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O CHEIRO DE GOLPE

14 DE JULHO DE 2016 ÀS 15:12

A revista 24/7 começa a publicar, nesta sexta-feira, o livro "O


julgamento de Dilma", escrito por Raimundo Rodrigues Pereira,
um dos mais premiados jornalistas brasileiros, que fundou
publicações como Opinião e Movimento; "O impeachment é
também um processo jurídico e o afastamento definitivo de
Dilma Rousseff da presidência exige prova legal de que ela
cometeu efetivamente os tais crimes de responsabilidade. E a
pergunta que cabe, visto que a fase de testemunhas e provas já
passou, é clara: foi ou não provado que os crimes existiram?",
questiona Raimundo Pereira; ao final da série, todas as
reportagens serão reunidas num e-book

Por Raimundo Rodrigues Pereira

1. A Comissão Especial do Impeachment – CEI, para abreviar – funciona há cerca de


dois meses e meio, numa sala de acesso restrito no Anexo 2 do Senado da República
e suas atividades têm tido escassa repercussão. A rigor, no entanto, na CEI se
concluiu a parte mais crítica do processo de impeachment: a apresentação de
testemunhas de acusação e defesa e de provas e contra provas para se determinar se
Dilma Rousseff cometeu ou não os chamados “crimes de responsabilidade.” O
impeachment, como se sabe, é um processo político e, se fosse apenas isso, seu
desfecho já seria conhecido: na Câmara dos Deputados, a 17 de abril, sua tramitação
foi aprovada por 367 votos a favor e 137 contra; e, no Senado, a 12 de maio, se
decidiu, por 55 votos contra 22, afastar a presidente do cargo provisoriamente.
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Mas, o impeachment é também um processo jurídico e o afastamento definitivo de
Dilma Rousseff da presidência exige prova legal de que ela cometeu efetivamente os
tais crimes de responsabilidade. E a pergunta que cabe, visto que a fase de
testemunhas e provas já passou, é clara: foi ou não provado que os crimes existiram?
Afinal, no encerramento definitivo desse processo, numa data que se imagina na
segunda quinzena de agosto, no plenário do Senado, presidido por Ricardo
Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal, os senadores, um a um, terão
de responder à pergunta: “Cometeu a acusada Dilma Rousseff o crime que lhe é
imputado e deve ser condenada à perda do seu cargo?” Será necessário o “sim” de
dois terços, 54 do total de 81 senadores, para declarar a presidente “condenada”.
Com menos, ela é declarada “inocente” e volta ao cargo.

2. “No hay carne y hay pastel de carne, algo hay”, dizia o velho e arguto político
gaúcho, Leonel Brizola (1922-2004). Na CEI, também ocorreu algo estranho. Entre 8
e 29 de junho foram ouvidas 44 testemunhas. A acusação se empenhou para que
houvesse um número pequeno de testemunhas de cada lado, oito para ela, oito para
a defesa. A defesa da presidente apelou a Lewandowski e conseguiu oito para cada
lado, mas para cada um dos cinco crimes de que Dilma era acusada. E assim
convocou quarenta testemunhas. A acusação ficou com as oito, no total. E nem
chamou todas, ficou em seis. A defesa chamou 38, e todas repetiram,
unanimemente, que os crimes não existiram. Por que a acusação chamou tão pouca
gente: não precisava provar que o crime existiu?
Mais curioso ainda: dos seis convocados pela acusação que falaram nas duas
primeiras sessões de oitivas, dois apresentaram argumentos pro-Dilma. E, a partir
daí, nas doze sessões da CEI da fase de depoimentos, os senadores da bancada pelo
impeachment passaram, de um modo geral, a não fazer perguntas às testemunhas
da defesa e a pressionar para que o processo acabasse o mais cedo possível. A
bancada pro-Dilma, formada por apenas cinco dos 21 titulares da comissão,
conseguiu, no Supremo, também graças ao voto de Lewandowski, aprovar a
produção de uma perícia para saber da existência ou não os tais crimes de
responsabilidade de Dilma. Queria uma junta de peritos internacionais, para fugir do
ambiente passional que domina o País. Conseguiu uma trinca de peritos locais,
escolhida pelo presidente da CEI, o senador Raimundo Lira (PMDB-PB), entre os
técnicos do Senado.
Os dilmistas tentaram, depois, impugnar um deles, Diego Prandino Alves, justamente
o coordenador da trinca escolhida. Na reunião da CEI de 15 de junho, o advogado da
presidente, José Eduardo Cardoso, com todas as muitas vênias de seu repertório,
disse ser Prandino cidadão merecedor do maior respeito, por seu currículo; mas,
pelas postagens na sua página no Facebook não seria recomendado para uma perícia
de tantas implicações políticas. Numa das postagens, Prandino dizia: “Hoje, os que
bradam pela democracia vestem vermelho na sua maioria. Querem ser levados a
sério? Tirem essa roupa vermelha. Nossa bandeira nem sequer tem vestígio dessa
cor, a não ser, é claro, que você considere que o PT seja mais importante do que
tudo...” Cardoso disse ainda que a situação tinha ficado “esquisita” pelo fato de, após
o pedido de impugnação ter vazado, não só o perito coordenador, mas também os
outros dois da junta pericial terem apagado todas as suas postagens recentes na
internet. A impugnação acabou sendo decidida na CEI pelo voto. E, como
praticamente em todas as outras votações da comissão, prevaleceu a maioria anti-
Dilma: Prandino ficou. A decisão pegou mal. Para o senador Cristovam Buarque (PPS-
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DF), suplente na CEI e um dos ainda indecisos sobre como votar, a manutenção de
Prandino fazia o jogo “dos que chamam de golpe o impeachment”. “Vai ficar esse
cheiro”, disse ele aos outros senadores. Posteriormente, o presidente da CEI, senador
Lira, embora mantivesse Prandino na junta, o afastou da função de coordenador.
Como se viu, os peritos não parecem santos. O relatório deles foi divulgado há duas
semanas e não há outro. Com base nele e nas palavras do ilustre jurista Miguel Reale
Jr, principal assinante do pedido de impeachment em tramitação, serão feitas as três
considerações grifadas a seguir.

3. A acusação está, como se diz, “buscando pelo em ovo”. Embora o notável


Reale Jr diga que o País está na situação em que está por conta dos gastos
ilegais da presidente, computando-se as três imputações restantes contra
Dilma Rousseff trata-se de uma “merreca” no gasto público, três milésimos
do orçamento.
O notável jurista foi o primeiro a depor na CEI, no dia 28 de abril. Começou atacando
o deputado Jair Bolsonaro, do Partido Social Cristão, do Rio de Janeiro que, ao votar
na Câmara pela abertura do processo do impeachment, homenageou o mais famoso
torturador da ditadura militar, o coronel Brilhante Ustra. A seguir, Reale Jr desatinou:
comparou os crimes de Dilma, que considerou tremendos, com os de Ustra. Disse:
“Esse pedido de impeachment visa à liberdade. Porque há dois tipos de ditadura: a
ditadura explícita dos fuzis e a ditadura insidiosa da propina ou da irresponsabilidade
pelo gosto do poder” [ que leva …] “ao desastre da economia pública” [e] “é muito
mais grave do que a ofensa que se faz ao patrimônio pessoal, a ofensa que se faz à
coletividade” […] “por via de operações de crédito indevidas, por via da decretação de
créditos suplementares com desrespeito a essa casa” [no caso, o Congresso, onde ele
falava].
Reale Jr, junto com o ex-petista Hélio Bicudo e a advogada Janaína Paschoal, assinou
o pedido de impeachment afinal aceito na Câmara por seu então presidente Eduardo
Cunha, no final do ano passado. No pedido eram apontados sete crimes de Dilma
passíveis de impeachment. O maior deles, da ordem de 50 bilhões de reais, “por via
de operações de crédito indevidas” como disse o jurista no discurso na CEI, era o das
chamadas “pedaladas fiscais”, supostos empréstimos tomados pelo Tesouro do Banco
do Brasil para o chamado Plano Safra, de subsídios no pagamento de juros aos
produtores agrícolas entre 2013 e 2015. Os outros seis, todos cerca de cinquenta
vezes menores em valor, eram os tais “créditos suplementares” decretados por
Dilma, “em desrespeito a essa casa”, como destacou Reale Jr no mesmo discurso
citado.
Quando o jurista abriu os trabalhos de oitiva das testemunhas na CEI no final de
abril, quatro dessas sete acusações já tinham caído em instâncias anteriores. Na
aceitação da denúncia pela Câmara, os supostos crimes ficaram restritos aos que
teriam sido cometidos em 2015, por se avaliar que a presidente não poderia ser
processada por fatos ocorridos no seu mandato anterior, caindo as chamadas
pedaladas de 2013 e 2014 e dois decretos . Com a perícia dos técnicos do Senado
caiu mais um decreto de crédito suplementar; e caiu, também, o mais rico dos
crimes, o das pedaladas de 2015 no qual não foi encontrado qualquer ato praticado
pela presidente. Sobraram três decretos de crédito suplementar. O valor, em
dinheiro, da soma dos três: cerca de 1,7 bilhão de reais. Porque dizemos que, em
dinheiro, isso é “uma merreca”?
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Vejam a desproporção. O orçamento de gastos do governo Dilma para 2015,
autorizado pelo Congresso Nacional, era de 2,938 trilhões de reais. Houve um
contingenciamento, proibição de gastos de 61 bilhões, o que reduziu aquele valor
para 2,877 trilhões. O governo, a seguir, como percebia que o País entrava em
recessão e a queda de receitas era muito grande, não “empenhou”, ou seja, não fez
andar a papelama que autoriza o gasto. Assim, o total empenhado em relação ao
contingenciado foi reduzido em quase meio trilhão de reais, para 2,382 trilhões. E,
finalmente, mesmo tendo mandado gastar, não pagou tudo, cortou os pagamentos
“na boca do caixa”, como se diz. O resultado: o total efetivamente gasto, ou seja,
pago, em 2015, caiu para 2,245 trilhões. Suponhamos ter a presidente gasto, em
desafio ao Congresso Nacional, 1,8 bilhão de reais, o valor somado dos seus três
supostos crimes restantes. O que é isso? É menos de um milésimo do gasto
efetivamente feito. É isso que fez naufragar a economia pública como pretende,
voltamos a repetir, o ilustre Reale Jr?

4. Analisemos, agora, os três créditos suplementares restantes, passíveis de


condenação para a presidente. Quem os pediu? Por que pediu? O Poder
Judiciário, que cuida das leis do País, pediu créditos desse tipo abominável?
Pedidos desse tipo são uma anomalia? Ou era a regra nas programações
orçamentárias, até outubro de 2015, quando o TCU baixou norma exigindo
que, no lugar dos decretos o governo encaminhasse ao Congresso projetos
de lei?
O orçamento brasileiro de cada ano é preparado e administrado num processo que
envolve meio milhar de órgãos e centenas e centenas de pessoas. No ano anterior,
primeiro, o Congresso aprova uma LDO, lei de diretrizes orçamentarias. Ela define,
entre outras coisas, um superavit primário conceito importantíssimo, a ser
desenvolvido no último capítulo de nossa história e que, por ora, pode ser definido
assim: entre receitas e despesas anuais do governo, deve haver um saldo – o
resultado primário – para pagar juros.
Depois, com base nas diretrizes fixadas, e ainda no ano anterior, o Congresso aprova
a LOA, Lei Orçamentária Anual, no caso específico, a LOA 2015, do primeiro ano do
novo mandato de Dilma. Para isso, toma como base a arrecadação prevista –
impostos e outros tipos de receitas – e, a partir dela, define as dotações
orçamentárias, os limites máximos de despesa para cada uma das unidades do
governo, os muitos ministérios e suas inúmeras subdivisões e mesmo as dotações de
gastos dos outros poderes, Legislativo e Judiciário.
Da forma como as acusações contra a presidente foram amplamente divulgadas, os
pedidos de créditos suplementares parecem ter sido decisões dela própria,
decorrentes de seu gênio ruim e espírito político populista e gastador. Não é nada
disso. Os créditos suplementares começam a surgir a partir da execução do
orçamento, no início do ano e envolvem centenas de pessoas e órgãos, num processo
muito organizado e documentado, a partir de necessidades claríssimas. A soma dos
valores dos três decretos suplementares considerados ilegais pela junta de peritos do
Senado convocados pela CEI, dá um total de cerca de 1,8 bilhão de reais, sendo
apenas um pouco maior que o maior deles, 1,701 bilhões de reais, mais relacionado
com o Ministério da Educação. No total de órgãos do governo federal responsáveis
pelos pedidos de crédito suplementar estão, por exemplo, do Ministério da Educação,
65 universidades e 13 hospitais federais, 20 institutos de ensino técnico. Estão, ainda,

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solicitações de órgãos de praticamente todos os outros ministérios, da Defesa – dos
comandos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica -, dos ministérios da Cultura, do
Meio Ambiente, da Ciência e Tecnologia. O Poder Judiciário, a partir do Conselho
Nacional de Justiça, pediu 183 milhões de reais. O ministério da Justiça pediu 127
milhões.
O que justifica esses pedidos? O orçamento é anual, a LOA 2015 refere-se a receitas
e despesas desse ano. Mas o orçamento de 2014, como o de todos os anos, não se
resolveu totalmente no ano. Sobraram, em órgãos nos quais ele foi executado,
superavits financeiros – por exemplo, num concurso para juiz de um tribunal federal
com muito mais gente do que o previsto, a soma das taxas de inscrição superou o
estimado. Ou ocorreu um excesso de arrecadação por doação para um hospital
federal, por exemplo. Quando o ano de 2015 começou, todos os órgãos citados há
pouco nos diversos ministérios começaram a preparar seus pedidos de crédito
suplementar, ou seja, encaminharam ao planejamento central do governo pedido
para que essas verbas – de excesso de arrecadação ou superavit financeiro – fossem
acrescentadas às dotações reservadas para elas pela LOA 2015.
Como os depoimentos na CEI das 38 testemunhas da defesa confirmaram, este é um
procedimento natural, antigo, resultante do aprimoramento do processo orçamentário
do País. É totalmente parametrizado, ou seja, o funcionário tem um formulário
eletrônico a preencher e não pode fugir das suas normas. Do nível mais baixo – por
exemplo, a partir de aprovação no departamento competente de uma universidade
federal – o pedido de suplementação por decreto presidencial vai subindo, com
supervisões técnicas e jurídicas em alguns escalões, até chegar à assinatura da
presidente da República. Como disseram vários depoentes, Dilma Rousseff não
poderia desautorizar nenhum desses pedidos, nem inventar qualquer um deles, a
menos que quisesse interferir ditatorialmente em toda a cadeia de processamento dos
créditos suplementares consagrada pelas regras da administração pública há anos.
A acusação diz que o governo tem uma meta de superavit - ou mesmo de déficit
primário - anual, aprovada na LOA no início do ano. Mas deve conter a edição de
créditos suplementares, no seu acompanhamento da execução orçamentária feito
bimestralmente, quando percebe que a meta anual pode não ser atingida. Diz ainda
que o TCU advertiu o governo, falando da necessidade de um comportamento mais
cauteloso, no início do segundo semestre de 2015, e recomendou que, no lugar de
decretos, a presidência enviasse ao Congresso para aprovação projetos de lei.
Na defesa do governo, em depoimento na CEI, no dia 17 de junho, o ex-ministro da
Fazenda de Dilma, Nelson Barbosa, apontou como prova da correção da presidente, o
fato de, na chamada PEC do gasto, a proposta de emenda constitucional para
limitação das despesas públicas apresentada pelo governo Temer ao Congresso
recentemente, o sistema de corte do gasto ser igual ao que era adotado antes, ao
que foi adotado em 2015, quando se tinha uma dotação aprovada pela LOA e o gasto
foi cortado pelo contingenciamento e na boca do caixa. A PEC de Temer diz:
“Poderíamos tanto limitar a despesa empenhada (ou seja, aquela que o Estado se
comprometeu a fazer, contratando o bem ou serviço) ou a despesa paga (aquela que
gerou efetivo desembolso financeiro) aí incluídos os restos a pagar, vindos de
orçamentos anteriores e que são efetivamente pagos no ano”. Barbosa concluiu: o
governo Temer escolheu o critério financeiro, de garantir o resultado primário pelo
regime de caixa, “não escolheu o critério [de limitar o] empenho, muito menos o
critério [de limitar a] dotação orçamentária”. O TCU aprovou essa nova regra em
dezembro de 2015. É certo que a inventou antes, em julho. Mas, na ocasião, quando
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foi apresentada ao governo, este recorreu. E obteve efeito suspensivo da medida. E
ela só começou a valer de fato, quando o pleno daquela corte o julgou
definitivamente, em dezembro. Como diz a defesa de Dilma, nem a partir daí se pode
considerar a decisão do TCU como sendo uma norma jurídica; dela ainda o governo
Dilma pode apelar ao Judiciário. E mais, a partir da decisão do pleno do TCU o
governo não editou novos decretos de créditos suplementares. E essa corte – diga-se
de passagem, órgão assessor do Congresso Nacional que sempre aprovou contas de
presidentes anteriores com decretos como os hoje considerados proibidos – não pode
aplicar suas normas com efeito retroativo, é claro.

5. Por que se quer tirar a presidente Dilma do cargo?


Muito se disse, na CEI, da lei 1.079, de mais de meio século atrás, da época do
governo Dutra, que tipificaria e mandaria punir a presidente da República por crime
de responsabilidade. Não é verdade. Trata-se de outra lei, da Lei de Responsabilidade
Fiscal, derivada daquela, mas de sentido totalmente diferente, costurada nas suas
características básicas em conversas do presidente Fernando Henrique Cardoso com
representantes do Fundo Monetário Internacional e do Tesouro dos EUA. No final de
1998, depois de uma orgia de dólares entrados no Pais em busca dos juros mais altos
do mundo, que serviram de lastro para o Plano Real, FHC chegou ao final de seu
primeiro mandato com o Brasil quebrado e prometeu aos credores internacionais –
como se pode ver nitidamente nas gravações do chamado grampo do BNDES – uma
mudança na Constituição brasileira para introduzir nela um conceito ampliado de
responsabilização dos governantes pelo andamento das contas do País.
O Brasil tinha uma lei antiga, de abril de 1950, do governo Dutra (1946-1951), para
definir os “crimes de responsabilidade” dos governantes e regular o seu “respectivo
processo de julgamento”. Esta lei, a 1.079, no caso da presidência da República
previa oito categorias de crimes pelos quais o governante poderia ser julgado e
perder seu mandato. A primeira categoria e a mais extensa era a de atentar contra “a
existência da União”. Nela estavam alinhados onze tipos de crimes, como os de não
empregar os meios necessários à defesa da integridade nacional e os de “celebrar
tratados, convenções e ajustes que comprometam a dignidade nacional”. A parte
relativa ao orçamento público era a menor das categorias e definia apenas quatro
crimes.
A promessa feita por FHC aos credores do País no final de 1998 iria, a curto prazo,
alterar radicalmente a lei 1079, nesta categoria específica: aos crimes orçamentários
foram acrescidos mais oito espécies, entre as quais a de “deixar de ordenar a redução
do montante da dívida pública consolidada”, quando este ultrapassar limites e, em
sentido contrário, o de “ordenar a realização de operações de crédito com entidades
da administração direta”, que se tornariam expressamente proibidas. E assim foram
aprovadas, logo nos primeiros anos do segundo mandato de FHC, a LRF e a chamada
Lei dos Crimes, de número 10.028, que ampliou a lista de crimes da presidência da
República na execução orçamentária e reformou, ainda, o Código Penal de 1940 para
garantir esse tipo de punição.
Um diálogo na CEI entre Lindbergh Farias, senador do PT, pelo Rio de Janeiro, e a
testemunha da acusação Leonardo Albernaz, técnico do TCU, no dia 13 de junho,
ilustra bem o sentido maior dos ralos argumentos usados para criminalizar as ações
da presidente. Como se sabe, a limitação do gasto é essencial para o chamado
mercado, onde estão os aplicadores em títulos da dívida pública, preocupados com o
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seu descontrole e a possibilidade de não receberam os seus juros. Albernaz
argumentava que em julho de 2015, o TCU tinha feito uma recomendação ao governo
pelo fato de, aquela época, já se antever o não cumprimento do resultado primário.
Ou seja, o governo não estava economizando o suficiente para pagar juros e conter o
crescimento da dívida. Pior ainda, não pagaria nenhuma fração dos juros novos
devidos no ano, teria deficit, precisaria emitir mais títulos da dívida pública, o que
significaria ter de pagar mais juros ainda em 2016.
Nessa situação, embora o cumprimento da meta só se verifique no fim do ano, o
governo não teria mais autorização para abrir créditos suplementares, como os
assinados por Dilma, argumentou Albernaz para justificar a tese do TCU de os
decretos de créditos suplementares de Dilma serem ilegais. A presidente teria de
cortar gastos, mais do que cortou. Ao contingenciamento de despesas do início de
2015 teria de acrescentar outro, como fez, mas não de 8 bilhões de reais, de 57
bilhões de reais. “O senhor está dizendo”, retrucou Lindbergh Farias, senador pelo PT,
do Rio, que o contingenciamento inicial, feito pelo ministro da Fazenda de Dilma da
época, Joaquim Levi, o maior da história recente brasileira, tinha de ser
complementado não com um corte de oito mas de 57 bilhões de reais? “Os senhores
estão querendo criminalizar um debate sobre política fiscal que está ocorrendo no
mundo inteiro”.
Farias se referia ao fato de mesmo conservadores empedernidos mas autênticos
como os editorialistas da revista inglesa Economist, liberais desde 1843, estão
recomendando políticas anti-cíclicas de elevação dos gastos estatais para se
contrapor à enorme crise em desenvolvimento no mundo capitalista. E tem razão.
Nossos liberais são mais radicais. Se o governo Temer se tornar verdadeiro, logo se
verá. Um dos gurus dos liberais apoiadores do governo interino, o economista Edmar
Bacha, já disse em artigo ao diário O Globo e entrevista a O Estado de S. Paulo: o
congelamento do gasto público a ser colocado na Constituição é apenas parte das
reformas liberais. E não significará nada se não incluir também uma mudança
constitucional para reduzir os gastos na Educação e na Saúde.
Se o leitor não quer pagar para ver, faça alguma coisa contra o impedimento final da
presidente Dilma Rousseff.

*Com a colaboração de Lia Imanishi.


Lia e Raimundo são os repórteres que farão uma série que incluirá além
dessa matéria, mas seis sobre o julgamento de Dilma. Raimundo, 76 anos,
foi editor de política de Veja, na ditadura, depois, ainda no período
ditatorial, foi diretor dos semanários Opinião e Movimento. Mais
recentemente, foi diretor das revistas mensais Reportagem e Retrato do
Brasil. Atualmente é um dos dirigentes da Editora Manifesto que prepara o
projeto de um semanário de informações para 2018.

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