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EVOCAÇÕES DO EX-ISTIR

Autora: Maria Madalena Magnabosco

Faculdade Pitágoras – Unidade Cidade Academica – Belo Horizonte

Resumo:

A fenomenologia, enquanto um modo de acercar-se da realidade ou um modo através do


qual nos aproximamos do que pretendemos investigar, se constitui não apenas como um
modo diferente de olhar para a realidade, mas também como uma outra epistemologia
que nos permite uma compreensão do Ser. Nesse viés, a Literatura se articula com a
Fenomenologia para oferecer uma ampliação do olhar psicológico, especialmente no
âmbito daquelas vivencias que dizem respeito ao que é especificamente próprio do
humano.

O presente artigo irá utilizar a articulação Literatura – Fenomenologia para uma


compreensão mais ampla da condição humana em seu processo de estar a caminho. Para
tanto será utilizado o conceito heideggeriano do homem a caminho, o qual se descreverá
através de um olhar fenomenológico da Odisseia de Homero. Por essa direção, o
objetivo do artigo é desconstruir uma concepção psicológica positivista do homem e
devolve-lo à ontologia do Ser através da compreensão de como se coloca a caminho.

Palavras chaves: Fenomenologia; Literatura; Compreensão; Condição humana;


Ontologia do Ser.

Summary:

Phenomenology, as a way of approaching reality or a way through which we approach


what we intend to investigate, constitutes not only as a different way of looking at
reality, but also as another epistemology that allows us an understanding of the Being.
In this bias, the Literature articulates with the Phenomenology to offer an extension of
the psychological look, especially in the scope of those experiences that relate to that
which is specific of the human.

This article will use the articulation Literature - Phenomenology for a broader
understanding of the human condition in its process of being on the way. In order to do
so, the Heideggerian concept of the man on the way will be used, which will be
described through a phenomenological view of Homer's Odyssey. In this direction, the
purpose of the article is to deconstruct a positivist psychological conception of man and
to return it to the ontology of the Being through the understanding of how it is put in its
way.

Keywords: Phenomenology; Literature; Understanding; Human condition; Ontology of


Being.

Pensar a condição humana através de uma articulação Fenomenologia - Literatura é


considerar a vastidão do mundo e a idade do homem. Enquanto poeisis, a
fenomenologia literária tem uma função fundamental, não apenas de proporcionar
conhecimento, mas participar de modo singular da própria humanização do homem.

O homem, por sua constituição ontológica é ser. Entretanto, por seus próprios modos de
ser e se relacionar com e no mundo, o ser homem cuida, pela presença, pela linguagem
e temporalidade histórica, antropológica e cultural, de suas transformações em um
sempre “novo homem”.

Como modo de linguagem, a literatura é a própria história da humanidade em seus


diversos modos de ser no mundo, sendo o maior depositário de conhecimento e
experiência que a humanidade já produziu, às vezes discorrendo inclusive sobre o que
não foi ainda produzido ou sobre o que não está ainda manifesto. Nesse sentido a
literatura é a maior fonte de conhecimento do homem sobre o próprio homem, sendo
uma fenomenologia do humano em seu transcender, em um ir além dos dados da
natureza e da cultura.
Nas palavras de Montaigne “cada homem leva em si a forma inteira da condição
humana” e a condição humana em nenhum outro lugar é tão completamente revelada
como na literatura em sua articulação com a fenomenologia.

Para esse diálogo busco a compreensão da condição humana baseada nos fundamentos
de Heidegger, quando o mesmo diz que o homem está sempre a caminho e não no
caminho. Podemos nos perguntar: para que a caminho? A caminho para onde?
Certamente, o “onde” não deve ser entendido em sentido locativo apenas, mas enquanto
se relaciona a um modo peculiar de colocar-se a caminho. Podemos continuar nos
perguntando: o que está implicado na preposição “a” da expressão “a caminho” e para
onde nos conduz? Conduz-nos ao pensamento de Martin Heidegger.

Heidegger é um pensador do século XX que aprendeu a apreender e, sobretudo, a


compreender e interpretar as obras dos grandes pensadores e poetas. Soube
compreender e interpretar o que nelas havia sido omitido, o que nelas havia ficado
encoberto e, também, o que nelas havia sido esquecido. É dessa percepção que nasce
sua preocupação pela questão pelo sentido do ser e é nessa questão fundamental que se
encontra a orientação do caminhar heideggeriano. De fato, ele entrevê e vislumbra a
essência nem sempre evidente e manifesta em certas obras, ou seja, a experiência do ser
do ente.

As obras de Heidegger são trajetórias percorridas numa experiência vital e necessária.


Segundo Edenio Valle, em Psicologia e Experiencia Religiosa (2010), a palavra
experiência utilizada no alemão é uma forma peculiar do conhecimento que se origina
não do pensamento discursivo e sim da recepção imediata de uma impressão. Possui
extraordinário senso de evidencia, devido ao caráter mais imediato de irresistível
presença do que é experimentado. Está ligada à uma concepção de viajar.

Nessa direção do experienciar, é paradigmática a epígrafe que Heidegger mesmo


escolheu para sua “edição integral”. Nela consta: “Wege – nicht Werke!”, ou seja,
“Caminhos – não obras!”

Igualmente orientador é o modo como a palavra caminho aparece articulada em vários


títulos de livros importantes publicados por Heidegger, entre os quais vale à pena
mencionar: Caminhos de floresta (1927 a 1946), Marcas do caminho (1935 a 1946), O
caminho do campo (de 1949), A caminho da linguagem (1950 a 1959), e o texto
autobiográfico: Meu caminho para a fenomenologia. (KIRCHNER, Renato Theoria -
Revista Eletrônica de Filosofia)

Assim, segundo Heidegger, a caminho, o homem não deve nem pode abdicar da tarefa
primeira que é vir a ser quem ele propriamente é a cada nova possibilidade, isto é, a
todo novo instante que se apresenta gratuitamente em sua existência. Exemplificando,
podemos perceber tal condição em composições poéticas como nas de Fernando Pessoa.
Do poema de Alberto Caeiro, “O guardador de rebanhos” (1911-1912), o poeta lusitano
compôs:

O meu olhar é nítido como um girassol.

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de vez em quando olhando para trás...

E o que eu vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem...

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras...

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo...

Seguindo a vertente de Fernando Pessoa, nesse constante nascer para a eterna novidade
do mundo, refletirei sobre um escritor que também se ocupou em des-velar os modos de
ser do homem e suas condições de possibilidades nessa incessante tarefa de ser presença
e desvelar-se, a qual nem sempre é fácil, mas fundante da condição de ser-no-mundo.
Ele é: Homero em sua Odisséia. Homero apresenta vicissitudes da existência que levam
o homem a se colocar no tempo espaço pela condição de ser um viator, aquele que
experiência estar a caminho.
Enquanto presentação da condição humana, a literatura e seu desvelar fenomenológico
do humano é uma aventura que nasce de um sentimento de inconformismo e que
responde ao desejo de conquista. O pensamento é seduzido pela colonização de
territórios, a superação de obstáculos, a conquista de certas planícies. Por isso, não é
estranho que a atividade reflexiva do ser humano se descreva muitas vezes através de
uma série de metáforas que remetem ao tema da viagem e à figura do viajante.

Nessa metáfora, o viajante converte sua navegação numa experiência filosófica


enquanto a conquista é muito mais do que a descoberta de uma paisagem selvagem e se
transforma na ocasião para encontrar a própria espessura de si próprio. A aventura,
então, não termina na abertura de um novo território, mas no fechamento de um olhar
sobre nosso próprio ser.

O tema da viagem e a figura do viajante é constante nesse escritor como metáfora de


uma busca de sentido, uma luta por uma unidade pressentida como possível para além
das oposições que a cotidianeidade da cultura ocidental nos formata. Viajar é
espacialidade e temporalidade de uma busca ontológica, sendo o lugar e o tempo das
questões fundamentais sobre quem é o Homem.

Itaca em Homero é a metáfora do mundo e o mundo o lugar de aprendizagem onde a


viagem é possível.

O homem pode encetar sua busca, ainda que nada garanta a chegada, o importante é o
próprio viajar, o por-se a caminho. A viagem, embora sempre possível não é necessária,
nem todos a realizam. A busca é pessoal, cada um realiza à sua maneira, dentro de seus
próprios limites, através de seus próprios caminhos e sempre dentro de seu próprio
mundo particular, no seu aí. (BARROS, 1996, p. 61-62)

Assim, à medida que se faz, através dos acontecimentos aparentemente comuns da vida,
o homem busca seu próprio poder-ser que o leva a questionar o mundo, a vida e a si
mesmo, como possibilidade de compreensão que ele existencialmente é.

Existindo como linguagem e possibilidade de compreensão é da condição do homem a


procura pelo ser do ente, a busca por cumprir seu destino essencial como viajante. Ítaca,
é ontologia – lugar da procura do Ser – é poesia – espaço da palavra inaugural, sendo a
morada do homem humano. São lugares da busca, da errancia, da procura do Ser e da
criação artística.
É isto o que nos evidencia Homero em sua Odisséia, quando do regresso de Ulisses a
Ítaca, depois de uma travessia que o levou fora da polis em nome da honra e da glória.
O herói que regressa à casa descobriu o caráter inexorável da natureza, o abismo que
ameaça destruir a cidade a partir de fora, o arrebatador canto das sereias. E nessas
condições Ulisses volta à sua humanidade.

Segundo Junito Souza Brandão (1987) na Odisséia de Homero, Ulisses é um herói que
nasceu na ilha de Ítaca, filho do rei Laerte, que lhe legou o reino, e Anticléia. O jovem
foi educado, como outros nobres, pelo Centauro Quíron e passou pelas provas
iniciáticas para tornar-se rei. Depois de pretender sem sucesso a mão de Helena, cujo
posterior rapto pelo tebano Páris desencadeou a guerra de Tróia, Ulisses casou-se com
Penélope. A princípio resistiu a participar da expedição dos aqueus contra Tróia, mas
acabou por empreender a viagem e se distinguiu no desenrolar da contenda pela valentia
e prudência.

A ele deveu-se, segundo relatos posteriores à Ilíada, o ardil do cavalo de madeira que
permitiu aos gregos penetrar em Tróia e obter a vitória. Terminado o conflito, Ulisses
iniciou o regresso a Ítaca, mas um temporal afastou-o com suas naves da frota.
Começaram assim os vinte anos de aventuras pelo Mediterrâneo que constitui o
argumento da Odisséia.

Durante esse tempo, protegido por Atena e perseguido por Posêidon, cujo filho, o
Ciclope Polifemo, o herói havia cegado, conheceu incontáveis lugares e personagens: a
terra dos lotófagos, na África setentrional, e a dos lestrigões, no sul da Itália; as ilhas de
Éolo; a feiticeira Circe; e o próprio Hades ou reino dos mortos.

Ulisses perdeu todos os companheiros e sobreviveu graças a sua sagacidade. Retido


vários anos pela ninfa Calipso, o herói pôde enfim retornar a Ítaca disfarçado de
mendigo. Revelou sua identidade ao filho Telêmaco e, depois de matar os pretendentes
à mão de Penélope, recuperou o reino, momento em que conclui a Odisséia.

Nesse mito o que interessa é a viagem de retorno de Ulisses, na qual em todas as


provações que enfrenta ao recusar a lótus (flor do esquecimento, pelo inebriamento que
provoca), ao enfrentar os cíclopes (monstros degradantes do inferno), ao não cair nas
tentações de Circe para entregar-se ao instinto, e ao enfrentar o deus da morte, ele
metaforicamente faz sua passagem da natureza à cultura, do instinto à sociedade, do
ente ao ser.

As experiências que realiza nessas provas são momentos onde ele sai de um estado
indiferenciado para continuar a viagem para a subjetividade humana. Isso pelo simples
fato de recusar a situação de puro prazer idílico, que é a situação de indiferenciação, do
mítico não separado da natureza, e ter aceitado o processo de sofrimento ao recusar a
fusão em um estado de felicidade inorgânico. Ele renuncia uma escravização ao deleite
da indiferenciada alienação para transcender-se pela linguagem e significação de ser-
no-mundo.

Entretanto, esses atos e experiências o entristeceram, pois ao retornar à Ítaca Ulisses


percebe que sua terra natal transformou-se em terra estranha. Ele a reencontrou onde a
havia deixado, mas o Ulisses de outrora ele não encontrará mais. Isso porque o
verdadeiro lar para Ulisses era natureza e seu retorno o levou a vivenciar o vazio e a
ausência. A nostalgia de Ulisses é o “sentimento de quem não tem morada, em nenhuma
parte de si mesmo encontra repouso” (MATOS, Olgaria, 1988)

A viagem no espaço é uma viagem no tempo, e o ponto de chegada, o ponto fixo


ansiado, não existe, deixando-nos à deriva. É no tempo da consciência de ser que
Ulisses muda, ou seja, que ele desvela o ser do ente e se torna outro para ele mesmo.
Sua nostalgia é típica dos emudecimentos que vivenciamos quando nos estranhamos,
quando não nos reconhecemos em nossos habituais modos de viver e ainda não sabemos
como inaugurar outros olhares, outros fazeres e novas linguagens que transcendam
significados já conhecidos. Nesses momentos resta-nos apenas a impossibilidade de
realizarmos a ânsia por um fim, por uma destinação a última, por nos percebermos, nos
dizeres de Heidegger, como clareira, abertura, vivenciando a angústia própria desse
processo de desconstrução de uma verdade.

Essa desconstrução acontece com o desvelar do ser do ente e não tem nada a ver com a
perda do estado de inocência, com o pecado original, com o paraíso. Pensar assim
significaria pressupor que exista uma verdade e uma origem que se situam no exterior
da temporalidade e do mundo, nos quais o ente é lançado. Na concepção da condição
humana de ser-no-mundo, a verdade não é procurada, porque a verdade não é
representável. Só se pode experimentá-la na claridade quando ela nos vem ao encontro,
tal como aconteceu a Ulisses quando ele não encontra mais sossego e repouso.
Com toda sua estratégia e astucia da razão, Ulisses não pode proteger-se do
experimentar na corporeidade, espacialidade, temporalidade, a claridade de ser e
desvelar-se em um outro Ulisses, que conheceu a angústia, o ser-para-a-morte, a
finitude de toda condição humana.

Uma versão moderna do retorno de Ulisses, a qual revela fenomenologicamente a


condição humana como uma viagem para o ser, nos é dada também pelo poeta grego
Konstantinos Kaváfis (Alexandria, 1863)

Se partires um dia rumo a Ítaca,

faz votos de que o caminho seja longo,

repleto de aventuras, repleto de saber.

Nem Lestrigões nem os Ciclopes

nem o colérico Posídon te intimidem;

eles no teu caminho jamais encontrarás

se altivo for teu pensamento,

se sutil emoção teu corpo e teu espírito tocar.

Nem Lestrigões nem os Ciclopes,

nem o bravio Posídon hás de ver,

se tu mesmo não os levares dentro da alma,

se tua alma não os puser diante de ti.

Faz votos de que o caminho seja longo.

Numerosas serão as manhãs de verão nas quais,

com que prazer, com que alegria,

tu hás de entrar pela primeira vez porto

para correr as lojas dos fenícios e

belas mercancias adquirir: madrepérolas, corais,

âmbares, ébanos, e perfumes sensuais de toda espécie,

quanto houver de aromas deleitosos.

A muitas cidades do Egito peregrina para aprender,


para aprender dos doutos.

Tem todo o tempo Ítaca na mente.

Estás predestinado a ali chegar.

Mas não apresses a viagem nunca.

Melhor muitos anos levares de jornada e fundares na ilha velho enfim, rico de quanto
ganhaste no caminho,

sem esperar riquezas que Ítaca te desse.

Uma bela viagem deu-te Ítaca.

Sem ela não te ponhas a caminho.

Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.

Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.

Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,

E agora sabes o que significam Ítacas (KAVÁFIS, 2006, p. 146-147)

Na leitura do poema, percebemos que o autor dirige-se ao leitor para falar de uma
viagem simbólica. Esta viagem pode ser compreendida como passagem de um estado a
outro. Parte-se de um dado estado de espírito e vivência existencial em que os desafios,
aventuras e aprendizagens múltiplas ocorrem ao longo desta estrada para se chegar a um
outro nível de vivência profunda e de significados redimensionados. É a questão do
sentido da vida. A vida que se questiona, procurando ultrapassar, transcender as
aparências imediatas e buscar a dimensão marcante do ser humano.

Nesse sentido, a partir da literatura que desvela uma fenomenologia da condição


humana como Ser a caminho, podemos pensar o processo psicoterápico como a viagem
de Ulisses. Praticar a psicoterapia através de uma perspectiva fenomenológico
existencial é empreender uma viagem sem garantias positivas de sucessos, de curas, de
objetivos finais. O motivo é o caminho, a jornada, a viagem enquanto uma
ressignificação das paisagens que constroem a subjetividade humana. Nessa
ressignificação, a articulação Fenomenologia – Literatura nos possibilita habitar o
espaço-tempo da existência com outros verbos, outras metáforas que conferem tons
diversos às vivencias aprisionadas na positividade dos fatos meramente psicológicos do
homem que sofre.
REFERENCIAS:

BLOOM, Harold. Como e por que ler. São Paulo: Objetiva, 2000

BRANDÃO, Junito Souza . Mitologia Grega III, São Paulo: Vozes, 1987

HEIDEGGER IN: Da experiência do pensar, Porto Alegre, Globo, 1969, p. 39

KAVÁFIS, Konstantinus. Poemas. São Paulo: Nova Fronteira, 2006

KIRCHNER, Renato Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia. Disponível em:


www.theoria.com.br/edicao0109/A_Caminho_do_Pensamento_e_da_Poesia.

MATOS, Olgaria. Sentidos da paixão, São Paulo: Cia das Letras,1988.

NETO, Anselmo. Professor de Língua Italiana e Literatura Comparada na Faculdade de


Letras/UFG.

VALLE Edenio, Psicologia e Experiencia Religiosa, São Paulo: Loyolas. 2010

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