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O JULGAMENTO DE DILMA:

A CONSPIRAÇÃO DO GOLPE

No sétimo capítulo do livro sobre o julgamento de Dilma


Rousseff, o escritor e jornalista Raimundo Rodrigues Pereira
demonstra como o procurador Júlio Marcelo de Oliveira,
desmascarado e reduzido de testemunha a informante, e o
auditor Antônio D'Ávila, que confessou ter auditado o
parecer que ele próprio preparou, participaram da
conspiração golpista; ele lembra ainda que o ministro
Ricardo Lewandowski "rebaixou a qualificação do
depoimento de Júlio Marcelo e, dada a gravidade dos fatos
confessados por D´Ávila, deixou aberta para a defesa a
possibilidade, inclusive, de anular o seu testemunho"

1. É domingo, 28 de agosto. Na quinta, sexta e ontem foram


ouvidas sete testemunhas na fase final do processo de impeachment
da presidente da República. Amanhã esta etapa termina com o
testemunho da própria Dilma Rousseff, que irá ao plenário do Senado
para apresentar sua defesa e responder às perguntas dos senadores.
A previsão é de o julgamento terminar até quarta, dia 31, tendo cada
um dos 81 senadores respondido sim ou não à seguinte questão a ser
formulada pelo condutor dos trabalhos, o presidente do Supremo
Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski: “Cometeu a acusada, a
senhora presidente da República, Dilma Vana Rousseff, os crimes de
responsabilidade correspondentes à tomada de empréstimos junto a
instituição financeira controlada pela União (art. 11, item 3, da Lei
1079/50) e à abertura de créditos sem autorização do Congresso
Nacional (art. 10, item 2, da Lei 1079/50) que lhe são imputados e
deve ser condenada à perda de seu cargo, ficando, em consequência,
inabilitada para o exercício de qualquer função pública pelo prazo de

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oito anos?” Com 54 ou mais votos pelo sim, a presidente é afastada.
Com 28 votos ou mais, somando o não, ausências e abstenções,
Dilma Rousseff volta imediatamente ao cargo.
O julgamento, como se sabe, não é político, apenas; é também
jurídico. Como se viu a acusação enquadra Dilma Vana Rousseff em
dois itens específicos, de dois artigos – 10 e 11 – da Lei 1079, que
estipula os “crimes de responsabilidade” da presidente da República.
E, em princípio, foi o cometimento desses crimes que se tentou
provar, ou negar, nas duas sessões de coleta de provas: a que se
realizou no plenário do Senado no fim de semana que passou e
praticamente terminou ontem, deixando de lado, por enquanto o
testemunho da presidente; e a levada a cabo entre 8 e 29 de junho,
na Comissão Especial de Impeachment (CEI), formada por 21
senadores e 21 suplentes. Que balanço se pode fazer dessa etapa
dupla de coleta de provas?
Em primeiro lugar se deve dizer que ela foi, no mínimo curiosa. Pela
seguinte razão: no julgamento de crimes, que é o caso, quem acusa
tem de provar a existência do crime e sua autoria; e, neste
julgamento, coube à defesa a tarefa, original, de provar que o crime
não existiu. Na primeira fase da oitiva de testemunhas, na CEI, a
defesa apresentou 36 testemunhas; a acusação só duas. Todas as 36
da defesa mostraram, exaustivamente: que todos os procedimentos
do governo tinham sido os mesmos de sempre, que nunca tinham
sido contestados antes, na década e meia de existência da famosa Lei
de Responsabilidade Fiscal – inúmeras vezes citada nos debates como
uma das mais importantes do País – e das modificações introduzidas
por ela na antiga lei dos crimes da presidência da República, a 1.079,
de 1950.
Ainda nessa fase inicial, das quatro testemunhas do juízo, como se
diz no linguajar das cortes, no caso escolhidas pelo então juiz, o
presidente da CEI, Raimundo Lira (PMDB-PB), apenas uma –
Leonardo Rodrigues Albernaz, auditor chefe da Semag, Secretaria de
Macroavaliação Governamental do Tribunal de Contas da União, de
certo modo seguiu o caminho de Julio Marcelo de Oliveira, o promotor
publico junto ao TCU – e, como já se viu nos capítulos anteriores, o
grande defensor da argumentação pro-impeachment. Não por acaso,
Júlio Marcelo e um auditor, Antônio D´Ávila, da Secex, Secretaria de
Controle Externo do TCU, foram as duas únicas testemunhas da
acusação naquela fase. Nessa última etapa das provas, do último fim
de semana, Júlio Marcelo e D´Ávila foram, novamente, as duas
únicas testemunhas dos acusadores. Eles confirmaram todas as
acusações que tinham feito antes à presidente. Mas, dadas as
circunstâncias que exporemos a seguir, tiveram de ir além: de certo
modo, expuseram o que nos parece ser o fio do novelo de interesses
que construiu a trama do impeachment.

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Em segundo lugar devemos dizer que a presença do presidente do
Supremo na condução do processo, nesta segunda etapa de
apresentação de testemunhas, tornou a qualidade do espetáculo do
plenário um pouco melhor do que a das sessões comandadas por
Lira, o presidente da CEI. De fato e de direito, os poderes de
Lewandowski são maiores que os de Lira. O senador paraibano pode-
se dizer, fez o máximo para se mostrar imparcial. De fato, porém,
não tinha essa condição: poucas coisas ele podia decidir por sua
própria consciência. Eleito pela bancada pro-impeachment, estava
inarredavelmente amarrado a ela: mesmo a coisas elementares,
como a de aceitar a realização de uma perícia nos documentos das
ações presidenciais questionadas, ele não decidiu sozinho. Pediu o
voto da maioria, que obviamente era contra. E se opôs a perícia,
apoiado no bloco antidilma. Apenas a intervenção de Lewandowski,
após recurso dos dilmistas, garantiu a perídia. E mais ainda, no
mesmo caso, quando surgiram evidências clamorosas de que um dos
peritos escolhidos era militante do movimento anti-Dilma, Lira não o
destituiu, apenas o rebaixou da condição de chefe e o manteve na
trinca de escolhidos para a tarefa.
A posição de Lewandowski é outra. Ele não é, por dever de ofício,
alinhado com nenhuma das partes. Como disse bem, ao falar na
abertura do julgamento, teria a tarefa até mesmo de impugnar, não
apenas as considerações, mas as próprias perguntas feitas pelos
senadores que fugissem ao objeto do processo em discussão. E foi
com essa autoridade que ele rebaixou a qualificação do depoimento
de Júlio Marcelo e, dada a gravidade dos fatos confessados por
D´Ávila, deixou aberta para a defesa a possibilidade, inclusive, de
anular o seu testemunho. Como isso aconteceu? É o que se verá em
seguida.

2. No seu depoimento na tarde de quinta-feira, Júlio Marcelo


confirmou todas as acusações que fez antes, na CEI, contra a
presidente Dilma Rousseff, considerando-a culpada dos dois tipos de
crime de responsabilidade que lhe são atribuídos, o da tomada de
empréstimos de bancos públicos pelo governo federal e o de assinar
decretos de suplementação de créditos orçamentários sem
autorização do Congresso Nacional. Mas não depôs na condição de
testemunha, mas na de informante. Qual a diferença? A testemunha
é obrigada ao juramento de dizer a verdade e então pode ser punida
em caso de desrespeito a esse compromisso. Seu depoimento é mais
valorizado. O informante não tem a obrigação do juramento e suas
informações têm outro estatuto.
Antes que Julio Marcelo começasse a depor, o advogado da
presidente, José Eduardo Cardozo, interveio para pedir duas coisas.
Citou o Código de Processo Penal para pedir o “impedimento objetivo”

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do depoimento. E citou o Código do Processo Civil para alegar a
“suspeição” de Júlio Marcelo e, com isso, requalificar a qualidade de
seu depoimento. Lewandowski só aceitou o segundo pedido. O que
parece ter influenciado mais para a aceitação da suspeição, foi o
seguinte argumento de Cardoso. Ele disse que Júlio Marcelo não
atuou somente como membro do Ministério Público. “Ele atuou
verdadeiramente como militante político de uma causa. Não tenho
dúvida nenhuma em relação a isso, a partir do momento em que ele
especificamente divulgou convocatórias de um ato para pressionar os
Ministros do Tribunal de Contas da União a rejeitarem as contas da
Senhora Presidente da República em 2014”. Cardozo pediu a
Lewandowsli que ouvisse Julio Marcelo sobre suas alegações, mais
destacadamente, se ele convocou e participou da manifestação "Vem
pra Rampa", para pressionar pela rejeição das contas de Dilma
Rousseff de 2014 que estariam sendo analisadas no TCU durante o
ato.
Depois de pedir a opinião da advogada da acusação, Janaína
Paschoal, que basicamente argumentou contra o impedimento e
protestou contra a pergunta, considerando-a ofensiva ao depoente,
Lewandowski se pronunciou. Disse que iria transmitir a Julio Marcelo
a pergunta de Cardozo mas, antes, negou o pedido de impedimento
de seu testemunho. Disse: “Eu vou […] transmitir a pergunta feita
por V. Sª à testemunha Júlio Marcelo de Oliveira apenas quanto à
suspeição”. E explicou: “Nós sabemos que há dois tipos de vedações
para participar de atos processuais: os impedimentos, que são de
ordem objetiva, e as suspeições, que são de natureza subjetiva. Do
ponto de vista do impedimento, parece-me que o fato de a
testemunha ter atuado como membro do Ministério Público do
Tribunal de Contas no exercício de suas atribuições legais não o
impede de ser ouvido como testemunha, porque, senão, como disse a
Drª Janaina, um auditor fiscal, num processo de natureza tributária,
ou mesmo um delegado de polícia, num inquérito policial ou numa
ação penal, também não poderia ser ouvido. Portanto, a questão
dessa impossibilidade, [dessa] alegada impossibilidade de participar
deste ato por uma razão de natureza objetiva, qual seja, por ter
desempenhado certas funções inerentes ao cargo que exercia, fica
afastada. Agora”, disse Lewandowski dirigindo-se então a Júlio
Marcelo, “V. Sª responderá a esse impedimento de natureza pessoal,
subjetiva, íntima de ter ou não participado desses atos que lhe são
atribuídos pelo Dr. José Eduardo Martins Cardozo”.
Júlio Marcelo tentou negar o fato. Disse que não tinha convocado
nem participado “de qualquer ato destinado a pressionar o Tribunal
de Contas para tomar decisão X ou Y”; que apenas tinha divulgado
em sua página no Facebook, um comentário sobre uma convocatória
feita por movimentos sociais cujos líderes desconhecia, dizendo ser
“muito apropriado que a sociedade brasileira amadureça no sentido
de discutir as contas públicas”. Lewandowski passou a réplica para

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Cardoso. Ele perguntou de novo quase a mesma coisa. Júlio Marcelo
respondeu, de novo, que não: “Esse ato, se bem me lembro [...] foi
em algo como junho, julho, não lembro bem exatamente a data. Mas
o que dizia lá é exatamente o que acabei de dizer: considero
apropriado que a sociedade brasileira se aproprie da discussão sobre
a sanidade das contas públicas”.
A seguir, com a autorização de Lewandowski, interveio a senadora
Gleisi Hoffmann (PT-PR). Ela disse que Julio Marcelo tinha dado a
mesma explicação na CEI: de que sua manifestação pelo ato se dera
para estimular a sociedade “a discutir, a debater as contas públicas”.
“O problema”, disse a senadora, “é que a chamada para o ato não
era para debater as contas públicas”. A chamada para o ato disse ela
era: “Ato de reivindicação ao TCU pela rejeição das contas do
Governo Dilma, em 17/06, na rampa do Tribunal de Contas da
União”. “Não era para discussão, era para rejeição”, disse a senadora
Gleisi. “Então, eu pergunto se o dr. Júlio Marcelo, alguma vez,
também chamou algum ato para aprovação de contas presidenciais.
Esse ato não foi para discutir, esse ato foi chamado para rejeitar. Ele
tinha lado. Portanto, que fique registrado isso, Sr. Presidente”.
A seguir falou o senador Cassio Cunha Lima (PSDB-PB) para
protestar, dizendo que os defensores de Dilma estavam falando para
serem vistos na GloboNews, na TV Senado, que estavam
transmitindo ao vivo os debates e porque o PT estava fazendo um
filme sobre o processo de impeachment. Mas, logo Lewandowski
decidiu. Primeiro, citou o art. 214 do Código de Processo Penal:
“Antes de iniciado o depoimento, as partes poderão contraditar a
testemunha ou arguir circunstâncias ou defeitos, que a tornem
suspeita de parcialidade, ou indigna de fé. O juiz fará consignar a
contradita ou arguição e a resposta da testemunha, mas só excluirá a
testemunha ou não Ihe deferirá compromisso nos casos previstos nos
arts. 207 e 208.” A seguir emendou: “Eu quero dizer o seguinte:
entendo que os membros do Ministério Público e os integrantes da
Magistratura têm os mesmos impedimentos, prerrogativas,
vantagens e estão sujeitos às mesmas suspeições. No caso, vejo que
a testemunha, o Sr. Júlio Marcelo de Oliveira, confirma os fatos que
foram irrogados pela Defesa, na medida em que S. Sª participou de
um ato em que se pretendia, publicamente, agitar a opinião pública
para rejeitar as contas da Senhora Presidenta da República. Penso
que, como membro do Ministério Público do Tribunal de Contas, S. Sª
não estava autorizado a fazê-lo; portanto, incide na hipótese de
suspeição”.
A seguir, Lewandowski citou dois parágrafos do artigo 457 do Código
de Processo Civil. O primeiro: “antes de depor, a testemunha será
qualificada, declarará ou confirmará seus dados e informará se tem
relações de parentesco com a parte ou interesse no objeto do
processo.” O segundo: “sendo provados ou confessados os fatos a

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que se refere o § 1º, o juiz dispensará a testemunha ou lhe tomará o
depoimento como informante”. Lewandowski, a seguir, concluiu,
primeiro, voltando-se para Julio Marcelo: “A meu ver, S. Sª confessou
a participação nesse ato. Portanto, vou dispensar o Sr. Júlio Marcelo
de Oliveira como testemunha”. E depois, falando para o plenário:
“Portanto, retiro-lhe o compromisso, mas será ouvido na qualidade de
informante. Está decidida essa questão.”

3. Quanto a Antônio D´Ávila, a decisão de Lewandowski foi de


outro tipo. D´Ávila é o auditor do TCU que, como já explicamos em
capítulo anterior, emocionou os defensores do impeachment na CEI
por ter dito até que “sentiu um frio na barriga” ao descobrir o atraso
do Tesouro nos pagamentos aos bancos públicos, na investigação das
chamadas “pedaladas” que conduziu no final de 2014. A defesa pediu
a anulação do seu depoimento. O presidente do STF negou o pedido.
Disse que ele era intempestivo, ou seja, estava sendo feito fora de
hora e no local errado. O advogado da presidente, José Eduardo
Cardoso, já afirmou que vai pedir a anulação do depoimento de
D´Ávila no devido lugar e numa devida hora. Por que?
D´Ávila, confessou, de público, ao depor, como testemunha, já no
final da noite de quinta, que ajudou Júlio Marcelo a fazer a primeira
denúncia das pedaladas em agosto de 2014, mesmo sendo ele a
pessoa que iria apreciá-la e dar-lhe seguimento. No início de seu
depoimento, horas antes, D´Ávila tinha respondido aos senadores pro
impeachment reafirmando todas as teses da acusação. O senador
Ronaldo Caiado (DEM – GO) o elogiou dizendo que em seu
depoimento anterior na CEI, ele tinha emocionado os senadores. Leu,
inclusive, trecho daquele depoimento. “Eu confesso isso a V. Exª [é
D´Ávila falando a Caiado, na CEI]. Eu não acreditava que eu estava
diante daquela situação. De tal sorte que, ao receber o contraditório,
os argumentos da outra parte me davam um frio na barriga tão
grande, porque eu falava: ´Não é possível. Eu devo estar errado. Eu
devo ter cometido alguma falha no processo. Não é possível. Eu devo
estar errado”. Na ocasião, nesta série, dissemos, de passagem, que
D´Ávila parecia estar dizendo que o frio que sentia na barriga vinha
do medo de ser contraditado. E ao que parece, a contradita veio.
Quem a fez foi o senador Randolphe Rodrigues (Rede, AP).
Era noite avançada quando senador perguntou a D´Ávila se ele, de
fato, era o autor da representação apresentada por Julio Marcelo ao
TCU, em agosto de 2014, a famosa peça que deu início à
movimentação da corte de contas contra as chamadas pedaladas. “Há
informações, dr. D’Ávila, de que o senhor seria o verdadeiro autor
dessa representação assinada pelo Sr. Júlio Marcelo. E de que teria
havido uma articulação para que a referida representação fosse

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remetida para a sua Secretaria, contrariando, no meu sentir, o que é
disposto nas regras internas do Tribunal de Contas da União.
Portanto, complementarmente, eu lhe pergunto: o senhor chegou a
conversar com o Procurador Júlio Marcelo sobre o tema das ditas
pedaladas? O senhor teve essa conversa antes de ser apresentada a
representação? O senhor, de alguma forma, contribuiu com a redação
da representação ou conheceu seu conteúdo, preliminarmente?
D´Ávila, como todas as testemunhas, estava isolado num quarto de
hotel até a hora de depor. Não conhecia os termos do depoimento de
Julio Marcelo. Randolphe, antes da pergunta, tinha feito uma
referência ao depoimento do, já então, informante Julio Marcelo. De
qualquer modo, D´Ávila assumiu sua participação no trabalho do
promotor. Disse: “Sim”. E passou a justificar-se: “Eu auxiliei o
ministério Público, o Procurador Júlio Marcelo, a redigir essa
representação, porque se trata de um tema muito específico; é um
tema que gosto muito, é um tema que tem influência, sim, nas
finanças públicas. Ele solicitou a minha ajuda, o meu auxílio, e eu
jamais poderia me negar, como jamais me negarei a escrever
qualquer texto. Além do mais, sou professor que atuo na área. E,
como professor que atua na área, eu sempre estou tratando desses
temas com qualquer pessoa que seja meu aluno, [como] com
qualquer pessoa que queira conversar comigo sobre essa temática.”
D´Ávila foi além disso. Sugeriu que a representação era apenas
“formalmente” de Júlio Macedo. Disse textualmente: “Formalmente a
representação foi apresentada pelo Dr. Júlio e cabia a ele decidir se
faria ou não. Mas, sim, conversei com ele antes da representação,
passei a ele alguns conceitos, porque envolvia questões de apuração
de resultado fiscal e, em função do que estava colocado nos jornais,
ele queria obter maiores informações em relação a isso. Auxiliei, sim,
na redação de alguns trechos da representação”.
Randolphe voltou à carga. Na primeira resposta D´Ávila tinha dito
também que a Secex, a secretaria de controle externo do TCU, na
qual trabalhava, era o setor certo para receber a representação de
Júlio Marcelo e não havia nada errado no fato de ela lhe ter sido
encaminhada. Randolphe o contradisse. Dirigindo-se a Lewandowski,
falou: “Há outra questão, Presidente, que me parece curiosa […] a
representação de 2014 naturalmente deveria ir para a Semag
[secretaria de Macroavaliação Governamental] que tem competência
normativa para avaliar violações à Lei de Responsabilidade Fiscal,
[mas] foi distribuída – vejam só – para a secretaria […] onde
trabalhava, circunstancialmente, quem? Dr. D'Avila. [...] Assim, a
distribuição, ao que me parece, claramente foi feita para assegurar
que a representação caísse justamente para a testemunha, e não
para a secretaria de origem. E veja, Sr. Presidente, eu chamo a
atenção para o art. 46 da resolução sobre as competências da
Semag, no Tribunal de Contas da União, que diz, ipsis litteris, o

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seguinte: ´Realizar a fiscalização e controle de cumprimento das
normas estabelecidas pela Lei Complementar nº 101 [...]´
justamente a Lei de Responsabilidade Fiscal”.
D´Ávila se defendeu dizendo que quem direcionou a representação
para seu setor, a Secex, foi o ministro do TCU José Múcio Monteiro. A
sessão continuou. D'Ávila respondeu a senadores interessados em
outros aspectos de seu depoimento. A seguir, a advogada da
acusação, Janaína Paschoal, a seu estilo, falando de temas muito
amplos, tentou defendê-lo. Mas a hipótese de um conluio entre o
principal defensor da tese do impeachment, Julio Marcelo, e D´Ávila
voltou ao debate. E foi o próprio D´Ávila que voltou ao assunto,
preocupado em defender-se. “Em relação à interferência, jamais
houve – de qualquer pessoa que seja – qualquer interferência,
porque eu não aceitaria. Jamais aceitei e jamais vou aceitar, porque
não considero isso correto. E repito, como já disse na Comissão
Especial do impeachment, os Ministros do Tribunal jamais – jamais
interferiram em qualquer trabalho que realizei desde 2004 até a
semana passada, em que eu trabalhava no Tribunal de Contas da
União (D´Ávila informou que tinha saído do TCU e se tornara
assessor parlamentar”.
O último a falar sobre o assunto foi José Eduardo Cardoso. Ele disse
que a defesa da presidente estava “absolutamente estarrecida” com o
depoimento de D´Ávila. “Nós sabíamos que havia divergências dentro
do Tribunal de Contas. Afirmamos, nas nossas peças [de defesa da
presidente] que, curiosamente, uma das unidades que havia firmado
esses pareceres não tinha sido lembrada no acórdão, por alguma
razão. É estranho que um órgão que sustente a transparência, que
cobre a transparência, que acuse o Governo de maquiar coisas
simplesmente não aponte as suas divergências internas. Por que
será? Eis que, a partir da arguição do Senador Randolfe Rodrigues, se
revelou algo assustador: o Ministério Público, que é o órgão que tem
independência funcional, pede o auxílio de um auditor, que tem o
dever da imparcialidade funcional, para preparar uma representação
onde o Ministério Público é parte, e essa representação é dirigida ao
próprio auditor, fora da unidade que deveria recebê-lo. É isso que nós
ouvimos hoje. É o mesmo, Sr. Presidente, que um juiz auxiliasse um
advogado a elaborar a petição que seria dirigida a ele, para que ele
pudesse acolhê-la. É gravíssimo! […] É inacreditável o que nós
estamos vendo aqui, Sr. Presidente – inacreditável!”
Passava da meia noite, já era sábado, dia 27. Cardoso concluiu: “Eu
não vou prejulgar, mas me parece claro que foi violentado o Código
de Ética do Tribunal de Contas da União nos arts. 5º, 13 e 14, sem
embargo de ofensas funcionais com base na Lei nº 8.112, sem
embargo em situações que podem ser tipificadas na Lei Orgânica do
Ministério Público. Portanto, eu requeiro, Sr. Presidente, a extração,
em caráter de urgência, da ata e do depoimento, para que a Defesa

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da Senhora Presidente da República possa, imediatamente, tomar as
medidas [...] que julgar cabíveis, do ponto de vista disciplinar e
outras que porventura se configurem como tipificadas, diante de um
comportamento que, a meu juízo, qualifica de nulidade plena o que
aconteceu nesse caso do Tribunal de Contas da União. Duvido que os
Srs. Ministros saibam disso, duvido. E deverão sabê-lo. E nos
encarregaremos de informá-los formalmente e de pedir as
providências cabíveis, nos termos da lei, em todos os seus aspectos
[...]. Senhores, é estarrecedor o que nós estamos vendo aqui hoje,
estarrecedor! E em jogo está o mandato de uma Senhora Presidente
da República eleita por 54 milhões de brasileiros. É isso que nós
estamos vendo”.
D´Avila ainda se defendeu. Disse que não havia divergência de
opinião dentro do TCU quando ele colaborou no texto de Julio
Marcelo. Que essa divergência apareceu apenas no ano seguinte,
quando o governo entrou com recurso na Serur, Secretaria de
Recursos do tribunal de contas, depois que saiu o primeiro acordão
pela condenação do governo. “Eu fui consultado como professor da
área. […] Várias pessoas me ligam todos os dias para saber: ´D’Ávila,
o que é resultado primário?´ ´D’Ávila, esse tipo de operação tem
efeito no resultado primário?´ ´D’Ávila, esse tipo de operação
aumenta ou diminui a dívida líquida?´ Esse tipo de pergunta me é
feito por várias pessoas, por ex-alunos, por alunos atuais, por
pessoas que trabalham no Senado, na Câmara ou no TCU, que já
foram meus alunos, e que têm interesse. Eu tenho livros na área. As
pessoas me perguntam mais como professor e como fonte de
informação do que propriamente para qualquer tipo de auxílio ou
para tentar burlar qualquer processo. Isso jamais existiu e jamais
existirá. Eu não permito que isso seja feito e jamais permitirei”.
Depois dessas considerações de D´Ávila, Lewandowski encerrou a
sessão. No dia seguinte ele decidiria não anular o depoimento do
auditor por considerar o pedido intempestivo, como dissemos. Cabe
agora à defesa tomar as providências que anunciou, no devido tempo
e no devido lugar. Ainda no sábado, no seu longo depoimento no
plenário do Senado, o ex-ministro da Fazenda de Dilma Rousseff,
Nelson Barbosa, contou mais um detalhe do processo do TCU,
envolvendo Julio Marcelo. O recurso apresentado pelo governo no
TCU foi, primeiro, analisado por dois auditores da Serur. A
argumentação do governo foi aceita por eles Eles diziam que bastava
pagar os atrasos, não era questão de punir, porque aquilo não era
operação de crédito. Esse parecer foi acatado por um diretor de sub
divisão da Serur. Porém, foi rejeitado pelo chefe da secretaria. Este
afirmou textualmente: “porque caso se enquadrem como “operações
de crédito, estaremos diante de atos políticos-administrativos com
repercussão nos ilícitos penais, administrativos e civis, enquanto,
caso sejam tidos como “prestação de serviços”, estaremos diante de
mora na quitação de tais despesas. Ou seja, o chefe precisava de um

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“ilícito penal”, não de um simples atraso de pagamento pelo qual se
cobram juros de mora.
Diante disso, o ministro do TCU, Vital do Rego, demandou parecer
alternativo. Quem o fez? Exatamente o doutor Julio Marcelo.
Portanto, o parecer de Julio Marcelo substituiu o parecer da própria
Serur, ignorando os pareceres dos auditores que analisaram o
recurso em na própria divisão. Repetindo o dito que já usamos no
início desta série, do velho e sempre bem lembrado Leonel Brizola:
“No hay carne y hay pastel de carne. Algo hay”.

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