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Leonor Neves da Costa Luis dos Reis

ALEXANDER SCRIABIN
O compositor da música absoluta

PORTO
2013
UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA
Centro Regional do Porto
Escola das Artes
Licenciatura em Som e Imagem

ALEXANDER SCRIABIN
O compositor da música absoluta
POR
Leonor Neves da Costa Luís dos Reis

Trabalho para a unidade curricular:


“História da Música Ocidental”
Orientador: Profs. Paulo Teixeira Lopes e Pedro Monteiro

PORTO
2013
“There is music in all things, if men had ears;
their earth is but an echo of the spheres”
Byron
ÍNDICE

I. Introdução ............................................................................................................. 4

II. Estado da arte – sinestesia musica/cor .................................................................... 5

III. Alexander Scriabin: compositor da música absoluta .............................................. 6

i. O acorde “místico” ......................................................................... 7

ii. Prometheus e a construção sinestética ............................................ 8

IV. Conclusão ............................................................................................................ 10

V. Bibliografia.......................................................................................................... 11

VI. Anexos ................................................................................................................ 12


I. INTRODUÇÃO

Muito foi já escrito sobre Scriabin e o seu (suposto) poder de sinestesia, com o qual
relacionou a música e cor. Não foi naturalmente o único a fazê-lo, nem tampouco o
primeiro a pensá-lo, mas é certo que foi o primeiro que se atreveu a tentá-lo e quiçá, aquele
que melhor uniu duas matérias – som e luz – conjugando com isso duas sensações – visão
e audição, numa clara antecipação da multimédia.
O objectivo deste trabalho não é o de simplesmente explicar a visão sinestética de
Scriabin e o seu processo de composição; mas essencialmente o de questionar a
contribuição deste compositor com esta sua abordagem musical para a História da Música,
através da compreensão da sua origem, do seu funcionamento e análise da sua aplicação.
A brevidade deste trabalho não me permite entrar em pormenores ou explicações,
mas permite-me pelo menos chamar a atenção para o imenso interesse e importância deste
grande compositor e músico para o desenvolvimento da História da Música.
II. ESTADO DA ARTE: sinestesia musica/cor

Segundo o Dicionário de Psicologia, trata-se de “um fenómeno que caracteriza as


experiências de certos indivíduos, nas quais certas sensações de um sentido ou modo se
associam a certar sensações de outro grupo, aparecendo regularmente sempre que um
estímulo deste último surge.” Se durante o séc. XIX o termo era levado literalmente, sendo
considerado uma deficiência orgânica, Charles Myers, no séc. XX, tornou esta definição
mais abrangente, considerando casos em que a resposta do sujeito a um estímulo partia do
mero pensamento em cores particulares sem ocorrência de fotismo 1 . O estudo deste
“fenómeno” durante o séc. XX demonstrou que as associações sinestéticas correspondiam
muitas vezes com metáforas linguísticas; daí que possamos falar em vários graus de
sinestesia – um primeiro restrito a um fenómeno físico involuntário, e outro induzido,
construído através de um sistema de correspondência, como é o caso de Scriabin.
Nessa tentativa de relacionar diferentes sentidos encontramos um sucessivo
progresso desde o Telefone, ao Microfone, ao Fotofone e ao Optofone, em cujo objecto
recebido é, não já um som, mas uma sensação luminosa. Na Filosofia, Gretry sugeriu que a
escala de emoções era comum à escala das cores e dos sons, enquanto na Física, Raymond
sugeriu que as cores harmónicas seriam o resultado de vibrações no olho, passiveis de
medição tal como as vibrações harmónicas no ouvido, abrindo a possibilidade de uma
correspondência física entre o som e a visão; desta possibilidade A. W. Rimington criou,
em 1893, o “color organ”: uma caixa com uma série de aberturas, com vidros coloridos,
controladas pelas teclas de um pianoforte que não emitia som; a cada nota da oitava
correspondia uma cor do espectro, atirada em forma de tinta para um lençol branco. A
correspondência era o número de vibrações segundo o qual o ouvido reconhece a altura dos
sons e o olho distingue a tonalidade das cores. A ideia, contudo, peca pela inadequação da
correspondência aplicada entre som e cor, dada a velocidade do olho na distinção de cores
ser muito inferior à do ouvido – o resultado, além de incapaz de reproduzir tonalidades é
confuso, principalmente nos acordes. Apesar disso, Scriabin incluiu na partitura de
Prometheus, uma parte (fundamental) para um instrumento baseado neste.
1
Segundo o Harriman’s Dictionary of Psychology: “uma sensação causada por uma mudança na retina,
não pelo estimulo por ondas de luz. Drogas, certas doenças e outros, são tidos como causas (…).” (retirado
de http://mtosmt.org/issues/mto.12.18.2/mto.12.18.2.gawboy_townsend.php#FN10)
III. ALEXANDER SCRIABIN: O Compositor da Música Absoluta2

Considerado um pianista prodigioso em criança, Scriabin voltou-se mais tarde para


a composição, interessado na exploração e desenvolvimento da sua própria forma e estilo
de composição; citando Eagfield Hull, “Ele estava destinado a ser um compositor da mais
pura forma de música3”, o que apesar do desenvolvimento que mais tarde as suas ideias
sofreram, se veio, como veremos mais a frente, a confirmar-se.
À parte das muitas dúvidas e suposições em torno de Scriabin, os críticos e
analistas musicais são unanimes quanto ao incrível desenvolvimento e progressão que a
sua obra sofreu; segundo Hull: “Em nenhum outro compositor assistimos a uma tal
estabilidade de progressão na sua arte tão espantosa. Com ele o processo de evolução é
perfeitamente claro, pois dá um passo definitivo na técnica e na expressão em cada
trabalho sucessivo (…).” 4 Sem querer cair no erro de dividir a carreira de Scriabin em
períodos definitivos, é absolutamente evidente a sua evolução, de uma primeira fase na sua
juventude na tradição romântica – os seus Poemas e Prelúdios remetem-nos imediatamente
a Chopin – a um período de grande actividade criativa, no campo da teosofia, a partir da 4ª
sinfonia até à obra que analisaremos mais a frente, Prometheus, tido como o primeiro dos
seus últimos trabalhos; nesta sua fase final, deixa a teosofia, procurando a combinação do
mistério da luz, da cor e do movimento na ideia (Wagneriana) da sua união numa arte
definitiva.

2
Espero, no final deste trabalho, ter conseguido explicar o porquê do subtítulo “o compositor da música
absoluta”
3
HULL, A. Eaglefield – A Great Russian Tone Poet, Scriabin, p. 25
4
HULL, A. Eaglefield – A Great Russian Tone Poet, Scriabin, p. 167
i. O “acorde místico”5

Embora a preocupação deste trabalho seja o trabalho sinestético na obra de Scriabin,


e não propriamente o seu desenvolvimento harmónico, parece-me importante falar um
pouco deste acorde, visto ser uma das poucas referências estruturais recorrentes nas peças
do compositor que nos permitem compreender a sua composição; isto porque ao contrário
da maioria dos compositores, Scriabin não tinha um único processo de composição,
alternando entre a intuição e o cálculo, como se pode constatar pelas seguintes afirmações
contraditórias: “Encontro os meus acordes e harmonias por intuição (…) A intuição
sempre foi a minha prioridade.” e “Penso sempre que a matemática tem de ter um papel
importante na música. Às vezes até faço cálculos ao compor, cálculos de forma.” A
importância deste “acorde místico” prende-se também com o facto de estar na base da
construção de Prometheus cuja composição se baseia na sua transposição para diferentes
níveis. O “acorde místico” não é um único acorde, mas uma estrutura de acordes, que pode
assumir diferentes formas (p.e. “acorde de Prometheus”, 1º acorde da obra). “Acorde”
remete-nos à ideia de síntese, compressão; é precisamente isso que Scriabin pretende e
propõe com este seu Acorde – uma determinada estrutura de intervalos, com inversões (tal
como nos acordes tradicionais) e uma relação distinta com a nota dominante. Até então, a
composição estava limitada às séries ditas naturais, inteiras; quanto aos semitons (7ª, 11ª,
13ª), eram simplesmente tidas como dissonantes e por isso deixadas de fora; Scriabin,
contudo, aceitou estas séries, descobrindo com isso muitos novos acordes e combinações e,
com isso, um novo estilo de composição. O “acorde místico” (nome dado pelos discípulos
do compositor) baseia-se na selecção de um acorde fundamental dentro da série natural ou
harmónica e na sua manipulação, alterando entre tons inteiros e semitons, sendo a partir
dele que o compositor constrói toda a harmonia. Esta torna-se então no factor central do
seu pensamento musical, sendo, como vimos, a partir dela que tudo o resto nasce. E se no
início, esta harmonia serve apenas para definir a forma, observamos, nos últimos trabalhos,
que determina a própria melodia; assim, a harmonia e a melodia tornam-se praticamente
indistintas: “Harmonia torna-se melodia e melodia torna-se harmonia”6

5
Vd. Anexos, Fig. 1
6
SABBAGH, Peter – The Development of Harmony in Scriabin’s Work, p. 7
ii. Prometheus e a construção sinestética

Como vimos, existem várias formas de sinestesia entre cor e som, sendo que um
deles se baseia na tonalidade, não numa nota singular, mas numa certa harmonia; foi
precisamente esta correspondência que Scriabin explorou. Partindo do pressuposto que
uma certa harmonia provocava um determinado efeito na mente do ouvinte, o compositor
concluiu que a cor que provocasse o mesmo efeito ser-lhe-ia correspondente 7 ; esta
correspondência tem então uma origem, nem neurológica, nem acidental, mas artística,
espiritual e simbólica; correspondendo a cor correctamente à harmonia, funcionaria,
segundo o próprio como um “poderoso ressoador psicológico para o espectador”,
“sublinhando a tonalidade; tornando-a mais evidente”8
Scriabin dizia reconhecer somente três cores, eram elas: o vermelho, o amarelo e o
azul que correspondiam aos tons Dó, Ré e Fá sustenido; partindo da ideia que existia uma
correspondência entre a relação espectral do círculo de quintas e do sistema cromático, a
dedução das outras cores tornou-se puramente racional. O seu amigo Sabaneev diz que
para o compositor os tons simples correspondiam a cores mais escuras e os sustenidos e
bemóis a variações mais suaves dessas cores.

Em Prometheus, a sua última composição orquestral, Scriabin fez uso da


construção sinestética da qual acabámos de falar adaptando-o a uma “versão sofisticada”
do “órgão de cor” de Rimington, chamada “tastiera per luce” ou “clavier à lumières”
construída de propósito para o efeito. 9 Este teclado de luzes coloridas permitiria uma
“dulpa sinfonia” – de música e cor – mas antes da estreia de Prometheus em 1911, Scriabin
decidiu não utilizá-lo, alegando dificuldades técnicas. Apesar de não haver certezas, pensa-
se que o compositor não terá utilizado o luce pelo facto de este não ser capaz de produzir
variações de intensidade, ficando-lhe a faltar o dinamismo e efeitos de luzes que o

7
Vd. Anexos, Fig. 2
8
De acordo com Myers, “A cor ou uma mudança de cor por vezes surge-lhe antes de tomar consciência da
tonalidade ou de uma mudança de tonalidade. Por essa razão, ele acredita que os efeitos musicais são
aumentados pela apresentação simultânea da cor apropriada ao olho.”, (retirado de
http://mtosmt.org/issues/mto.12.18.2/mto.12.18.2.gawboy_townsend.php#FN10)
compositor pretendia; assim, e até 1915, Prometheus era tocado como qualquer outro
poema musical.
A partitura da parte para o luce (teclado de cor), disponível apenas a partir de
197810, revela uma grande preocupação por parte do compositor quanto à sua composição
analítica, com a presença, não de mudanças bruscas de cores, mas de nuances, de
diferentes tonalidades e variações, combinações artisticamente tratadas e com indicações
em relação à dinâmica, aos efeitos e à luz. O instrumento era tocado a duas vozes, uma
mais rápida que tinha a função de evidenciar a tonalidade, reproduzindo a informação
presente na música, e uma outra mais lenta onde a mesma cor se mantém durante grandes
períodos de tempo, ilustrando as divisões maiores da peça (textura, tempo).
O facto de na partitura de Prometheus, Scriabin ter rejeitado o uso de tons maiores
e menores, visto ser baseado, como vimos, nas transposições do “acorde místico”, tornou
as variações de cor, as nuances, mais difíceis de corresponder com os sons; mas talvez
fosse precisamente essa a ideia por detrás de Prometheus, a criação de uma peça (quase)
impossivel de compreender e analisar em termos auditivos, daí a importância das cores
como guias harmónicos. É na parte do luce que encontramos o ritmo harmónico através da
mudança radical de cor entre o azul-violeta (Fá#) e o vermelho (Sol), visto ser esta a “raíz”
do “acorde místico” – o espiritual ou etéreo e a matéria ou solo; e é, precisamente esta raíz,
a origem, que Scriabin queria que fosse ouvida e compreendida, quem sabe, recordada.
A complexidade desta composição que à primeira vista nos parece evidente e com a
qual, segundo Hull, “o público ficou mistificado, não conseguindo compreender uma
forma tão diferente de fazer música” 11 , contrapõe-se alguns classicismos: a sua forma
Sinfonica (que a par da Sonata, sempre agradou ao compositor), e, entre outros, a variação
entre motivos “de uma beleza requintada e outros repletos de uma harmonia distorcida ou
de uma dissonância quase revoltante”12. Já em termos temáticos, Prometheus revela-nos
um interesse em comum entre Scriabin e o seu compatriota Stravisnky: o mito, a origem,
“a lei primitiva com sentimentos livres da cultura ocidental”13.

10
Vd. Anexos, Fig. 3
11
HULL, A. Eaglefield – A Great Russian Tone Poet, Scriabin, p. 203
12
Idem, p. 200
13
Idem, p. 193
IV. CONCLUSÃO

Além da incrível progressão não só harmónica como ideológica e compositiva de


que já aqui falei, para mim, o marco mais importante na obra de Scriabin é o facto de ligar
a música do séc. XIX à do séc. XX – a tradição à modernidade; pois não só foram muitas
as inovações que introduziu (para alguns, técnicas serialistas e composição serial não-
dodecafónica), ou que primeiro as utilizou (uso exclusivo de duas claves), porque tentou,
como vimos uma obra absoluta, com a união da visão e da audição, da música e da luz, e
ainda, principalmente, porque levou ao limite a escala harmónica, e roçou (ou atingiu
mesmo?) o atonalismo 14 : “Pensa-se que se Scriabin tivesse vivido para além dos seus
curtos 43 anos, teria precedido a escola Autríaca de dodecafonia, e Moscovo teria sido o
centro do atonalismo.”15
Apesar da brevidade deste trabalho, e do facto de só me permitir roçar em alguns
temas relativos à obra de Scriabin, parece-me que deixei patente a sua imensa relevância e
o interesse que constitui o estudo da sua obra, não só do seu estilo e forma de composição,
na sua ideia de harmonia e na sua (mais tardia) indistinção com melodia, nas suas
oscilações radicais entre passagens melódicas e dissonantes, mas acima de tudo, das suas
ideias, para muitos, utópicas (pelo na sua época, certamente o foram). Uns afirmam-no
como louco, outros como visionário; para mim estará algures entre os dois, mas mais
importante do que essa consideração, é aquela que se refere ao seu papel enquanto
compositor e enquanto pensador, e àquilo que, embora possa não ter alcançado, propôs e
tentou até ao fim – a união da música com a teosofia, com a poesia, do espiritual com o
terrestre, do homem com Deus, acreditando sempre na sua possibilidade, que hoje, na
nossa cultura digital é, pelo menos em parte, uma realidade – ele é o derradeiro compositor
da música absoluta.

14
Lothar Hoffmann-Erbrecht chama-lhe “tonalidade flutuante (schwebende)”
15
Retirado de http://www.scriabinsociety.com/biography.html
V. BIBLIOGRAFIA

_HULL, A. Eaglefield – A Great Russian Tone Poet, Scriabin: Forgotten Books, 2012
(publicado originalmente em 1916)
_PEACOCK, Kennneth – Synesthetic Perception: Alexander Scriabin's Color Hearing em
Music Perception: An Interdisciplinary Journal Vol. 2, No. 4, pp. 483-505: University of
California Press, 1985
_SABBAGH, Peter – The Development of Harmony in Scriabin’s Work: Universal
Publishers, 2003

Fontes computorizadas:
_ ATTWOOD, Koji – “Scriabin - Extensive Biography” em http://pianosociety.com/cms/in
dex.php?section=634 visitado em 10-01-13
_GAWBOY Anna M., TOWNSEND, Justin – “Scriabin and the Possible” em
http://mtosmt.org/issues/mto.12.18.2/mto.12.18.2.gawboy_townsend.php#FN10, visitado
em 10-01-13
_GALEYEV, B., VANECHKINA, I. – “Was Scriabin a Synaesthete?” em
http://prometheus.kai.ru/skriab_e.htm, visitado em 9-01-13
VI. ANEXOS

Fig. 1 - O "acorde místico" por Sabaneev (1911), (retirado de


http://mtosmt.org/issues/mto.12.18.2/mto.12.18.2.gawboy_townsend.php#FN10)

Fig. 2 – Tabela de correspondência entres tons e cores, segundo a partitura de Prometheus (1913), (retirado de
http://mtosmt.org/issues/mto.12.18.2/mto.12.18.2.gawboy_townsend.php#FN10))
Fig. 3 - Excerto de Prometheus, com notação para o luce no topo e anotações de Scriabin traduzidas da partira
original (retirado de http://mtosmt.org/issues/mto.12.18.2/mto.12.18.2.gawboy_townsend.php#FN10)

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