor entre um corpo e a sua imagem refletida num
sejam produzidas na nossa mente. Porque não espelho. E quem disser o contrário passará por
é mais difícil conceber que Deus tenha unido extravagante para a maior parte dos homens.
tais ideias a tais movimentos com os quais não No entanto, quem considerar que o mesmo
têm nenhuma semelhança do que conceber que fogo que a certa distância produz sensação de
Ele tenha unido a ideia de dor ao movimento calor, causa em nós, se nos aproximamos
de um pedaço de aço que divide a nossa carne, mais, uma sensação bem diferente, isto é, a de
movimento em relação ao qual essa ideia de dor; quem, digo, refletir sobre isto, deverá
dor em nada se assemelha. perguntar-se a si próprio qual a razão que o
leva a afirmar que a sua ideia de calor, nele
14. Elas dependem das qualidades produzida pelo fogo, está realmente no fogo, e
primárias que a sua ideia de dor, do mesmo modo
Tudo o que acabo de dizer em relação às causada pelo fogo, não está no fogo. Por que
cores e aos odores pode aplicar-se também aos razão a brancura e a frieza hão de estar na
paladares, sons e demais qualidades sensíveis neve e a dor não, já que ela produz em nós
semelhantes, as quais, seja qual for a realidade todas essas ideias, o que só pode fazer por
que equivocadamente lhes atribuamos, não meio do volume, da figura, do número e do
são, em verdade, nos objetos, senão potências movimento das suas partes sólidas?
para produzir em nós sensações e dependem
daquelas qualidades primárias que são, como 17. Só as ideias das primárias realmente
disse, o volume, a figura, a textura e o existem
movimento das suas partes. O volume, o número, a figura e o
movimento particulares das partes do fogo ou
15. Ideias de qualidades primárias são da neve estão realmente nesses corpos, sejam
semelhanças; de secundárias não ou não percebidos pelos sentidos de alguém e,
De onde, creio, é fácil tirar esta conclusão: por isso, podem ser chamados qualidades
as ideias das qualidades primárias dos corpos reais, porque realmente existem nesses corpos.
são semelhanças das ditas qualidades e os seus mas a luz, o calor, a brancura ou a frieza não
padrões existem realmente nos próprios estão mais realmente nesses corpos do que a
corpos; mas as ideias causadas em nós pelas doença ou a dor no maná. Suprima-se a
qualidades secundárias em nada se lhes sensação dessas qualidades, faça-se com que
assemelham. Nada existe nos corpos que seja os olhos não vejam a luz ou as cores, com que
conforme com estas ideias. Nos corpos a que os ouvidos não ouçam sons, com que o paladar
damos certas denominações em conformidade não saboreie, o olfato não cheire; e então todas
com essas ideias, há apenas uma potência de as cores, sabores e sons, enquanto são tais
produzir em nós essas sensações; e o que na ideias particulares, desvanecer-se-ão e
ideia é doce, azul ou quente, não é, nos corpos cessarão de existir, para ficarem reduzidas às
que assim denominamos, nada mais que certo suas causas, quer dizer, ao volume, à figura e
volume, figura e movimento das partes ao movimento das partes dos corpos.
insensíveis que os constituem.

16. Exemplos
Assim, dizemos que a chama é quente e
luminosa, a neve branca e fria, o maná branco
e doce, em virtude das ideias que produzem
em nós. Pensa-se comumente que estas
qualidades são, nesses corpos, o mesmo que
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Livro II, Cap. XXXII causam constantemente a ideia a que ele
insiste chamar amarelo, quaisquer que
15. Apesar de a ideia de azul de um homem sejam as imagens que estejam na sua
poder ser diferente da de outro mente, será tão capaz de distinguir
regularmente as coisas através do uso
Nem traria qualquer imputação de dessas imagens e perceberá e assinalará
falsidade para as nossas ideias simples se, essas distinções marcadas pelos nomes
através da diferente estrutura dos nossos azul e amarelo, como se as imagens ou
órgãos, estivesse ordenado que o mesmo ideias dessas duas flores recebidas na sua
objeto devesse produzir ideias diferentes mente fossem exatamente as mesmas em
nas mentes de diversos homens em relação às ideias nas mentes de outros
simultâneo, por exemplo, se a ideia que homens. Contudo, inclino-me bastante
uma violeta produziu na mente de um para pensar que as ideias sensíveis
homem, através dos seus olhos, fosse a causadas por um qualquer objeto nas
mesma que uma calêndula [amarela] mentes de diferentes homens são, na
produziu num outro homem e vice-versa. maioria dos casos, muito próximas e
Porque, uma vez que isto nunca poderia indistintamente semelhantes. Para esta
ser conhecido, porque a mente de um opinião penso que se poderá apresentar
homem não pode passar para o corpo de muitas razões, mas como isto está para
um outro de forma a entender as imagens além do meu presente objetivo, não
que foram produzidas por esses órgãos, perturbarei o meu leitor com elas, mas
nem as ideias destas, nem os nomes, peço-lhe que considere que a suposição
seriam confundidos, nem existiria qualquer contrária, se pudesse ser provada, seria
falsidade em nenhuma das ideias. Visto muito pouco útil tanto para o
que todas as coisas que tenham a textura desenvolvimento do nosso conhecimento
de uma violeta causam constantemente a como para a utilidade na vida; por isso,
ideia a que alguém chama azul, e as que não necessitamos de nos preocupar com a
têm a textura de uma calêndula sua análise.

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