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um

Na
conto de

tal
© China Miéville, 2010
© da tradução: Fábio Fernandes, 2014
© das ilustrações: Odyr, 2014
© desta edição: Boitempo, 2018
Traduzido do original em inglês: 'Tis the Season
(Londres, Pan Books, 2010)
Publicado originalmente em português pelo caderno
“Ilustríssima”, da Folha de S.Paulo, em 21/12/2014.
A Boitempo agradece ao autor, ao jornal, ao tradutor
e ao ilustrador pela autorização para esta edição.

Exemplar de cortesia. É vedada a comercialização


deste livreto.

Edição: Kim Doria


Composição: Mayra Oglouyan
Impressão: Rettec e Sumago
Acabamento: Rettec

chinamieville.com.br ChinaMievilleBr tvboitempo

@boitempo @editoraboitempo +55 11 99223-8282


Um conto de Natal
China Miéville
Podem me chamar de infantiloide, mas eu adoro toda essa bobajada — a neve, as
árvores, os enfeites, o peru. Adoro presentes. Adoro canções natalinas e músicas
bregas. Eu simplesmente adoro o Natal®.
Foi por isso que fiquei tão empolgado. E não só por mim mas por Annie. Aylsa,
sua mãe, disse que não entendia para que tanto reboliço e por que eu era senti-
mental, mas eu sabia que Annie mal podia esperar. Ela podia ter 14 anos, mas, em
se tratando disso, eu tinha certeza de que ela ainda era uma garotinha, sonhando
com meias na chaminé. Sempre que é a minha vez de ficar com Annie — eu e
Aylsa temos alternado desde o divórcio — dou o melhor de mim no dia 25.
Confesso que Aylsa fez com que eu me sentisse mal. Fiquei com muito medo
de Annie se decepcionar. Então nem dá pra dizer como fiquei maravilhado
ao descobrir que pela primeira vez na vida eu ia conseguir fazer uma comemo-
ração adequada.
Não me entendam mal. Eu não tenho ações da NatividadeCo, e nem condições
de pagar uma licença de usuário para um dia, então não poderia fazer uma festa
legalizada. Por algum tempo pensei em comprar de um dos concorrentes mais
baratos tipo a XmasTym, ou um derivado de uma não especialista, como a Coca-
Crissmas, mas a ideia de fazer um Natal de pobre era deprimente demais. Eu não
poderia usar muitas das coisas tradicionais e, se você não pode ter tudo, qual é o
sentido? (A XmasTym tinha os direitos de Egg Nog. Mas Egg Nog é nojento.)
Aquelas outras firmas vivem tentando criar alternativas próprias para clássicos
privatizados, como renas e bonecos de neve, mas nunca decolam. Jamais esque-
cerei o fracasso que foi a reação do público à Lagartixa Natalina da JingleMas.
Não: assim como a maioria das pessoas, eu ia ter um pequeno Evento Invernal,
só Annie e eu. Desde que eu tenha o cuidado de ficar longe de produtos licencia-
dos, tudo vai dar certo.
Com as decorações feitas de hera você ainda pode se safar; visgo é proibido,
mas eu tinha guardado um monte de tomates-cereja, que estava planejando espe-
tar em cactos. Não ia arriscar guirlandas, mas eu tinha uns dois cintos coloridos
que ia pendurar na minha aspidistra. Você sabe como é esse tipo de coisa.
Os inspetores não são tão maus: às vezes eles fazem vista grossa para um badula-
que ou outro (o que é muito bom, porque as multas para comemorações de
Natal® sem licença são astronômicas).
Eu estava me preparando assim, mas aí aconteceu a coisa mais extraordinária.
Ganhei na loteria!
Quer dizer, não ganhei-ganhei. Mas fiquei entre os primeiros, e foi um
premiozinho bacana. Um convite para uma festa especial, licenciada, de Natal®,
no centro de Londres, organizada pela própria NatividadeCo.
Quando li a carta, tremi dos pés à cabeça. Era a NatividadeCo, então a coisa
seria pra valer. Ia ter Papai Noel®, Rodolfo®, Visgo®, Bolos®, e uma Árvore de
Natal® com presentes embaixo.
Esse último item era algo com que eu não me conformava. Era uma coisa tão
triste colocar meus presentes embrulhados em papel-jornal ao lado da aspidistra,
mas desde que a NatividadeCo comprou os direitos do papel colorido e da coloca-
ção de presentes embaixo de árvores, os inspetores haviam caído com
todo o rigor em quem cometesse Presenteamento Subarbóreo Grave. Eu não
parava de pensar que Annie ia poder estender a mão e apanhar seu presente sob
galhos de pinheiro.
Talvez eu não devesse ter contado pra Annie, apenas feito a surpresa a ela no
dia, mas eu estava empolgado demais. E, pra ser honesto, em parte eu contei a ela
porque eu queria deixar Aylsa com inveja. Ela era muito metida a besta, sempre
dizendo que não sentia saudade do Natal® e coisa e tal.
— Pense só — eu disse — vamos poder cantar canções de Natal legalmente!
Ah, desculpe, você odeia canções de Natal, não é? — Eu fui muito escroto.
Annie ficou quase doente de empolgação. Ela mudou seu nick on-line pra
ehchegadaaestacao, e até onde eu pude acompanhar ela passava o tempo todo se
gabando para seus pobres amigos, mortos de inveja. Dei uma espiadinha na tela
quando fui levar chá pra ela: as janelas de chat estavam cheias de nomes como
tinkerbell12 e punhadodeflores, e tudo o que eu podia ver eram exclamações
como “naaaaummm??!!” nataaaalll??!! taaauuum legaaall!!!!!” antes que ela blo-
queasse a tela exigindo privacidade.
— Tenha piedade — eu disse a ela. — Não esfregue isso na cara das suas amigas
— mas ela simplesmente riu e me disse que estavam combinando de se encontrar
no dia de qualquer maneira, e que eu não sabia do que estava falando.
Quando Annie acordou no dia 25, havia uma meia® esperando por ela na ponta
da sua cama, pela primeira vez em sua vida, e ela veio tomar café carregando a
meia® e sorrindo de orelha a orelha. Eu tive um prazer enorme em sacudir meu
passe da NatividadeCo e dizer, perfeitamente dentro da lei, "Feliz Natal®, meu
amor". Fiquei feliz porque o ® era mudo.
Eu havia mandado o presente dela para a NatividadeCo, conforme as instruções.
Ele estaria esperando sob a árvore. Era o modelo mais avançado de console. Mais
do que eu podia pagar, mas sabia que ela ia adorar. Ela é ótima em videogames.
Saímos cedo. Havia um número razoável de pessoas nas ruas, todas fazendo
aquilo que fazemos no dia 25, quando, sem dizer nada ilegal, você ergue as
sobrancelhas e sorri um cumprimento natalino.
Tecnicamente era um dia de semana regular para os horários dos ônibus, mas,
naturalmente, metade dos motoristas estava de licença "por motivo de doença".
— Não vamos ficar esperando — disse Annie. — Temos um montão de tempo.
Por que é que a gente não anda?
— O que você comprou pra mim? — eu não parava de perguntar pra ela.
— Qual é o meu presente? — eu fazia de conta que ia espiar dentro da bolsa dela,
mas ela balançava o dedinho.
— Você vai ver. Estou muito satisfeita com meu presente, pai. Acho que é algo
que vai significar muito pra você.
Não era para termos demorado tanto, mas, por algum motivo, fomos devagar,
indo no nosso tempo, conversando, e de repente percebi que íamos chegar atra-
sados. Isso foi um choque. Comecei a correr, mas Annie ficou mal-humorada e
reclamou. Me segurei para não dizer de quem tinha sido a ideia de ir a pé até lá.
Corremos um bocado até o centro de Londres.
— Vamos — Annie não parava de falar. — Estamos chegando?
Havia um número surpreendente de pessoas em Oxford Street. Uma multi-
dão e tanto, todos com aquela expressão secreta de felicidade. Eu também
não podia evitar sorrir. Subitamente Annie já tinha disparado lá pra frente, vol-
tando depois pra me puxar. Agora ela queria acelerar. E eu tinha que pedir des-
culpas a cada vez que esbarrava nas pessoas.
A maioria era uma garotada de uns vinte anos, casais e grupinhos. Eles
abriram caminho, indulgentes, enquanto Annie me arrastava, corria na frente,
voltava a me arrastar.
Era realmente um número impressionante de pessoas.
Mais adiante se ouvia música e alguns gritos. Fiquei tenso, mas não pareciam
gritos zangados.
— Annie! — gritei mesmo assim. — Venha cá, meu amor! — eu a vi pulando por
entre a massa.
E era realmente uma massa. Aquele som era de um apito? De onde tinha vindo
todo mundo? Eu estava sendo empurrado, puxado como se toda aquela gente
fosse uma maré. Vislumbrei um garotão e, com um susto, percebi alarmado que
ele estava usando um macacão grande com uma rena de nariz vermelho. Só de
olhar saquei que ele não tinha licença.
— Annie, venha cá — eu a chamava, mas o som da minha voz foi sufocado.
Uma moça perto de mim elevou a voz, cantando uma nota, muito alta.
— "Baaaaa..."
O rapaz com quem ela estava começou também, e depois o amigo dele, e de-
pois um bando de gente ao lado deles, e em poucos segundos estava todo mundo
fazendo a mesma coisa, uma mistura de vozes bonitas e horrorosas, se combi-
nando naquele gritinho alto insuportável.
— "Baaaaa..." — e aí, com um timing impecável, todas as centenas de pessoas
meio que olharam umas nos olhos das outras, e a canção continuou.
— "....te o sino pequenino, sino de Belém..."
— Vocês estão loucos? — eu gritei, mas ninguém me ouvia por sobre aquela
maldita canção ilegal. Ah, meu Deus. Eu sabia o que estava acontecendo.
Estávamos cercados por natalinos radicais.
Eu zanzava de um lado para o outro, gritando por Annie, correndo atrás dela,
procurando a polícia. Não havia como as câmeras de rua não captarem aquilo.
Eles mandariam o Esquadrão Natividade.
Vi Annie no meio da multidão — diabos, tinha mais gente chegando! — e
corri em sua direção. Ela me chamava, olhava ansiosa ao redor, e eu batia nas pes-
soas para que saíssem da frente, mas, quando me aproximei, vi que ela estava
olhando para alguém ao lado dela.
— Pai! — ela gritou. Vi os olhos dela se arregalarem ao me reconhecer,
e então -será que eu tinha visto uma mão agarrá-la e puxá-la para fora dali?
— Annie! — eu gritei quando cheguei aonde ela havia estado. Mas ela não
estava mais lá.
Eu estava entrando em pânico: ela é uma garota inteligente e estávamos em
plena luz do dia, mas de quem era aquela mão, diabos? Liguei para o
telefone dela.
— Pai — ela respondeu. O sinal estava horrível naquela multidão. Eu gritava,
perguntando onde ela estava. Ela soava tensa, mas não assustada. — ... OK... eu
vou estar... ver... um amigo... na festa.
— O quê? — eu estava gritando. — O quê?
— Na festa — ela disse, e eu perdi o sinal.
Certo. A festa. Era para lá que ela estava indo. Eu me controlei. Abri caminho
empurrando a multidão.
A coisa estava ficando mais bolchevique. Estava virando uma baderna natalina.
Oxford Street estava congestionada, eu estava no meio do que, de repente,
havia se tornado milhares de manifestantes. Foram séculos abrindo caminho, an-
sioso, através da manifestação. O que havia parecido uma multidão anônima su-
bitamente floresceu em variedade e cor. Todo mundo estava marchando.
Eu passava por diferentes contingentes de manifestantes.
De onde diabos haviam saído todas aquelas bandeiras? Slogans flutuavam sobre a
minha cabeça como destroços de um navio. "PELA PAZ, SOCIALISMO E NATAL";
"TIREM AS MÃOS DA NOSSA TEMPORADA DE FESTAS"; "PRIVATIZEM
ISTO". Um mesmo cartaz estava em toda parte. Era muito simples e clean: a letra R
em um círculo vermelho, atravessada por uma linha diagonal.
Ela vai ficar OK, pensei, angustiado. Ela disse isso. Eu olhava ao meu redor en-
quanto avançava na direção da festa, distante apenas umas poucas ruas agora. Eu
podia ver a manifestação.
Aquele pessoal era louco! Não que eles não tivessem boa intenção, mas aquilo
não era jeito de conseguir as coisas. Tudo o que eles iam conseguir era causar en-
crenca para todo mundo. A polícia ia chegar ali a qualquer momento.
Mesmo assim, havia que admitir que sua criatividade era admirável. Com
todas as roupas e as cores, aquilo parecia incrível. Não faço ideia de como eles ti-
nham conseguido contrabandear aquele negócio pelas ruas, de como haviam or-
ganizado aquilo. Deve ter sido on-line, o que teria implicado um uma encriptação
bastante sofisticada pra tapear o "copware". Cada trecho da marcha parecia cantar
algo diferente, ou cantar canções que eu não ouvia havia anos. Eu atravessava um
país das maravilhas invernal.
Passei por um contingente de cristãos, todos carregando cruzes, cantando
hinos natalinos. Bem à frente deles havia um grupo de gente malvestida ven-
dendo exemplares de um jornal de esquerda e carregando cartazes com uma foto
de Marx. Eles haviam sobreposto um chapéu de Papai Noel ao retrato dele.
"Eu sonho com um Natal vermelho", eles cantavam, e mal.
Agora nós estávamos ao lado da SelfriWdges, e um nó de gente havia parado ao
lado das vitrines abarrotadas com a mistura costumeira de perfumes e sapatos.
Os manifestantes olhavam uns para os outros, e de novo para a vitrine. Numa
rua lateral, alguns passantes observavam o extraordinário espetáculo.
Levei um susto ao ver compradores "normais": para mim era inconcebível que
houvesse alguém ali além dos manifestantes que marchavam nas ruas.
Eu sabia o que os observadores da Selfridges estavam pensando: eles se lem-
bravam (ou lembravam de terem lhes falado — alguns deles pareciam jovens de-
mais para lembrar da vida antes do Ato de Natal®) de uma antiga tradição.
— Se não vão nos dar nossas vitrines de Natal — uma mulher rugiu —
vamos ter que criá-las. — E, com isso, eles pegaram marretas. Meu Deus.
Eles quebraram a vitrine.
— Não! — ouvi um homem vestindo um sofisticado paletó de lã gritar com eles.
Um contingente dos manifestantes, que parecia horrorizado, abaixou as bandeiras,
que diziam "AMIGOS TRABALHISTAS DO NATAL". — Todos queremos a mesma
coisa — gritou o homem — mas não podemos apoiar a violência.
Mas ninguém lhe dava a menor bola. Eu esperei que as pessoas começassem a
roubar os artigos, mas elas simplesmente os empurraram para longe do caminho,
junto com o vidro quebrado. Colocavam coisas nas vitrines. De sacolas e bolsos
saíam pequenas manjedouras, Papais Noéis® de "papier mâché", Presentes®
lindamente embrulhados, Azevinho® e Visgo®, que os manifestantes
espalhavam, compondo vitrines toscas.
Eu segui em frente. Um homem se postou no meu caminho. Ele fazia parte de
um grupo de sujeitos bem-vestidos que estavam nas bordas da multidão. Com um
risinho de deboche, ele me entregou um panfleto. "INSTITUTO DE IDEIAS
MARXISTAS VIVAS. Por Que Não Estamos Marchando."
"Vemos com desdém as tentativas patéticas da velha Esquerda de reviver esta
cerimônia Cristã. A ideia de que o governo 'roubou' 'nosso' Natal é tão somente
um aspecto do domínio dessa Cultura do Medo que rejeitamos. Chegou a hora de
uma reavaliação além da esquerda e da direita, e de forças dinâmicas revigorarem
a sociedade. No mês passado, nós do IIMV organizamos uma conferência
no ICA sobre por que greves são chatas e por que a caça à raposa é o novo
pretinho básico..."
O texto me pareceu totalmente sem pé nem cabeça. Joguei fora.
Foi quando se ouviu o trovejar de um helicóptero de combate. Fodeu, pensei.
Eles chegaram.
— Atenção — disse a voz amplificada vinda do céu. — Vocês quebraram a
seção 4 do Código de Natal®. Dispersem imediatamente ou serão presos.
Para meu espanto a reação foi uma risada rouca. Um cântico começou.
No começo não consegui entender as palavras, mas logo não havia mais
como confundi-las.
— De quem é o Natal? É nosso! De quem é o Natal? É nosso!
Não pegou muito bem.
Passei por um grupo que reconheci do noticiário, natalinas feministas radicais
vestidas todas de branco, usando cenouras no nariz: as sNOwMEN. Um sujeito
baixinho passou correndo por mim, olhando ao redor e resmungando: "Alto
demais, alto demais". Começou a gritar: "Qualquer um que meça até 1,55 m,
venha participar do quebra-quebra com os Pequenos Ajudantes de Papai Noel!".
Outro baixinho começou a discutir furiosamente com ele. Ouvi as palavras
"piada" e "condescendente".
As pessoas estavam comendo pudim de Natal®, fatias de peru. Elas se obriga-
vam até mesmo a engolir couve-de-bruxelas, só por questão de princípio. Alguém
me deu um pedaço de bolo. "Bendito seja", gritou um pagão radical no meu ou-
vido, e me deu um panfleto exigindo que assim que tivéssemos recuperado de
volta a estação nós a rebatizássemos de Solstividade. Foi expulso a pontapés por
um grupo de bailarinos e bailarinas musculosos vestidos de fadas e quebra-nozes.
Eu estava me aproximando do lugar onde a festa deveria acontecer,
mas agora havia ainda mais gente nas ruas. O lugar ia ser cercado. Como é que
iríamos entrar?
Figuras se moviam na multidão. Que merda, pensei, a polícia. Mas não era. Era
um bando agressivo, com pinta de zangado, quebrando para-brisas dos carros
pelo caminho. Estavam todos vestidos de Papai Noel®.
— Caralho — alguém resmungou. — São os Red & White blocs.
Era óbvio que os R&W estava ali pra criar baderna. Todo o restante da multidão
tentou se afastar deles. "Vão embora, porra!" ouvi alguém gritar, mas não lhe
deram atenção.
Agora dava para ver a polícia se aglomerando nas ruas laterais. Os Red & White
blocs a atraíam para fora, sacudindo garrafas, gritando "Podem vir!" como fãs de
Futebol® emputecidos.
Eu estava recuando. Me virei, e lá estava, o local da festa.
Hamleys, a loja de brinquedos. Os guardas armados que normalmente a prote-
giam deviam ter fugido muito antes, ao darem de cara com esse caos. Levantei a
cabeça e vi rostos horrorizados nas janelas.
Eu devia estar lá em cima, pensei. Com vocês. Eles eram os convidados da festa.
Crianças e seus pais, cercados pela manifestação, vendo a chegada da polícia.
E, ah, lá estava Annie, gritando para mim, parada sob a marquise da Hamleys.
Soltei um grito de alívio e corri até ela.
— O que está acontecendo? — ela gritou. Parecia apavorada. O Esquadrão
Natividade estava se aproximando dos provocadores dos Red & White blocs,
batendo com seus cassetetes em escudos enfeitados com guirlandas.
— Puta merda — sussurrei. Envolvi Annie com meus braços para protegê-la.
— Vai dar problema — eu falei. — Se prepare pra correr.
Mas nós ficamos ali, tensos e, de repente, uma coisa surpreendente aconteceu.
Eu pisquei e, do nada, apareceu um rapaz vestindo um manto branco comprido.
Antes que qualquer um pudesse detê-lo, ele se posicionou entre as fileiras dos
Red & White blocs e a polícia.
— Ele é louco! — alguém gritou, mas todas as centenas e centenas de pessoas
foram se calando.
O homem estava cantando.
A polícia caiu em cima dele, os R&W fizeram que iam empurrá-lo pra longe,
mas sua voz se elevou, e ambos os lados hesitaram. Eu nunca tinha visto alguém
tão lindo.
Ele cantou uma única nota, de uma pureza que não era deste mundo.
Ele a fez durar, por longos segundos, e depois continuou:
"Ai, vinde todos à porfia/ Cantar um hino de louvor."
Ele fez uma pausa, até que a tensão entre nós chegou ao limite.
"Hino de paz e alegria/ Que os anjos cantam ao Senhor."
Os Red & White blocs estavam quietos. Todo mundo estava quieto.
"Gló-ó-ó-ó-ó-ria in Excelsis Deo"
Agora os policiais estava parando. Eles abaixaram seus cassetetes. Um a um,
eles puseram seus escudos de lado.
"Naquela noite venturosa/ Em que nasceu o Salvador..."
Mais figuras de branco surgiam. Eles caminharam calmamente para se
juntar ao seu amigo. Assustei-me ao notar que estava tapando meus próprios
olhos. Havia uma autoridade implacável nessas figuras incríveis que haviam apa-
recido do nada, aqueles rapazes altos, belos, e tão jovens. dddddddddddd
Seus mantos eram de um branco inconcebível. Eu não conseguia respirar.
Agora todos eles cantavam. "Gló-ó-ó-ó-ó-ó-ria in Excelsis Deo."
Um a um, os policiais tiraram seus capacetes e se puseram a ouvir.
Eu podia escutar os gritos frenéticos de seus superiores saindo dos auriculares
que eles removiam.
"Naquela noite venturosa/ Em que nasceu o Salvador..." Os cantores fizeram
uma pausa, até eu ficar desesperado para que eles terminassem a melodia:
"Vozes de anjos harmoniosas/ Lançam ao céu este clamor".
O grupo de policiais sorria e chorava em meio a uma montanha de cassetetes e
proteções corporais descartadas. O primeiro cantor levantou a mão. Ele olhou
para todo o armamento jogado ali. Declamou para os Red & White blocs.
— Vocês não deveriam ter tentado lutar — ele disse, e eles pareceram envergo-
nhados. Ele aguardou.
— Vocês teriam sido massacrados. Ao passo que agora — ele continuou — esses
idiotas se desarmaram. Agora é a hora de lutar... — Ele se girou e, ao mesmo tempo,
ele e seus colegas cantores se jogaram em cima da polícia, os mantos adejando.
Os policiais indefesos ficaram pasmos, deram meia volta e saíram
correndo; a multidão rugiu e começou a segui-los.
— Nós somos o Partido Cantor Radical dos Homens Gays! — o cantor
principal gritou em seu registro de tenor exótico. — Orgulhosos de lutar pelo
Natal do Povo!
Ele e seus camaradas começaram a entoar: — Estamos aqui! Somos o coral!
Viemos pra ficar!
— É um milagre de Natal! — disse Annie. Eu simplesmente a abracei até ela
resmungar — Tá bom, papai, calma.
Atrás de mim a multidão gritava, tomando as ruas.
— Esse é o problema com os Red & White blocs — resmungou Annie.
— Maldita "estratégia de tensão" do caralho. Bando de aventureiros anarquistas.
— É — disse um garoto do lado dela. — Seja como for, metade deles são
agentes da polícia. É a regra número um, não é? Aquele que quer mais
violência é o policial.
Eu estava boquiaberto, minha cabeça indo de um para o outro, como um imbe-
cil assistindo a uma partida de tênis.
— O quê? — eu disse finalmente.
— Qual é, pai — disse Annie. Ela beijou meu rosto. — Você nunca teria me dei-
xado vir de outra maneira. Eu tinha que fazer você andar até aqui ou a gente teria
chegado cedo demais. E ficado preso igual a eles. — Ela apontou para os ganhado-
res do prêmio que ainda estava encarando nos andares superiores da Hamley.
— Então eu tive que sair correndo ou você nunca teria me deixado entrar. Vem.
— Ela me pegou pela mão. — Agora que a gente passou pelas linhas da polícia,
podemos retomar a marcha passando pela Downing Street.
— Ora, então é a oportunidade perfeita para sairmos daqui...
— Pai — ela disse. Olhou para mim com dureza. — Eu não pude acreditar quando
você ganhou o prêmio. Nunca pensei que teria uma chance de vir para cá hoje.
— Alguém te agarrou — falei.
— Foi Marwan — ela indicou o rapaz que havia falado. — Pai, este é Marwan.
Marwan, este é meu pai.
Marwan sorriu e apertou minha mão educadamente, mudando o cartaz de
mão. "MUÇULMANOS PELO NATAL", dizia. Ele me viu lendo.
— Isso não representa grande coisa para mim — ele disse — mas todos nós nos
lembramos de como esse pessoal veio em nossa ajuda quando a Umma plc tentou
privatizar o Eid. Sabe, isso foi muito importante. De qualquer maneira... — ele
desviou o olhar tímido. — Eu sei que é importante para Annie — ela olhou para
ele de lado. — Ah — pensei.
Marwan é punhadodeflores, pai — disse ela. — Na internet.
— Escuta, eu tenho que dizer que estou muito irritado com isso tudo — falei.
Estávamos chegando perto de Downing Street. Marwan havia se despedido na
Trafalgar Square, então estávamos sós de novo, só nós e mais 10 mil pessoas.
— Eu te comprei... eu perdi um monte de... tem um presentão naquela festa...
— Sendo franca, pai, eu não preciso mesmo de um console novo.
— Como você sabia...? — perguntei, mas ela já continuava sua fala.
— O que eu tenho está muito bom. De qualquer maneira, eu uso mais mesmo
pra jogos de estratégia, e eles não consomem tanta energia. Além disso, tenho
todos os "pinkopatches" na minha máquina. Seria um saco transferi-los, e baixá-
-los de novo é arriscado demais.
— Que "patches" são esses?
— Coisas tipo o Red3.6. Ele converte uma pá de jogos. Transforma
SimuCityState em RedOctober. Coisas desse tipo. Eu já cheguei no nível 4. O
chefe do fim do nível é um czar. Assim que eu conseguir descobrir como passar
por ele eu vou chegar ao Poder Duplo.
Desisti até de tentar entender.
Na entrada da residência do primeiro-ministro havia uma enorme Árvore
de Natal® branca e prata. Todo mundo começou a vaiar quando nos aproximamos.
O Exército estava protegendo o local, então as pessoas fizeram questão de
garantir que as vaias eram bem-humoradas. Alguém jogou um pudim de Natal,
mas o povo o tirou dali rapidinho.
— Isso aí não é o Natal! — nós todos gritamos ao passar. — Isto aqui é que
é o Natal!
À medida que os céus iam escurecendo, a multidão foi começando a dispersar
um pouco, antes que a polícia pudesse se reagrupar. Passamos por um contin-
gente em que todos usavam bandanas vermelhas e nos somamos à cantoria deles:
"Já faz tempo que eu pedi / Mas o meu Papai Noel não vem/ Com certeza já
morreu/ E a Internacional / É tudo que a gente tem."
— Mesmo assim — eu disse — estou um pouco chateado por você não ter conse-
guido ver a festa.
— Pai — disse Annie, e me sacudiu. — Este foi o melhor Natal de todos.
De todos. OK? E foi tão maravilhoso passar ele com você...
Ela me olhou de lado.
— Já adivinhou? — ela perguntou. — Qual é o seu presente?
Ela estava me encarando, bem séria, bem intensamente. Fiquei bas-
tante emocionado.
Pensei em tudo o que havia acontecido naquele dia e nas minhas reações.
Tudo pelo qual eu havia passado e visto e integrado. Percebi como eu me sentia
diferente agora do que naquela manhã. Era uma revelação surpreendente.
— Sim... — hesitei. — Sim, acho que sim. Obrigado, meu amor.
— O quê? — ela disse. — Você adivinhou? Merda.
Ela segurava um pacotinho embrulhado. Era uma gravata.
Sobre o autor
China Miéville, nascido na Inglaterra em 1972, é formado em antropologia
social pela Universidade de Cambridge, com mestrado e doutorado em filoso-
fia do direito internacional pela London School of Economics. Professor de
escrita criativa na Universidade de Warwick, foi um dos fundadores do Left
Unity e é membro da International Socialist Organization.
Um dos nomes mais importantes da literatura New Weird, inovação formal
que trabalha com híbrido de ficção científica, fantasia e horror, Miéville foi
contemplado pelo Hugo Award (o prêmio mais importante dedicado aos li-
vros de ficção científica), recebeu três vezes o Arthur C. Clarke Award e duas
vezes o British Fantasy Award, dentre outros prêmios. Seus trabalhos de não
ficção incluem o ensaio ilustrado London’s Overthrow [A queda de Londres] e
Between Equal Rights: A Marxist Theory of International Law [Entre direitos
iguais: uma teoria marxista do direito internacional]. Miéville costuma escre-
ver para diversos periódicos, entre eles The New York Times, The Guardian,
Conjunctions e Granta. É editor fundador da revista Salvage. Dele, a Boitempo
publicou A cidade & a cidade (2014), Estação Perdido (2016) e Outubro: história
da Revolução Russa (2017), além do artigo “Marxismo e fantasia”, incluído no
número 23 da revista Margem Esquerda.
A cidade & a cidade
Tradução: Fábio Fernandes
Texto de orelha: Ronaldo Bressane
Kafka e Orwell costumam ser facilmente evocados
para qualificar qualquer coisa que fuja um pouco
do ordinário, mas neste caso são comparações
certeiras.” – The Times

Quando o corpo de uma mulher assassinada é encontrado na decadente


cidade de Besźel, em algum lugar nos confins da Europa, parece apenas mais
um caso trivial para o Inspetor Tyador Borlú. Mas, à medida que avança a
investigação, as evidências começam a apontar para conspirações muito mais
estranhas e mortais do que ele poderia supor. Em uma envolvente e premiada
narrativa, híbrido de thriller e ficção científica, aos poucos descobrimos que
a jovem assassinada tinha envolvimento com a agitação política e cultural
entre Besźel e sua cidade gêmea, Ul Quoma. As duas cidades ocupam o
mesmo espaço geográfico, mas constituem nações diferentes, monitoradas
por um poder secreto conhecido como Brecha. O habitante de uma cidade é
educado desde a infância a desver a outra cidade, seus habitantes, suas
construções e os eventos que lá ocorrem. Em ambas as cidades, ignorar a
separação, mesmo sem querer, é considerado um crime terrível, ainda mais
grave do que cometer um assassinato. Uma história que arrebatou a crítica
internacional e ecoa a literatura de George Orwell, Franz Kafka, Raymond
Chandler, Bruno Schulz e Philip K. Dick para tecer um comentário afiado,
criativo e emocionante sobre as cidades e a tendência de vermos apenas o
que queremos.
Vencedor dos prêmios British Fantasy, World Fantasy, Arthur C. Clarke e
Hugo, o mais importante da categoria. Em 2018, foi adaptado para a TV em
minissérie produzida pela BBC.
Estação Perdido
Tradução: José Baltazar Pereira Júnior, com a colaboração
de Fábio Fernandes
Texto de orelha: Fausto Fawcett
“Este não é um romance de fantasia comum.” – The Guardian
“Se você tem vergonha de ler um livro cuja protagonista feminina tem um besouro
no lugar da cabeça, desista agora: mas é você quem vai sair perdendo. Para os
fãs de histórias ‘quanto mais estranhas melhor’, Miéville não decepciona.”
– The Telegraph
“Um dos autores contemporâneos mais celebrados do gênero na atualidade.”
– Rodrigo Casarin, Valor Econômico
Amor entre espécies, mulheres poderosas (com cabeça de besouro), conflitos
raciais, criaturas horripilantes, pactos demoníacos, tráfico de drogas,
inteligência artificial, devoradores de mentes, caos, dialética, greve geral,
violência policial e estado de exceção. Estação Perdido é tudo isso e mais um
punhado de bizarrices, nessa estranha mistura de fantasia e ficção científica
hard que consagrou China Miéville como um dos maiores nomes da
literatura de gênero contemporânea.
Vencedor dos prêmios Arthur C. Clarke e British Fantasy.
Próximos
lançamentos
A cicatriz
Tradução: José Baltazar Pereira Júnior
Texto de orelha: Felipe Castilho
Lançamento: março de 2019
“É sem dúvida o primeiro grande romance do movimento anticapitalista e
faz Moby Dick parecer um livro sobre baleias.” – Mark Bould
Uma estranha e fantástica releitura de histórias de piratas, ambientada
em um cenário urbano e industrial situado no meio do oceano.
Prisioneiros, escravos e criaturas grotescas disputam uma cidade ma-
rina construída a partir de cascos de navios roubados, cujos líderes bi-
zarros abrigam uma agenda sinistra.
Vencedor dos prêmios British Fantasy e Locus.

Conselho de Ferro
Lançamento: 2020
“Se a literatura de fantasia costuma ser fabulosamente conservadora,
Conselho de Ferro é uma repreensão à política medieval do gênero.”
– The Guardian
Neste faroeste eletrizante, fortemente inspirado pelo movimento
antiglobalização, Miéville enfrenta questões como imperialismo,
corporativismo, terrorismo, racismo, homossexualidade, choques
culturais, direitos trabalhistas e guerra.
Vencedor dos prêmios Arthur C. Clarke e Locus.
“A ficção do novo século.”
Neil Gaiman

“Não se pode falar sobre Miéville


sem usar a palavra ‘brilhante’.”
Ursula K. Le Guin

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