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Este trabalho é um estudo histórico e epistemológico sobre a evolução dos conceitos de energia (Vis Viva) e quantidade de
movimento, descrevendo a controvérsia reinante no século XVII acerca de qual delas seria a verdadeira medida de força.
Supera-se a controvérsia, mostrando-se a importância destas duas grandezas para a mecânica, exemplificando o que ambas
significam no contexto atual.
Palavras-chave: Energia. Quantidade de movimento. Vis Viva. Leibniz. Descartes
This work is a historical and epistemological study on the evolution of the concepts of energy (Vis Viva) and linear
momentum, describing the controversy reigning in the seventeenth century about which one would be the true measure of the
force. It overcomes the controversy, showing the importance of these two quantities for mechanics, exemplifying what both
mean in current context.
INTRODUÇÃO
As primeiras teorias a respeito da criação e origem do universo vieram com os mitos cosmogônicos como
o Gênesis bíblico e o Enuma Elis babilônico que já descreviam o início do universo como obra de um ou vários
deuses que ordenavam o caos (a matéria) inicial através de uma separação das coisas que logo em seguida
passavam a existir ganhando um nome. A partir do século V A.C., na Grécia, a mitologia foi sendo substituída
por uma visão filosófica na qual o universo seria construído a partir de um elemento primordial, o arché que
poderia ser a água, segundo Thales, o ar segundo Anaxímenes ou o apeyron (indefinido em grego) segundo
Anaximandro. Empédocles defendia a teoria dos quatro elementos primordiais, terra, ar, fogo e água que se
transformavam sob a ação de duas forças, Amor e Ódio, gerando tudo o que existe.
Por outro lado, outros filósofos chamados de atomistas sustentavam uma idéia materialista onde tudo era
feito somente de átomo e o vazio e que todas as coisas existentes em nosso mundo não passavam de
recombinações de elementos imutáveis e indivisíveis, que chamariam de átomos, ou seja, tudo no universo
seriam apenas (re) combinações atômicas. Todas estas teorias a respeito de elementos que se conservassem já
contêm, em si, o embrião da idéia de conservação de algo primordial que seria indestrutível, ou seja, um
pensamento de extrema importância para época e, conseqüentemente, para as épocas posteriores onde resultará
em leis de conservação.
A partir do século XVII, com Kepler, Galileu e Newton, a matemática passou a ser considerada como a
“linguagem do mundo”. Com isso, as teorias estabelecidas pelos pensadores da época estavam sujeitas a
sofrerem transformações e passaram a se “vestir” em forma de equações, ou seja, os princípios de conservação
da natureza seriam expressos na linguagem matemática. Desta forma, no século XVII surgem dois grandes
filósofos: Gottfried Wilhelm Leibniz (1646–1716) e René Descartes (1596 – 1650), que após observações de
corpos, tanto em colisões como em queda livre, perceberam que estes “possuíam” uma força, que seria nomeada,
por Leibniz, de Vis Viva (mv2) ou Quantidade de Movimento (mv), por René Descartes. Nesta época estas duas
1 Trabalho de Iniciação Científica apresentado na Universidade Estadual de Feira de Santana-Bahia (UEFS-Ba) sob a
orientação do prof Dr. Roberto Leon Ponczek. Abril 2010.
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grandezas passaram então a disputar, entre si, o status de “verdadeira medida da força e do movimento de um
corpo”, gerando muitas discussões e controvérsias entre os cartesianos e leibnizianos.
O sec. XVII foi palco para uma grande controvérsia científica, envolvendo a questão de qual seria a
verdadeira medida da força de um corpo. Enquanto que os cartesianos defendiam que a grandeza mv era a que
melhor representava a medida da força, Leibniz defenderá a idéia de que tal grandeza seria mv2, conhecida como
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“vis viva”, ou “força viva” de um corpo. Para demonstrar sua tese e refutar a tese cartesiana, ele parte de um
princípio geral que pode, de maneira simplificada, ser assim enunciado:
Um corpo A de massa 4 (quatro) vezes menor que a de um corpo B, porém caindo de um altura quatro
vezes maior, ao colidir com o solo deve ter uma força igual.(Ver figura 1).
Figura 1: Corpos em queda livre. Segundo Leibniz uma massa de “4m” a uma altura “x” é equivalente a uma massa “m” a
uma altura de “4x”.
Se nem o principio de conservação de energia e nem os conceitos de energia potencial e cinética estavam
estabelecidos em sua época, como pôde ele chegar a essa conclusão?
Como a estática já era uma ciência consolidada naquele período, ele utilizou o conceito conhecido na
época de equilíbrio estático de uma balança. O principio da balança estática se enuncia da seguinte forma:
“Objetos com massas inversamente proporcionais às distancias que as separam do eixo de equilíbrio de
uma balança deverão permanecer em equilíbrio estático”, ainda que este gire,
Figura 2: Principio da balança estática. Corpos com massas inversamente proporcionais às suas distâncias ao eixo de
sustentação.
Segundo este princípio, se temos duas massas inversamente proporcionais às distancias do ponto de
equilíbrio, o sistema continuará em equilíbrio, mesmo que se gire o sistema todo (Ver figura 3).
Figura 3: Princípio da balança estática. À esquerda a balança é girada no sentido anti-horário e á direita girada é girada no
sentido horário.
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E assim fica demonstrado, segundo Leibniz, que uma massa de “4m” a uma altura “x” é equivalente a
uma massa “m” a uma altura de “4x”.
A partir desta premissa, para Leibniz, a grandeza mv proposta por Descartes não seria apropriada para
representar a “força” de um corpo, logo, qual seria então a melhor grandeza?
De acordo com a teoria de Galileo, já estabelecida, “A velocidade final de seus corpos não dependem de
seus pesos, mas apenas da altura de que caem”. Esta relação é conhecida como fórmula de Torricelli:
V2 = Ah, (1)
onde “V” é a velocidade final do corpo, “h” a altura do corpo em relação ao solo e “A” é uma constante
de proporcionalidade. Desta forma,
“A velocidade final de um corpo em queda livre é proporcional à raiz quadrada da altura”.
Para cada corpo da figura 1, reproduzida ao lado, obtêm-se:
V12 = A(x) (I) 2
V22 = A(4x) (II) 3
Portanto, podemos concluir a partir desta lei que V2 = 2V1.
Para Leibniz, os corpos deveriam ter a mesma Vis (força)
quando chegassem ao solo, propondo que a força seria:
F = m*V2. (3)
Para o primeiro (I) e segundo (II) corpo temos respectivamente:
F1 = 4mA(x) (I)
F2 = mA(4x) (II)
Percebe-se que:
m1V12 = m2V22, logo F1 = F2
Essa demonstração está relacionada com a idéia leibniziana de que a verdadeira medida da força seria o
2
mv e não o mv de Descartes. Vejamos o porquê:
Para Descartes a força era dada por:
F = m*V (4)
Então temos:
F1 = (4m) (Ax)1/2 (I)
1/2 1/2
F2 = (m)( A4x) = 2m (Ax) (II)
Portanto, percebe-se que:
m1v1 ≠ m2v2 , logo, F1 ≠ F2
Desta forma, a grandeza mv, (proposta por Descartes como a verdadeira medida da força de um corpo),
não pode, para Leibniz, ter este status, pois é diferente para dois corpos que colidem com o solo, e que, segundo
ele, são equivalentes por se equilibrarem estaticamente numa balança.
Leibniz passa então a criticar os princípios cartesianos:
2
(I) Referente ao corpo com massa 4m a uma altura x.
3
(II) Referente ao corpo com massa m a uma altura 4x.
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Freqüentemente nossos novos filósofos se servem da famosa regra em que Deus conserva
sempre a mesma quantidade de movimento do universo. De fato isto é muito plausível e antes
eu próprio a tinha como indubitável. Porém há algum tempo reconheci em que consiste o seu
erro. O Senhor Descartes e muitos hábeis matemáticos têm acreditado que a quantidade de
movimento, isto é, a velocidade multiplicada pela magnitude (massa) do móvel é exatamente
a força motriz ou, para falar matematicamente, que as forças estão na razão direta das
velocidades e das magnitudes (...) (Citado por Ponczek, 2000, pg. 340).
Existe alguma relação entre a “vis viva” mv2 de Leibniz com a força newtoniana que sabemos ser F=ma?
Sabemos que o trabalho de uma força é
Logo,
(7)
Assim demonstra-se que a Vis Viva de Leibniz é o dobro de uma grandeza denominada posteriormente
como energia cinética por Lorde Kelvin, e é o dobro do trabalho realizado por uma força newtoniana.
Contudo, a força proposta por René Descartes, isto é mv, também pode ser relacionada com a grandeza
chamada de impulso na física newtoniana,
(8)
Como a força newtoniana é dada pelo produto da massa pela aceleração e esta última é a derivada da
velocidade em relação ao tempo, temos:
(9)
, (10)
ou seja: mv = I.
Logo, a grandeza mv proposta pelo ilustre filósofo francês no século XVII é numericamente igual ao
impulso I da força newtoniana. A grandeza é denominada de momentum linear, que, para o pensador era a
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A maior diferença conceitual entre elas se dá no âmbito epistemológico. Enquanto que a força newtoniana
se origina na vizinhança do corpo que a sofre, sendo assim uma causa transitória (externa) do movimento; as
forças de Leibniz e Descartes se situam no interior do corpo, sendo assim causas imanentes (internas) do
movimento.
A grandeza proposta por Descartes mostra-se muito relevante em nosso dia-a-dia. Podemos utilizá-la em
algumas situações reais relacionadas a colisões, como por exemplo, o acidente sofrido pelo piloto brasileiro
(Felipe Massa) que foi atingido por uma mola que se desprendeu do carro da frente. Podemos calcular a força
que a mola exerceu sobre o piloto. Podemos também estimar a força de impacto na raquete de um tenista para
inverter o movimento da bola e a força de impacto entre o pé e a bola no momento do chute de um jogador de
futebol.
O estudo de colisões mostra que a grandeza proposta por Descartes para representar a “verdadeira”
medida da força de um corpo é coerente com a determinação da quantidade de movimento (momentum linear) e
conseqüentemente do impacto sofrido pelo corpo, demonstrado logo abaixo.
Como vimos, segundo a física newtoniana, a força não é nem mv de Descartes, nem mv2 de Leibniz, mas
sim:
F = ma (11)
Como a aceleração é a = ∆v/∆t, substituindo na equação (11) temos;
F = m ∆v/∆t, (12)
Como a quantidade de movimento representada por P se expressa pela massa multiplicada pela variação
da velocidade encontramos:
∆P = m ∆v (13)
F = ∆P/ ∆t (14)
Observemos que as letras maiúsculas em negrito neste tópico significam um vetor.
Podemos concluir que na física newtoniana a força é igual à variação da quantidade de movimento (vimos
que para Descartes era a “verdadeira” medida da força) por unidade de tempo.
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Figura 4: Aplicações. Acidente de Felipe Massa. Uma mola se desprende do carro da frente e atinge o capacete. Foto
disponível em http://www.estadao.com.br/esportes
Considerando que a massa da mola era de aproximadamente de 0,500 kg (quilograma), a velocidade
relativa da mola em relação ao capacete era de aproximadamente de 280,0 km/h (77,8 m/s) e o tempo de colisão
foi muito rápido (colisão perfeitamente elástica) por volta dos 0,020 (segundos), temos:
Substituindo os valores na equação (13) temos para a quantidade de movimento;
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Subindo escadas
Quantos degraus ou andares uma pessoa de cerca de 80 kg pode subir caso ingira 100g de chocolate?
Considerando que 1g (grama) de chocolate fornece 4,7 quilocalorias e que 1 kcal é equivalente
aproximadamente 4180 J (joules), ingerimos o equivalente a 1.964.600 J.
Sabemos que o corpo humano funciona como uma máquina térmica. Poderemos tomar como
aproximação que a máquina opere num ciclo de Carnot, composto por duas isotermas e duas curvas adiabáticas.
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Considerando que TQ é a temperatura da fonte quente (dada em Kelvin) e TF a temperatura da fonte fria, o
rendimento é dado pela equação:
(15)
onde TQ (fonte quente) é a temperatura do corpo humano (37° C = 310 K) e TF (fonte fria) a temperatura
ambiente (24° C = 297 K). Então:
As 100 gramas de chocolate ingeridas fornecerão 1.964.600 J que multiplicado pelo rendimento do corpo
humano de 4,2%, nos darão 82. 513,2 J de energia que poderão ser convertidas em trabalho. Consideraremos,
ainda, que esta energia será utilizada somente para elevar o corpo, ou seja, que a energia do chocolate seja
transformada totalmente em energia potencial. Como a energia potencial é dada por:
(16)
Resolvendo,
82.513,2 = 80,0 X 9,81 X h
h = 105.1m
Este resultado implica em subir 35 andares (considerando que cada andar possua 3 metros de altura).
CONCLUSÕES E PROPOSTAS
A controvérsia entre Gottfried Wilhelm Leibniz (1646–1716) e René Descartes (1596 – 1650) com
relação à verdadeira medida de uma força, através do impacto com o solo, gerou mais do que duas simples
definições de força diferentes, mas sim, dois importantes princípios de conservação que regem os movimentos
dos corpos. Hoje sabemos que a Vis Viva de Leibniz é precursora de uma grandeza que se denomina de energia
cinética, enquanto que a quantidade de movimento defendida por Descartes foi depois chamada de momentum
linear, constituindo-se ambas importantes grandezas da Física.
Vimos também que as forças propostas por Leibniz e Descartes têm algo em comum ente si, mas são
epistemologicamente muito distintas do conceito newtoniano de força. Enquanto as duas primeiras são causas
imanentes (Internas) do movimento, situando-se no próprio corpo; a força newtoniana é uma causa transitória
(externa) do movimento de um corpo, originando-se em outros corpos. Finalmente vimos e exemplificamos que
os três conceitos de força se relacionam no interior da teoria newtoniana. Enquanto que a quantidade de
movimento de Descartes tem relação com forças de impacto de curta duração, a Vis Viva de Leibniz tem relação
com o deslocamento de uma força newtoniana que arrasta ou puxa um corpo (trabalho). Ambas são, portanto,
complementares.
Pretende-se dar continuidade à pesquisa a partir do estudo mais aprofundado dos diversos tipos e
transformações de energia ocorridas mais precisamente nas máquinas térmicas, e das várias formas de
conservação dos momenta linear e angular dos corpos.
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REFERÊNCIAS
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[12] PONCZEK R.L., A polêmica entre Leibniz e os cartesianos: mv ou mv2?,, Caderno Catarinense de Ensino
[13] PONCZEK R.L., Da Bíblia a Newton: uma visão humanistica da Mecânica, in: ROCHA, J. F. M., Origens
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[15] SCHURMANN, P.F. História de La Física, 2. Ed. Buenos Aires: Editorial Nova. 381 p. 1945.
[16] SILVA, A.S. and BASTOS FILHO J.B., “Wich is the true force? Descartes Quantity of Motion or Leibniz
vis viva?” Third International history, philosophy and science teaching conference, Minneapolis, EUA
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[18] WESTFALL, R.S., A vida de Isaac Newton, Trad. V. Ribeiro, R.J., Nova Fronteira, 328 p. 1995.
SITES CONSULTADOS
[19] http://www.portal.fae.ufmg.br/seer/index.php/ensaio/article/viewFile/36/67,
acessado em 15/10/2010 .
em 30/10/2010.
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