Você está na página 1de 8

ÊXODO

A Aliança e o Povo de Deus


2. O POVO DE ISRAEL E MOISÉS

Nesse clima de perseguição, nasce um menino da Tribo de Levi que ficou


escondido enquanto pôde e até quando o colocaram num cesto calafetado
e o deixaram como que à deriva no Nilo, bem no local onde a filha do Faraó
se banhava. Encontrando-o, adotou-o e o entregou, "sem saber", para a
própria mãe o amamentar e o devolver quando desmamasse (Ex 1,1-10).
Recebe o nome de Moisés (= salvo das águas) e foi criado na corte
faraônica após desmamado, fato comprovado pela tradição israelita (Ex
11,3 / At 7,21), mas junto com o leite materno a mãe o "amamentou" com a
sua origem, história e nacionalidade, e, principalmente, com a fé no Deus
de Abraão, o Deus da Promessa e da Aliança:

"Pela fé Moisés, logo ao nascer, foi escondido por seus pais


durante três meses, porque viram que o menino era formoso; e
não temeram o decreto do rei" (Hb 11,23)

Moisés, da "Tribo de Levi", muito embora mal vista pelo pai Jacó, com a
destituição da primogenitura (Gn 49,5-7), é quem vai comandar a libertação
de Israel das garras dos egípcios, conduzi-los até a Terra Prometida e
completar assim a Promessa feita a Abraão (Gn 12,7; 13,15; 15,18; 17,8).
Outra tradição israelita viu esse tempo de Moisés com mais profundidade
que a narrativa em tela, oferecendo um pouco mais de detalhes, fruto de
outra fonte:

"Enquanto se aproximava o tempo da promessa que Deus tinha


feito a Abraão, o povo crescia e se multiplicava no Egito; até que
se levantou ali outro rei, que não tinha conhecido José. Usando
esse de astúcia contra a nossa raça, maltratou a nossos pais, ao
ponto de fazê-los enjeitar seus filhos, para que não vivessem.
Nesse tempo nasceu Moisés, e era mui formoso, e foi criado três
meses em casa de seu pai. Sendo ele enjeitado, a filha de Faraó o
recolheu e o criou como seu próprio filho. Assim Moisés foi
instruído em toda a sabedoria dos egípcios, e era poderoso em
palavras e obras" (At 7,17-22).

Deus não se sujeita às convenções dos homens, mesmo se por vezes elas
se integrem em seus desígnios, e fará sempre o que for preciso para atingi-
los, tal como dirá a Moisés: "...terei misericórdia de quem eu tiver
misericórdia, e me compadecerei de quem me compadecer" (Ex 33,19), e o
escolhe. Moisés sacrifica todo o seu conforto na corte faraônica e se
esforça para se impor como líder israelita:

"Pela fé Moisés, sendo já homem, recusou ser chamado filho da


filha de Faraó, escolhendo antes ser maltratado com o povo de
Deus do que ter por algum tempo o gozo do pecado, tendo por
maiores riquezas o opróbrio de Cristo do que os tesouros do Egito;
porque tinha em vista a recompensa. Pela fé deixou o Egito, não
temendo a ira do rei; porque ficou firme, como quem vê aquele
que é invisível (Hb 11,24-27).

A formação dele na corte faraônica facultou-lhe um conhecimento à altura


de sua missão bem como a familiaridade com os inimigos de seu povo,
propiciando-lhe a visão necessária para a libertação dele, para a satisfação
e cumprimento da Aliança de Abraão. Os homens sempre se opondo, por
causa do pecado, aos Planos de Deus: recusaram a liderança de Moisés,
logicamente por não se encaixar na primogenitura dada por Jacó a outra
tribo que não a de Levi. Por isso não foi aceito como líder pelos israelitas,
apesar de sua demonstração de lealdade, arriscando a sua sorte por causa
de um irmão de raça que sofria nas mãos do capataz opressor. Essa
mesma prova foi-lhes dada também por ter abandonado a sua posição de
príncipe, adotado que foi pela filha do Faraó, possível candidato à sucessão
do trono. Envolve-se tanto que, tendo morto um capataz egípcio, acaba por
fugir para a Terra de Madiã (Ex 2,11-15), junto de sua parentela (Gn 25,2),
perseguido pelo Faraó que resolveu matá-lo.:

"Assim Moisés foi instruído em toda a sabedoria dos egípcios, e


era poderoso em palavras e obras. Ora, quando ele completou
quarenta anos, veio-lhe ao coração visitar seus irmãos, os filhos de
Israel. E vendo um deles sofrer injustamente, defendeu-o, e
vingou o oprimido, matando o egípcio. Cuidava que seus irmãos
entenderiam que por mão dele Deus lhes havia de dar a liberdade;
mas eles não entenderam. No dia seguinte apareceu-lhes quando
brigavam, e quis levá-los à paz, dizendo: 'Homens, sois irmãos; por
que vos maltratais um ao outro?' Mas o que fazia injustiça ao seu
próximo o repeliu, dizendo: 'Quem te constituiu senhor e juiz sobre
nós? Acaso queres tu matar-me, como ontem mataste o egípcio?'
A esta palavra fugiu Moisés, e tornou-se peregrino na terra de
Madiã, onde gerou dois filhos" (At 7,22-29).

Ai, junto a um poço encontra, tal como aconteceu com Isaac e Jacó, as
filhas de um sacerdote, defendendo-as e dando de beber ao rebanho, pelo
que é acolhido e futuramente se casa com uma delas, que lhe deu um filho
Gerson (Ex 16,22) e outro Eliezer (Ex 18,4). Moisés, em virtude da sua
opção, também passa pelas mesmas vicissitudes por que passaram os
Patriarcas, por aquele amadurecer que lhe vem pelo sofrimento, até que
Deus se lembre de sua Promessa e da Aliança:

"Decorrido muito tempo, morreu o rei do Egito; e os filhos de Israel


gemiam debaixo da servidão, clamaram, e subiu a Deus o seu
clamor por causa da servidão. Então Deus, ouvindo-lhes os
gemidos, lembrou-se da sua Aliança com Abraão, com Isaac
e com Jacó. E viu Deus os filhos de Israel, e Deus os conheceu"
(Ex 2,23-25).

Moisés apascentava o rebanho de seu sogro, atingindo o Monte Sinai


(também conhecido por Monte Horeb) percebe a "sarça que ardia em
chamas, mas não se consumia", mantendo-se com o seu verdor apesar da
voracidade do fogo. Aproxima-se para observar melhor o fenômeno (Ex 3,2-
3), quando então recebe o chamado de Deus para a missão de libertar o
Povo de Deus:

"E vendo o Senhor que ele se virara para ver, chamou-o do meio
da sarça, e disse: Moisés, Moisés! Respondeu ele: Eis-me aqui.
Prosseguiu Deus: Não te chegues para cá; tira os sapatos dos pés;
porque o lugar em que tu estás é terra santa. Disse mais: Eu sou
o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, e o
Deus de Jacó. E Moisés escondeu o rosto, porque temeu olhar
para Deus. Então disse o Senhor: Com efeito tenho visto a aflição
do meu povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor por
causa dos seus opressores, porque conheço os seus sofrimentos; e
desci para o livrar da mão dos egípcios, e para o fazer subir
daquela terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que
mana leite e mel... E agora, eis que o clamor dos filhos de Israel é
vindo a mim; e também tenho visto a opressão com que os
egípcios os oprimem. Agora, pois, vem e eu te enviarei a Faraó,
para que tires do Egito o meu povo, os filhos de Israel" (Ex 3,4-
10).

Mas, tal como acontece geralmente com o "eleito", a primeira reação de


Moisés foi o temor de sua missão junto de Deus. Assim é. Já era
perseguido pela idéia de libertar o seu povo e agora Deus aparece e a
determina. Assusta-se mais ainda pelo compromisso com Deus,
incompreensível as mais das vezes ao Homem, e aparece aquele temor em
face da missão específica, oriundo do sentimento de impotência pertinente
à dimensão necessária ao seu cumprimento. Ao perceber a envergadura da
Obra Divina a que é convocado, o eleito treme e teme. Há uma enorme
provação, numa difícil e dura fase da vida, um período de dificuldades em
que sente tudo desmoronar dentro e em torno de si, restando-lhe apenas
Deus pela fé, rejeitado que fora pelos seus irmãos de raça e em fuga por ter
"traído" a corte do Faraó. É como um náufrago, sozinho em alto mar e em
plena escuridão noturna, noite tão negra que nada se percebe a não ser um
tênue luz de esperança a lhe apontar uma única e só direção: o chamado
de Deus. É o ponto culminante e crucial da fé. Só lhe resta esta fé num
lance de consciência a lhe manter viva a esperança em um ideal há muito
alimentado e recusado. Começa então sua caminhada no sentido de Deus
e então se equilibra, se salva e se liberta de tudo. Só quem é livre pode
desempenhar uma missão que nasce na intimidade de Deus. Só quem é
livre pode viver em comunhão e unidade com Deus. Deus só entra num
coração livre e vazio de tudo, estabelecendo com o seu eleito um diálogo
íntimo em que se dá a conhecer por inteiro, pelo que até informa seu
próprio nome que o distingue e se dá a conhecer:

" Então Moisés disse a Deus: Quem sou eu, para que vá a Faraó e
tire do Egito os filhos de Israel? Respondeu-lhe Deus: Certamente
eu estarei contigo; e isto te será por sinal de que eu te
enviei: Quando houveres tirado do Egito o meu povo,
servireis a Deus neste monte. Então disse Moisés a Deus: Eis
que quando eu for aos filhos de Israel, e lhes disser: O Deus de
vossos pais me enviou a vós; e eles me perguntarem: Qual é o seu
nome? Que lhes direi? Respondeu Deus a Moisés: EU SOU
AQUELE QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel:
EU SOU me enviou a vós. E Deus disse mais a Moisés: Assim dirás
aos filhos de Israel: O Senhor, o Deus de vossos pais, o Deus
de Abraão, o Deus de Isaac, e o Deus de Jacó, me enviou a
vós; este é o meu nome eternamente, e este é o meu memorial de
geração em geração" (Ex 3,11-15).

"Isto te será por sinal de que eu te enviei: Quando houveres tirado do Egito
o meu povo, servireis a Deus neste monte", foi o sinal dado por Deus a se
realizar no futuro, aceito absurdamente por Moisés, a não ser que se
explique por um ato de profunda fé, cuja simples afirmação de Deus,
"certamente eu estarei contigo", lhe foi suficiente. A mesma fé de Abraão,
Isaac e Jacó prossegue seu caminho na realização da Aliança. Por outro
lado, e da mesma forma, o "...mais numeroso e mais forte do que nós" (Ex
1,9), tornou-se temido pelo Faraó não apenas em virtude do número de
pessoas, mas sobretudo do modo particular, especial e peculiar da fé, da
vida em comum e da unidade de seus membros, no que muito se distinguia.
Realmente. É um povo já organizado, consciente de sua unidade, tinha até
mesmo chefes distintos daqueles do Egito, a quem obedecia, só lhe
faltando a independência oficial para se desmembrar:

" Vai, ajunta os anciãos de Israel e dize-lhes: O Senhor, o Deus de


vossos pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, apareceu-me,
dizendo: certamente vos tenho visitado e visto o que vos tem sido
feito no Egito; e tenho dito: Far-vos-ei subir da aflição(...) para uma
terra que mana leite e mel. E ouvirão a tua voz..." (Ex 3,16-18a).
Os Filhos de Jacó tinham uma fé comum, uma única fé, a fé dos pais, criam
e esperavam num único e mesmo Senhor, "o Deus de Abraão, de Isaac e
de Jacó", a quem cultuavam e eram fiéis, fruto de uma tradição oral de
quatrocentos anos, mantida viva e fiel (Gn 15,13). Os hebreus mantiveram
oralmente a fé dos antepassados, vivendo em terra estranha e alheia,
peregrinos. Não sendo assim não teria sentido dizer-lhes, nem ser-se-ia
compreendido, que se tratava d"o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão,
o Deus de Isaac, o Deus de Jacó":

" E ouvirão a tua voz; e ireis, tu e os anciãos de Israel, ao rei do


Egito, e dir-lhe-eis: O Senhor, o Deus dos hebreus, encontrou-nos.
Agora, pois, deixa-nos ir caminho de três dias para o deserto, para
que ofereçamos sacrifícios ao Senhor nosso Deus" (Ex 3,18).

Conheciam a própria história e tinham confiança em seu futuro, aguardando


a própria independência, único fator latente para, liberto, tornar-se em um
povo, o Povo da Aliança de Abraão, herdeiros da Terra Prometida:

"Então disse o Senhor a Abrão: Sabe com certeza que a tua


descendência será peregrina em terra alheia, e será reduzida à
escravidão, e será afligida por quatrocentos anos; sabe também
que eu julgarei a nação a qual ela tem de servir; e depois sairá
com muitos bens" (Gn 15,13-14).

Juntamente com a Promessa e a Aliança, isso estava mais que enraizado


em sua própria índole e consciência, e integrou-se à sua cultura pela
esperança que depositavam em Deus, causa de sua docilidade e paciência
em toda a servidão que sofriam. Acreditavam que libertá-los-ia ("iria fazê-los
subir da aflição do Egito (...) para uma terra que mana leite e mel" - Ex
3,17), motivo porque apesar de perseguidos e oprimidos sentiam-se
totalmente livres, vivendo "em figura" a "gloriosa liberdade dos Filhos de
Deus" (Rm 8,21). Liberdade que se traduz mais no sentido da vinculação do
Homem ao seu Criador que uma expressão do direito de praticar
soberanamente determinados atos. Quando o Homem se vincula a Deus é
livre, só se submetendo a algo enquanto essa submissão não perturba
aquela comunhão. Quando essa liberdade se apresenta, em um dos grupos
humanos, homogêneo e organizado torna-se um virtual perigo a ameaçar a
tranqüilidade e a segurança de todos os outros. Os hebreus no Egito
chegaram a ameaçar até a própria segurança nacional, pela unidade que
deles emanava, unidade de fé e unidade de esperança, já que se temia a
sua união com os inimigos (Ex 1,10). Constituíram-se em um povo que se
tornou numeroso, poderoso e livre, eis que não se submetiam aos cultos
dos egípcios nem aos seus costumes pagãos. E, não aceitando o culto
idólatra deles, se tornaram incômodos e os constrangiam, cada vez mais se
separavam e já se distinguiam em dois povos distintos. Quando a fé ou o
culto não é comum não pode haver unidade histórica, nem nacional, e a
conseqüência é o antagonismo mútuo, donde a perseguição ensejada. Mais
do que a opressão física e psicológica a que os submetiam, sofriam outra
os israelitas, bem caracterizada no pedido a ser feito ao faraó:

"Agora, pois, deixa-nos ir caminho de três dias para o deserto,


para que ofereçamos sacrifícios ao Senhor nosso Deus" (Ex 3,18).

É que não podiam oferecer seus sacrifícios, pois as vítimas que ofereciam a
Deus eram deuses para os egípcios, o que lhes era "abominável", ofensivo
e ultrajante, pois que adoravam o boi, o carneiro e outros animais, imolados
pelos israelitas:

" Então chamou Faraó a Moisés e a Aarão, e disse: Ide, e oferecei


sacrifícios ao vosso Deus nesta terra. Respondeu Moisés: Não
convém que assim se faça, porque é abominação aos egípcios o
que havemos de oferecer ao Senhor nosso Deus. Sacrificando nós
a abominação dos egípcios perante os seus olhos, não nos
apedrejarão eles? Havemos de ir caminho de três dias ao deserto,
para que ofereçamos sacrifícios ao Senhor nosso Deus, como ele
nos ordenar" (Ex 8,21-23).

"Sacrificando nós a abominação dos egípcios perante os seus olhos, não


nos apedrejarão eles?" Ai está o fundamento de todo o antagonismo entre
ambos, da perseguição encetada pelos egípcios e da opressão sofrida
pelos israelitas: a liberdade de culto traduzida na impossibilidade de
oferecimento de sacrifícios, centro gravitacional do culto desde os
Patriarcas, torna-se em uma "a abominação dos egípcios". Ocorria ainda
neste particular até mesmo um natural ciúme do Faraó, tido e havido entre
eles como um deus ou o filho de um deus, bem como a necessidade
cultural de se demonstrar qual dos deuses era mais poderoso, se bem que
para o israelita a sua fé já fora comprovadamente demonstrada por uma
esperança alicerçada na paz e na concórdia, pela própria submissão há
tanto tempo sofrendo. Por isso Deus avisa de antemão a dureza da missão
iniciada e da vitória final, deixando claro ser Ele o principal protagonista da
luta a ser travada. Não seria fácil a libertação:

" Eu sei, porém, que o rei do Egito não vos deixará ir, a não ser por
uma forte mão. Portanto estenderei a minha mão, e ferirei o Egito
com todas as minhas maravilhas que farei no meio dele. Depois
vos deixará ir. E eu darei graça a este povo aos olhos dos egípcios;
e acontecerá que, quando sairdes, não saireis vazios. Porque cada
mulher pedirá à sua vizinha e à sua hóspede jóias de prata e jóias
de ouro, bem como vestidos, os quais poreis sobre vossos filhos e
sobre vossas filhas; assim despojareis os egípcios" (Ex 3,19-22).
Este final "...despojareis os egípcios", a referência ao "exército" de Israel
(Ex 6,26; 7,4; 12,36.51), bem como as "... jóias de prata e jóias de ouro..."
que servirão para a confecção do "Bezerro de Ouro" (Ex 32,2-4),
provavelmente do tipo daqueles "ídolos" que Raquel tirou de seu pai (Gn
31,19.30c.32.34s) representando "deuses" egípcios, insinuam que se
tratava de uma "guerra santa", pois, não fora assim não seriam "despojos".
Moisés resiste e apesar dos sinais que Deus lhe oferece para fazer e da
vara que lhe dá (Ex 4,17) não adquire coragem (Ex 4,1-10) e é nessa
ocasião que aparece pela primeira vez na Bíblia a função de um "profeta",
cujo significado é por demais deturpado pela deformação que lhe foi
impressa de "ser aquele que é capaz de fazer vaticínios ou previsões
dos acontecimentos futuros", mas não é assim. A língua portuguesa tem
uma palavra que pode auxiliar a compreender etimologicamente o
significado de "pro-feta". É a palavra "pro-nome" que significa "no lugar do
nome", isto é, a palavra que se usa em lugar do nome de uma pessoa: eu,
ele, nós etc.. Dentro dessa mesma estrutura "pro-feta" significa "o que fala
('feta' em grego) no lugar de outro". Moisés tinha razão de ficar temeroso,
"pesado de boca e pesado de língua", por ter de convencer tanto os seus
conterrâneos que o haviam "traído" (Ex 11-15 / At 7,23-25) e a corte
faraônica donde saíra, e "que traiu". É natural que assim se sinta, pelo que
protesta veementemente e insiste com Deus, resistindo, e dessa atitude
transparece o significado de "profeta" quando lhe é afirmado que seria
Deus para Aarão, em cuja boca poria as palavras para ele dizer:

"Então disse Moisés ao Senhor: Ah, Senhor! eu não sou eloqüente,


nunca o fui, nem depois que falaste ao teu servo; porque sou
pesado de boca e pesado de língua. (...) Então se acendeu contra
Moisés a ira do Senhor, e disse ele: Não é Aarão, o levita, teu
irmão? eu sei que ele pode falar bem. (...) Tu, pois, lhe falarás, e
porás as palavras na sua boca; e eu serei com a tua boca e
com a dele, e vos ensinarei o que haveis de fazer. E ele
falará por ti ao povo; assim e será a tua boca, e tu serás
para ele Deus" (Ex 4,10-16).

Mais claro ainda, em outra narrativa do mesmo fato:

"Então disse o Senhor a Moisés: Eis que te tenho posto como


Deus a Faraó, e Aarão, teu irmão, será o teu profeta. Tu
falarás tudo o que eu te mandar; e Aarão, teu irmão, falará
a Faraó, que deixe ir os filhos de Israel da sua terra" (Ex 7,1-2).

"E ele falará por ti ao povo; assim ele será a tua boca, e tu serás para ele
Deus" (Ex 4,16) e "Aarão, teu irmão, será o teu profeta. Tu falarás tudo o
que eu te mandar; e Aarão, teu irmão, falará a Faraó (Ex 7,1-2). Basta a
leitura dos trechos acima transcritos para se perceber que "profeta é a boca
de Deus", "aquele que fala o que Deus coloca na sua boca" e não aquele
que faz vaticínios ou previsões de futuro. Como para Deus não há tempo,
as palavras que coloca na boca do profeta são sempre atuais, sempre se
realizam, parecendo que fez um vaticínio. Mas, é profeta porque fala aquilo,
e só aquilo, que Deus o manda falar, só por isso. Daí porque Aarão era o
profeta de Moisés, falando o que lhe determinava e Moisés funcionara
como deus para ele, colocando na sua boca o que deveria dizer. Assim
convencido e municiado com a "Vara de Deus" (Ex 4,17.20), Moisés parte
de Madiã:

"Tomarás, pois, na tua mão esta vara, com que hás de fazer os
sinais. (...) Disse também o Senhor a Moisés em Madiã: Vai, volta
para o Egito; porque morreram todos os que procuravam tirar-te a
vida. Tomou, pois, Moisés sua mulher e seus filhos, e os fez montar
num jumento e tornou à terra do Egito; e Moisés levou a vara de
Deus na sua mão" (Ex 4,17-20).

"...volta (...) porque morreram todos os que procuravam tirar... a vida" - esta
frase servirá de modelo a outra que será dita muitos séculos depois,
"cumprindo" o que aqui se "configurava" - José no Egito com o Menino
Jesus, fugindo de Herodes ouvirá a mesma conotação (cfr. Mt 2,20).
Mateus usará para mostrar com seu Evangelho, Jesus como o Moisés
prometido (Dt 18,15), já que José, parafraseando, "tomou, pois, ...sua
mulher e seu filho, e os fez montar num jumento e retornou à terra..." (cfr.
Mt 2,21).

Moisés parte. No caminho acontece algo misterioso, daqueles mistérios da


Escritura que dependem de um conhecimento da cultura do tempo e que se
perdeu. É o episódio da circuncisão do filho de Moisés por sua mulher
Séfora, cujo desate é incompreensível (Ex 4,24-26), parecendo que por não
ter sido ainda circuncidado Gérson, seu filho, Deus ameaçou tirar-lhe a
vida. Tudo indica porém que o casal se separa por causa da missão de
Moisés e o ritual praticado é sugerido como um compromisso de fidelidade
entre ambos, feito com o sangue do prepúcio do próprio filho, justificando
as palavras então ditas de que "tu és para mim um esposo de sangue",
uma vez que seria "devolvida pelo sogro com seus dois filhos", Gérson e
Eliezer, tempos depois (Ex 18,2-5). A sua importância ritual para a missão
de Moisés ficou destacada por sua inclusão nesse ponto da narrativa, "no
caminho" (Ex 4,24) e antes de iniciá-la, trecho ainda de interpretação difícil,
prevalecendo o critério da circuncisão do filho como indispensável perante
Deus e de garantia, pelo sangue, do reencontro, pela separação temporária
que ocorria de sua família.

Você também pode gostar