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A INVASAO DA AMERICA EM BARTOLOME DE LAS CASAS: A ORIGEM DO

DESRESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS NAS SOCIEDADES INDIGENAS


CONTEMPORANEAS DA AMERICA LATINA

Gustavo Henrique Queiroz dos Santos1


Luan Diógenes Silva2

Resumo:

A pesquisa que segue é uma tentativa de reflexão acerca da importância dos direitos humanos
nas sociedades indígenas da América latina a partir da leitura da obra Brevísima relación de la
destrucción de las índias (1552) de Bartolomé de Las Casas, que traduz a forma de tratamento
conferida aos nativos do novo mundo no início da colonização espanhola do século XVI. Os
castigos físicos e as formas de submissão dos nativos aos costumes europeus, que eram uma
constante no movimento colonizador, se mostram ainda presentes em várias comunidades
contemporâneas, o que caracteriza uma imposição cultural sem a mínima observância ou
consideração dos valores étnicos. O desrespeito aos seus Direitos e garantias é um dos muitos
problemas enfrentados por esses povos, desrespeito esse que, a nosso ver não apresenta
questões meramente retóricas.
Palavras-Chave: Direitos Humanos. Sociedades Indígenas. Bartolomé de Las Casas.

THE AMERICAN INVASION AND BARTOLOME DE LAS CASAS: THE BEGIN


OF DISREGARD ON HUMAN RIGHTS IN INDIGENOUS SOCIETIES OF LATIN
AMERICAN

Abstract:

The research that follows is an attempt to reflect on the importance of human rights in the
indigenous societies of Latin America from the reading of the work Brevísima Relación de la
destrucción de las Indies (1552) Bartolomé de Las Casas, which translates to a treatment
given to natives of the new world in the early sixteenth-century Spanish colonization.
Corporal punishment and submission forms to the customs of the native Europeans, who were
a constant in the settler movement, show even present in various contemporary communities,
which features a cultural imposition without the slightest respect or regard for the ethnic
values. The disrespect of their rights and guarantees is one of the many problems faced by
these people who disregard this, in our view has not merely rhetorical questions.
Keywords: Human Rights. Indigenous Societies. Bartolomé de Las Casas.

1
Graduando do curso de Direito da Faculdade de Integração do Sertão – FIS. E-mail:
guga.megadeth@gmail.com
2
Graduando do curso de Direito da Faculdade de Integração do Sertão – FIS. E-mail:
luan_diogenes@hotmail.com

Construindo Direito – Serra Talhada. Ano 2, v. 1, p. 1-11 jul. 2011.


SANTOS, G. H. Q.; SILVA, L. D. A invasão da América 2

NOTAS SOBRE A INVASÃO ESPANHOLA NO NOVO CONTINENTE.

O Frade Dominicano Bartolomé de Las Casas (1474 – 1566) foi um importante


pensador do século XVI. Seus escritos destacam o movimento colonizador daquela época,
relatando a forma como os nativos viviam antes e durante o processo de “invasão” do homem
europeu ao continente americano. A partir de sua chegada a América – 1502 – Las Casas pode
testemunhar de perto o tratamento conferido aos índios do novo continente. Os
comportamentos e condutas do dominador e do dominado são relatados em detalhes.
Na obra, Brevísima Relación de La destrucción de las índias3 (1552) que começou a
ser escrita no México por volta do ano de 1539 e teve sua primeira redação concluída em
1542 na Espanha, Bartolomé de Las Casas apresenta uma crítica ao tratamento que os
dominadores conferiam aos índios. A forma de tratar os povos indígenas tinha por base a mais
arbitrária violência, que figurava principalmente sob a forma de violência física – castigos,
espancamentos e torturas – que resultava, quase que na totalidade das vezes, na morte dos
índios.
Faz-se necessário dizer que, ter o domínio dos povos indígenas era algo indispensável
para que os espanhóis pudessem alcançar o controle das terras almejadas. Nesse sentido, a
invasão dos reinos, províncias e ilhas que integravam a América se dava paralelamente ao
domínio dos habitantes de cada região invadida. Esse domínio era buscado através de uma
imposição dos valores europeus aos indígenas.
Na época da dominação, observamos, com apoio em Las Casas, que os meios
utilizados pelos invasores espanhóis, em sua maior parte, levavam em consideração somente o
progresso financeiro do reino da Espanha. Significa dizer que, o cunho patrimonialista da
exploração da América não se preocupava com os resultados dessa dominação no âmbito
étnico. Instaurava-se no novo continente um movimento de extermínio de culturas e não
somente uma exploração de recursos para o enriquecimento de um reino Europeu.
Os espanhóis tentavam, através de cada ato praticado, subjugar os índios aos costumes
e valores europeus. Por mais que os nativos tentassem resistir a esse tipo de imposição por

3
Para efeitos didáticos, quando nos referirmos à obra de Bartolomé de Las Casas Brevísima Relacion de la
destruccion de las índias (1552) será utilizada a abreviação Brevísima.

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parte dos dominadores, seus esforços eram vãos e sucumbiam perante o forte arsenal bélico
espanhol, composto por armas de fogo e materiais de combate corpo a corpo muito mais
avançados que os dos indígenas4.
Os dominadores espanhóis não visavam somente o controle dos índios, mas também
que eles aceitassem a forma de tratamento que estava sendo imposta. Diante disso, o repúdio
sentido pelos índios para com os europeus tornava-se cada vez maior. Os invasores tentavam
fazer com que os nativos passassem de uma rejeição à invasão espanhola para uma aceitação
da presença dos espanhóis em suas terras, uma tentativa de produção de subjetividade.
Os índios eram extremamente ligados às suas crenças e aos seus deuses, e isso fez com
que os espanhóis – que já haviam saído da Espanha conhecendo a força que o cristianismo
possuía – tentassem impor uma forma de dominação pautada na prática religiosa. Nesse
sentido, os colonizadores promoveram um movimento de evangelização, que teve início na
Europa, conhecido como Catequese5 na figura dos padres jesuítas – Inclusive alguns foram
mandados ao Brasil colônia como o Padre Jesuíta Manuel de Nóbrega – As crenças dos
dominadores eram passadas aos dominados através de conversões coletivas. 6

SOBRE A DESTRUIÇÃO DAS ÍNDIAS E OS CASOS DE SAN JUAN, JAMAICA E A


INVASAO DA ILHA DE CUBA.

Bartolomé de Las Casas utiliza da obra Brevísima (1552) como argumento para pedir
ao senhor príncipe do reino da Espanha – Don Felipe - que dominadores, como os que foram
a América e praticaram todos os atos maldosos e cruéis contra os índios, não tornassem a
fazer algo semelhante em outras expedições. Las Casas enxerga a necessidade de relatar sobre
os fatos ocorridos nas índias, desde seu descobrimento até a conclusão de seu escrito – em

4
Os dominadores possuíam aptidão para confecção de armas de metal como escudos, espadas, facões, além de
armaduras para resistir mais tempo em combate. Os espanhóis eram também treinados e preparados para
batalhas. Em contrapartida, os nativos contavam apenas com seus arcos e flechas, lanças, além de outras
pequenas armas manuais que eram utilizadas para realização de suas atividades diárias, isso na tentativa de se
defender.
5
Para Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros (1997): [...] Em termos antropológicos, se estabelece, sem
conhecimento dos índios, a "missão" dos europeus de proceder à sua "civilização" [...] Para fazer essa
transformação, o mundo católico e protestante organizou a catequese - empresa colonial com métodos,
sacerdotes e pastores, regras e procedimentos para a práxis cristianizadora, além da ação dos catequistas. Como a
finalidade alegada era a transformação de "seres brutos, de mentalidade infantil", em cristãos conscientes [...]
(grifos nossos).
6
Conversões coletivas no sentido de que uma grande quantidade de índios era reunida para ser evangelizada de
uma só vez, e assim os espanhóis aceleravam o processo de dominação.

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1542 – de maneira que o príncipe denegasse qualquer pedido dos “colonizadores’’ para
realizar novas explorações. A narração de Las Casas aponta a situação dos Reinos, ilhas e
províncias invadidas e a conduta dos dominadores perante cada uma.
Por volta do ano de 1509 os espanhóis passaram a exploração das ilhas de San Juan e
também da Jamaica. Os dominadores tinham como principais objetivos a exploração de ouro
e demais riquezas desses locais – prata, minério de ferro, etc. – e também o abastecimento das
tropas7. Essas ilhas eram bem localizadas e davam amplo acesso aos demais reinos e
províncias que estavam nos planos dos invasores.
A forma como os índios que habitavam esses locais foram tratados pelos invasores,
englobava as mais diversas formas de injustiça e violência. Os dominadores cometeram
grandes atrocidades contra os índios – matavam a golpes de espada, queimavam vivos,
assavam e atiravam a cães ferozes, e depois ainda atormentavam e oprimiam os sobreviventes
nas minas e em outros trabalhos, até consumir e acabar todos os infelizes inocentes. (LAS
CASAS, 1986. Tradução nossa).
No ano de 1511 estes invasores passam a dominação da ilha de Cuba, e temos um
episódio semelhante ao que aconteceu nas ilhas de San Juan e Jamaica, ou seja, o uso da
violência na tentativa de dominar. Alguns dos habitantes dessa ilha já receberam notícias
sobre o comportamento do homem branco e também sobre o que faziam com os povos aos
quais invadiam. Nesse sentido, buscavam alertar aos integrantes de suas comunidades - que
ainda não conheciam os dominadores - sobre as práticas cruéis dos invasores.
Cabe reforçar aqui que todo o processo compreendido nessa invasão, e aqui descrito, é
a forma como os espanhóis impunham sua cultura européia aos nativos, que, segundo eles,
eram seres aculturados. Não é demais acrescentar que situações como essa,
contemporaneamente, seriam fortemente combatidas, sendo que o grande cerne da presente
pesquisa é a valoração e necessidade de respeito ás diversas etnias presentes em nossa
sociedade.
Hatuey, cacique e principal senhor da ilha de cuba, juntou seu povo e disse-lhes – Já
sabem como dizem que os cristãos passam aqui, e tens experiência de como estão tratando
também os senhores, dessa e daquela forma. Vocês sabem por acaso por que o fazem? – e
aqueles de seu povo disseram – Não, mas deve ser porque são, em sua natureza, cruéis e maus

7
Esse abastecimento das tropas diz respeito às necessidades básicas dos homens, como comida, descanso, água e
reposição da energia após uma longa viagem.

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– e então o cacique Hatuey disse a todos – Não o fazem somente por isso, mas sim porque
tem um Deus a quem eles adoram e querem muito... - (LAS CASAS, 1986, p.30. Tradução
Nossa).
Bartolomé de Las Casas aponta de forma crítica que o entendimento dos indígenas
acerca da fé e do Deus no qual os espanhóis acreditavam, ganhava status de fundamento para
o massacre cometido pelos invasores. Diz Las Casas: “Ésta es la fama y honra que Dios e
nuestra fee há ganado com los cristianos que han ido a las índias.” (LAS CASAS, 1986,
p.30). Sendo que, com isso, a crença dos invasores contraía uma espécie de “má fama” 8 entre
os índios, pois seria “a motivação” de todos os atos ocorridos. É neste sentido que caminha a
invasão, a destruição das etnias de cada localidade por onde passavam os invasores.

A PROVÍNCIA DE NICARÁGUA, VENEZUELA E PERU: OUTRA FACE DA


DOMINACAO ESPANHOLA.

Entre os anos de 1522 a 1523 as expedições alcançam a “felicíssima província de


Nicarágua” (LAS CASAS, 1986, p. 35. Tradução nossa). Nicarágua era uma província
extremamente povoada e, em decorrência disso, apresentava uma diversidade cultural que até
então convivia em harmonia nesse território. Com a chegada dos invasores espanhóis esse
panorama começa a se modificar. Os recursos da ilha – flora, fauna, minérios como ouro e
prata – passam a ser explorados ilimitadamente de maneira a eliminar o mínimo necessário a
subsistência dos índios que ali habitavam.
A província de Nicarágua não conseguiu repelir as formas violentas de tratamento
imposto pelos dominadores. Os espanhóis faziam com que os índios trabalhassem para o reino
da Espanha a troco da promessa de liberdade, quando na verdade o que recebiam eram
chicotadas, golpes de espada e morte. Da mesma forma, esse regime de servidão convertia-se
em trabalhos forçados que quando não levavam o índio à morte pela espada, o matava pelo
esforço físico, um exemplo disso – as Romarias.
Essas “Romarias” ordenadas pelos espanhóis aos índios consistiam em formas de
trabalho forçado nas quais eles viajavam carregando pesadas cargas. Quando não conseguiam
resistir ao esforço, caiam pelo caminho e ao se levantarem tinha sua cabeça cortada. Diz Las

8
Como visto na primeira parte da pesquisa, o fato dos índios não aceitarem sua presença era extremamente
preocupante para os invasores. A má fama que a crença espanhola ganhou, como sendo o fundamento para todas
as atrocidades cometidas, de certo modo, afastava os espanhóis de seus objetivos.

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Casas (1986, p. 35) “E cuando algunos cansaban y se despeaban de las grandes cargas y
enfermaban de hambre e trabajo y flaqueza, por no desensartarlos de las cadenas les
cortaban por la collera la cabeza”. Por todas as formas, os dominadores tentavam fazer com
os índios se submetessem ao às suas pretensões, quando isso não acontecia, a vida dos nativos
era tirada.

Cerca de 3 (três) anos depois do ocorrido em Nicarágua, no ano de 1526, a busca pelo
ouro continua e agora o local escolhido para essa exploração é o Reino da Venezuela.
Bartolomé de Las Casas descreve o reino da Venezuela como sendo um grande reino, o qual
apresentava indícios de que guardava grandes riquezas em suas terras. Diz Las Casas (1986,
p. 59. Tradução nossa) “[...] Mais de quatrocentas léguas de terras afortunadas, e nelas,
grandes e admiráveis províncias, vales de quarenta léguas, regiões amenas, populações
grandes, riquíssimas de gente e ouro [...]”. E nesse mesmo ritmo é que o reino da Venezuela é
destruído pelos invasores.
Por volta de 1531 os reinos que compunham o Perú foram atingidos pela invasão
espanhola. A grande quantidade de reinos e províncias que integravam o Perú chamou a
atenção dos dominadores, notadamente a ilha de Pugna. Os invasores avistaram, de imediato,
o grande potencial das novas terras com relação a pedras preciosas e riquezas naturais que
poderiam servir de sustento para a tropa – mais uma vez, não houve a mínima atenção com a
riqueza cultural do local nem com a diversidade étnica.
Nessas terras, o extermínio foi novamente uma constante. As mais diversas formas de
injustiça dentre elas - roubos às reservas feitas pelos nativos, destruição dos povos, exploração
destrutiva (e não sustentável) das terras, etc. – além de uma imposição valorativa, que já vinha
sendo uma prática comum em todos os locais por onde os invasores passavam.
Todas as ilhas que se localizavam próximas ao reino do Perú também sofreram com a
invasão. Conforme mencionado no início desse tópico, a ilha de Pugna que era muito povoada
e cheia de recursos passou pelo processo de dominação. Nessa ilha, os espanhóis saquearam
colheitas e também os recursos que os nativos haviam juntado para conseguir suportar os
tempos de seca e de infertilidade das terras.
Por nossa parte, há a observação de que o problema do desrespeito aos valores
culturais e étnicos das sociedades indígenas dessa época ainda são extremamente presentes
nos dias de hoje.

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Os nativos, a fim de tentar apaziguar a situação, ofereceram de maneira muito


inconformada tudo aquilo que haviam semeado com intuito de que depois que as tropas
espanholas se fartassem a vontade, fossem embora. No entanto, a política colonial espanhola
era de não retroagir sem resultados satisfatórios e favoráveis ao reino da Espanha.
Apesar de todos os esforços dos índios para tentar preservar sua vida, a sede de
sangue dos invasores fazia-se mais forte. Diz Las Casas:

[…] e de novo descobrindo-lhes os celeiros de trigo que tinha para si


mesmos, mulheres e filhos nos tempos estéreis e de seca, e oferecendo-os
com muitas lágrimas para que os gastassem e comessem a vontade, a
retribuição que lhes deram no final das contas foi que lhe meteram a espada
e furaram uma grande quantidade de pessoas e aqueles que sobreviveram
tornaram-se escravos e assinalando outras crueldades que ali fizeram,
deixando quase despovoada a dita ilha. (LAS CASAS, 1986. P 65. Tradução
nossa). 9

Os índios eram dotados de boa-fé, no sentido de confiar no que lhes fosse prometido –
isso em um primeiro momento. No entanto, os índios aos poucos perceberiam que os
espanhóis somente prometiam a liberdade e a vida das famílias do seu povo, mas não tinham a
mínima intenção de cumprir suas promessas. Os Nativos, na busca de conservar sua vida e
principalmente a de suas mulheres e crianças, cumpriam “a risca” as determinações dos
dominadores.
É então que surge a figura de Atabaliba, rei e imperador dos reinos do peru, que foi
acometido com as mesmas mentiras com as quais os espanhóis enganavam o seu povo.
Atabaliba foi preso pelo exercito dos invasores, sendo exigida uma quantia de 4(quatro)
milhões de Castelhanos para que o rei fosse novamente posto em liberdade (LAS CASAS,
1986). Ao passo que o imperador entregou a quantia exigida para que pudessem “libertá-lo”
os espanhóis condenaram-no a queimar vivo.
O rei/imperador do Perú não entendia a situação pois, como combinado, pagou o preço
pelo seu “resgate” e mesmo assim não foi libertado. Por isso, era tão condenável a forma de
trato que os dominadores conferiam aos índios, uma quebra de confiança, um desrespeito e

9
Do Espanhol original: […] y de nuevo descubriéndoles los trojes del trigo que tenían para sí e sus mujeres y
hijos los tiempos de seca y estériles, e ofreciéndoselas con muchas lágrimas que las gastasen e comiesen a su
voluntad, el pago que les dieron a la fin fue que los metieron a espada y alancearon mucha cantidad de gentes
dellas y los que pudieron tomar a vida hicieron esclavos con grandes y señaladas crueldades otras que en ellas
hicieron, dejando casi despoblada la dicha isla.

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aproveitamento da inocência dos índios com relação a muitos dos interesses do Reino
Espanhol. Las Casas expõe a fala de Atabaliba:

[…] Quando ele soube, disse: <<Por que irás me queimar, o que vos fiz?
Não prometestes me soltar quando te desse o ouro? Não dei mais do que eu
prometi? Pois que assim o queres, envía-me a vosso rei da Espanha>>, e
outras muitas coisas que disse para grande confusão e detestável grande
injustiça dos espanhóis; e em fim o queimaram. (LAS CASAS, 1986, p. 65 –
66. Tradução nossa.). 10
DA ATUAL RELAÇÃO ENTRE OS ÍNDIOS E OS NÃO-ÍNDIOS NA AMÉRICA
LATINA

Assim pode-se perceber que, desde a invasão do homem branco ao continente


americano até os dias atuais, a forma de tratamento conferida aos povos indígenas por parte
daqueles que não são índios é uma questão complexa. É importante ressaltar que na América
Latina ainda existem tribos que sofrem com formas de tratamento injustificáveis por parte
daqueles que se dizem civilizados. Muitos não-índios tratam de maneira preconceituosa
aqueles que são componentes das sociedades indígenas. Os índios, sem dúvida, devem ser
respeitados e ter seus direitos garantidos frente a todos os invasores de sua cultura, sejam
aqueles “colonizadores” da Brevísima (1552) de Bartolomé de Las Casas, ou mesmo o
homem branco contemporâneo.
Graziele Acçolini (2010) na sua obra “Para relembrar... Direitos humanos e
sociedades indígenas” nos faz perceber que essa relação índio x não-índio se mantém
contemporaneamente. Questões como o desrespeito ao direito de propriedade dos indígenas e
também a forma como a sociedade se comporta perante essas questões, são alguns dos
aspectos fundamentam a existência de relações entre esses sujeitos. Uma relação que nem
sempre tem por base uma efetiva garantia de igualdade étnica.
Essa igualdade étnica, que é tão buscada pelos Direitos Humanos11 esbarra na forma
de pensamento que se construiu durante o período da colonização e ainda perdura entre

10
Do Espanhol original: […] Sabido por él, dijo: « ¿Por qué me quemáis, qué os he hecho? ¿No me prometiste
de soltar dándoos el oro? ¿No os di más de lo que os prometí? Pues que así lo queréis, enviadme a vuestro rey de
España», e otras muchas cosas que dijo para gran confusión y detestación de la gran injusticia de los españoles; y
en fin lo quemaron.
11
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 1948, norteia as relações entre os homens sob
um ponto de vista que ultrapassa o direito positivo. Isso significa dizer que, existe uma valoração de cunho
étnico e moral que ultrapassa as normas jurídicas. A ciência do Direito dentro das suas limitações necessita da
axiologia para auxiliá-la, e isso é o que justifica a afirmação acima exposta de que o cunho valorativo da

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muitos, qual seja, os índios como seres aculturados e brutos. A busca da efetiva igualdade
entre índios e não-índios tem sido um desafio dos defensores dos Direitos humanos, tendo em
vista que muitas são as privações que esses povos sofrem. Faz-se necessária uma breve nota
acerca de uma tribo indígena que teve seus direitos desrespeitados nos mesmos moldes da
invasão espanhola do século XVI tratada por Las Casas.

O DESRESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS NAS SOCIEDADES INDÍGENAS


CONTEMPORÂNEAS DA AMÉRICA LATINA

É possível identificar no pensamento de grandes autores como Norberto Bobbio que os


Direitos Humanos são o conjunto de direitos e garantias inerentes ao ser humano. O jus
filósofo italiano Norberto Bobbio faz uma colocação sobre Direitos Humanos: “Partimos do
pressuposto de que os direitos humanos são coisas desejáveis, isto é, fins que merecem ser
perseguidos, e de que, apesar de sua desejabilidade, não foram ainda todos eles (por toda a
parte e em igual medida) reconhecidos;” (BOBBIO, 2004, p.15-16)
Os atos praticados contra os indígenas na época da colonização refletem-se ainda hoje
em algumas das nossas sociedades indígenas contemporâneas. Não são raros os casos,
exemplo disso é o caso de questões relativas à demarcação de terras, reservas ambientais,
necessidade de uma resolução que confira aos índios a legítima posse de suas terras e ainda o
Direito efetivo a propriedade (que é inclusive um Direito constitucional). Como citado no
tópico anterior, uma questão prática que reflete a necessidade de se pensar essas questões é o
caso trazido por Graziele Acçolini sobre a tribo dos Ñambiquara.
Pode-se observar que muitos dos problemas que se instauram em face das sociedades
indígenas contemporâneas da América Latina não têm um cunho eminentemente atual, é
possível observar na obra de Las Casas que esses problemas já existiam, hoje só persistem
(quando não se agravam):

Como os povos tinham todos uma graciosa horta, como se disse, apossaram-
se delas os cristãos, cada um em um povo, e as repartiam (como dizem, a

Declaração aqui estudada, pois os direitos humanos quando instrumentos de defesa a opressão étnica ultrapassam
o prisma retórico do mero legalismo jurídico. Dessa forma, os Direitos Humanos buscam alcançar de forma
efetiva a igualdade entre todos em uma coletividade, bem como assegurar os direitos e garantias dos indivíduos
também como no âmbito individual.

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encomendavam) [...] Mantendo-se das comidas dos índios, e assim lhes


tomara suas terras particulares e herdadas com as quais se matinham
[...] não tendo nem deixando ter casa nem coisa própria; (LAS CASAS,
1986, p.35. Tradução e grifos nossos).12

Acçolini (2010) destaca a tribo dos índios Ñambiquara, que durante a ditadura militar
teve suas terras atacadas e quase foram destituídas da propriedade dos terrenos que ocupavam.
Diz Acçolini (2010, p. 97) “Os índios Ñambiquara são conhecidos desde o século XVIII
quando da ocupação predatória dos seus territórios, atual Mato Grosso, em virtude da
descoberta de ouro na região, como na chapada de São Francisco Xavier.”. Além dessa
invasão com cunho de exploração percebe-se outro fator que também assolou essa
comunidade, o da demarcação de terras, passemos a sua análise.
Muitas dessas demarcações ficavam a cargo da ambição estatal, ou seja, de interesses
do estado que sempre justificam suas ações no tão falado interesse público. No entanto, é
possível perceber que o respeito aos Direitos Humanos e aos Direitos dos povos indígenas não
é mero interesse individual, mas também público. Acçolini (2010) cita o caso da construção
da BR 364, que liga Cuiabá a porto velho no estado de Rondônia, tendo como resultados a
grande perda de territórios por parte da Ñambiquara.
Falando ainda nas várias outras tentativas de tomar as terras dessa tribo, Acçolini
atenta a época ditatorial quando “foi criada pelo governo militar de Costa e Silva, reserva
Ñambiquara, na região entre os rios Juina e Camararé, região cujo solo é extremamente
pobre e árido” (ACÇOLINI, 2010, p. 97 – 98). Essa medida tinha por principal objetivo
colocar todos os índios em um único local para que as terras férteis ficassem a disposição dos
grandes agro-negócios.
O breve relato sobre essa tribo, permite a afirmação de que muitos dos problemas
enfrentados pelas sociedades indígenas persistem desde o período da invasão espanhola
narrada por Bartolomé de Las Casas até os dias atuais. Mesmo após a Declaração Universal
dos Direitos Humanos existem pessoas que tem seus direitos respeitados. Os não-índios, em
muitos dos casos, deixam transparecer a mesma intolerância étnica posta pelos invasores
Espanhóis.

12
Do original: [...]Como los pueblos que tenían eran todos uma muy graciosa huerta cada uno, como se dijo,
aposentáronse em ellos los cristianos, cada uno en El pueblo que Le repartían (como dicen solls, Le
encomendaban), y hacía em él sus labranzas, manteniéndose de las comidas pobres de los índios, e así les
tomaron sus particulares tierras y heredades de que se mantenían [...] no teniendo ni dejándoles tener casa ni cosa
propia;

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REFERÊNCIAS

Disponível em http://www.dhnet.org.br/direitos/textos/dh_utopia/2conceito.html. Acesso em


27/11/2010 às 12h23min.

BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 7ª ed., Brasília, DF, Editora Universidade de


Brasília, 1995, págs. 353-355. Disponível em
http://norbertobobbio.wordpress.com/2010/03/05/definicao-de-direitos-humanos-por-
norberto-bobbio/. Acesso em 27/11/2010 às 12h34min.

Disponível em
http://es.wikipedia.org/wiki/Brev%C3%ADsima_relaci%C3%B3n_de_la_destrucci%C3%B3
n_de_las_Indias. 26/11/2010 às 16h35min.

Disponível em http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/BartLCas.html. Acesso em 26/11/2010


às 16h58min.

Disponível em http://www.alunosonline.com.br/historia/dominacaoespanhola/. Acesso em


23/11/2010 às 23h14min.

ACÇOLINI, Graziele. Para relembrar... Direitos Humanos e povos indígenas. In:


Mediações. Londrina: 2010, p. 92-107.
.
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. A Catequese segundo Las Casas e Manuel da
Nobrega: Questão Religiosa ou Debate Pedagógico?. Brasília, 1997.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Apresentação de
Celso Lafer. Nova Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

LAS CASAS, Bartolomé de. Brevísima relación de La destrucción de las Indias.


Barcelona, Orbis: 1986.

Construindo Direito – Serra Talhada. Ano 2, v. 1, p. 1-11 jul 2011.

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