Você está na página 1de 9
Espagos de género, casa e gestao alimentat: contexto rural teuto-brasileiro Ellen E Woortmann Man ist was man ist (Sedo que se come) Este artigo tem como objetivo analisar 0 binémio casa e comida desde a ética spacos de género em um grupo de alemaes e seus descendentes. Esse grupo foi do, pelo governo imperial, em colénias no Vale do Rio dos Sinos, mormente re 1824 ¢ 1832, com o intuico de desenvolver miicleos produtores de alimentos areas urbanas e abastecedores das tropas de militares envolvidas em constan- nnflitos com a fronteira sul. Cultural e socialmente, essas levas de imigrantes bastante heterogéneas, predominando entre clas familias de camponeses dé inhessen (centro da Alemanha), que tinham como denominador comum as ides agricolas e, como fator diferenciador, o fato de atuarem cm diferentes idades artesanais (marceneiros, tanociros, ferreiros, moleiros, vaqueiros, pedrel- Soldados), mas também como professores, clérigos, militares, ex-funncionarios licos, etc, : No universo dos estudos rurais ou das sociedades camponesas, a mulher, viade h cstava subsumida familia ou, nos termos de Dumont (1985), encorapassada }gtupo. Tedricos clissicos, tais como Chayanov (1966), percebiam a mulher/ mais como consumidora do que produtora, invisibilizada ¢ indissociada pelo tivismo interno” da familia, Galeski (1975) © Tepicht (1973), seguindo esta It tedrica, percebem-na como parte do workteam familiar, limitada a esfera © sumo doméstico, “forga de uabalho marginal”, ao passo que o marido/pai Inido como “forsa de trabalho plena e encompassante”, responsavel pela fo e reproducao social do grupo. A rigor, a casa camponesa, para esses au- Clasicos, era o espaco da subordinacio ¢ limitagées femininas naturalizadas. ‘Com Wolf (1976), Mendras (1978) ¢ Bourdieu (1962, 1980), alicergados lutros referenciais etnograficos, a nogio de matson paysanne ganha forga & com ela, a mulher emerge, ainda que discretamente, no papel de maizreste, isto ipalha, posteriormente substitufda por telhas de madeira (Schindler). Com frequ- senhora, gestora da casa. Nos finais dos anos 1970/80, as pesquisas aprofundadiy cia, essas casas iniciaisso mantidas refuncionalizadas: tornam-se as warme Kiiche, sobre género e casa rural comegam a eriar corpo no Brasil, algumas inspiradla ji fo, as “cozinhias quentes”, que serdo analisadas mais adiante, Em varios relatos de textos tais como de Lamphere e Rosaldo (1979), Strathern (1988), Denich (19 ajantes hd ilustragdes ¢ reproducoes delas (Avé-Lallemant, 1980; Weimer, 2005). ¢ Bourdieu, com sua andlise da maison habyle. Como jé analisado em outra ocasido (Woortmann, 1994), no conjunto de E nesse didlogo que, no Brasil, na Antropologia sio publicados trabvilly ificagdes das colénias alemas, hd um grupo de casas que é particularmente impor quese tornariam eixos de pesquisas de alunes, como A morada da vida, de Hew nte, pelo papel de destaque que exerce no plano simbélico. Sao as denominadas (1979), ea tese de doutorado de Scott, Between captivity and the middle wo mbiiuser, isto & casas-ttonco, que sucederam as pequenas casas de enxairnel ini- migration and houschold organization araong rural workers in Pernambuco, Bry is. Andlogas A mazion francesa do Béarn, analisada por Bourdieu (1962), ainda que de 1981. Por outro lado, no ambito da Histéria da Imigracao Alem em dilly enores, a maioria delas foi construida na regio colonial do Vale do Rio dos Sinos na com a Arquitetura Vernacular, vérios trabalhos importantes so produzidos sali ida mevade do século XIX. Constituem a expressio edificada do modelo tradicio- casas de camponeses alemaes e teuto-brasileiros da regiao do Vale do Rio dos Silly Ul de casa teuto-brasileita, modelo esse em que a autossubsisténcia ¢ o valor familia e também em outras regides do Brasil. foaltamente reconhecidos. Emprestando duas expresses de Zonabend (1980), essas Esses estudos incluem a trajetéria do projeto de construcio ¢ as téenle gnmabituser“parlent famille” hoje sto parte do alicerce da “mémoire longue” do grupo. empregadas nas moradias. A tigor, sao andlises muito detalhadas de process d adiante, elas serio analisadas pelo importante papel que desempenharam no constru¢ao, matérias-primas empregadas, tipos de equipamentos ¢ forca de (alii yntexto dos espacos de género e processos produtivo e reprodutive da alimentacao. tho utilizados, detalhes ornamentais, muitas vezes em comparagio com casi A significativa bibliografia acerca desse grupo contempla de forma secundaria regides de origem dos imigrantes. Essas pesquisas combinam descrigécs c rclalili questio da alimentagéo, do autoconsumo. Trabalhos como 0 atributdo a Amstadt de viajantes do século XIX com observages de campo dos autores sobre difere)\) 1999) ¢ de Jean Roche (1969) descrevem a questo da alimentagio desde a dtica estilos de casas em col6nias tradicionais, do século XIX e primeira metade do cioldgica, com grande destaque paraa importancia da produgao colonial destina~ O esforgo de tipificagao ¢ recorrente € outros prédins sao analisados, quase qi) ao mercado, dos produtos escoados para Porto Alegre, outros centros urbanos no como extensdo da casa: escolas, parte da casa do professor, atafonas, alambisjiits. il e a exportacao para Uruguai, Argentina e Europa. Nesse quadro, os autores casa de comércio, assim como galpdes € depdsitos. Esses tiltimos foram, mul saltam também a importincia das coldnias teuto-brasileiras como produtoras veres, a antiga casa ou cozinha da familia que passaram a ser utilizados com oul) matéria-prima para 0 comércio e indtistria de alimentos. Com a criagao de um fungio. Essas construgGes, na maioria das vezes em enxaimel exposto ou encoly evo capital, nos finais do século XIX até a década de 1930, emerge uma nova etelhas de madeira (Schindler), se distinguem dos estabulos, cocheiras e outros, euesia urbana, aliada a camponeses forres ¢ atacadistas. Sao os que estimulam a madeira crua, sem pintura. Irtoduicaa de variedades de animais e vegerais mais produtivos (porco tipo banha, Nesse conjunto de trabalhos, destacam-se as descrigGes ¢ interpret ar exemplo) ¢ patrocinam jornais rurais, tais como Der Landwirt (O Agricultor). de Willems (1980), Ilg (1972), Roche (1969) e Weimer (2005). Esses trabull Nesses trabalhos de Amstadt e Roche, eventualmente ¢ mencionada a mulher centram-se, em detalhe, nas questdes técnicas da arquiterura das edi ficagdem, iqucstao da produgao para autossubsisténcia, em algum detalhe ou rodapé; contu- tendo por objetivo analisar suas fungGes, recintos, aspectos simbdlicos¢ de ji 9, na maioria das vezes, ambas permanecem invisibilizadas. Outros trabalhos, tais tampouco a questo alimentar. Imo os de meméria, de Miller (1978 ¢ 1984), apresentam a alimentagao de outra A instalagao dos imigranres em seus lores recém-demarcados ¢ com as pil itspectiva, a das receitas de comidas tradicionais de doces, tortas, conservas. Sé0 ras picadas na mata abertas corresponde ao perfodo de construcio, em mutinia, Ecitas de pratos consumidos nas colénias, especialmente por ocasiao de eventos pequenos abrigos provisdrios, precdrios, sem divisbes internas. Esses so sucedl hporvantes, em especial Natal ou Kerb, a festa da comunidad religiosa, que fazem por pequenas casas de enxaimel (Weimer, 1986), inicialmente com chao de | inte de uma meméria gastronémica teuto-brasileira, uma vez que se centram na batido, depois substicuido por grossas tdbuas de madeira e a cobertura, iniclalijel scticao de pratos e nao de processos produtivos mais amplos. 268 (cm Desde a dtica da imigracao ucraniana, por exemplo, hé uma dissertayl mestrado (Schneider, 2002) que, ao acompanhar o ano agricola camponés tom do 0 Natal como fato social total, acompanha também a produgao de urn de graos tradicionais ¢ a cria¢io doméstica de animais destinados especialmenit ocasiao. Além desses, hd o trabalho de Schliiter (2004) que analisa 0 signifi de receitas de grupos tradicionais curopcus emigrados para a Argentina et contexto familiar ou de grupo. Numa abordagem antropolégica, ainda que especificamente de género, encontiam-se as publicacées organizadas por M (2007). Menasche (2007 e 2012) ¢ as de Klaas ‘Woortmann, Hdbitos ¢ ideoligy alimentares em grupos sociais de baixa renda (1978), assim como A comida, afi ea construcdo do género feminino (1985). Com base nesse quadro, considera-se que espagos de género sto locais i bolicamente apreendidos aos quais sio atribuidos a prevaléncia de genero, l 08 espacos de casas de colonos teuto-brasileiros, nao foram identificadas limit, de citculagao ou mesmo espacos interditados a algum género, em oposicao a0 acontece no sertao do Seridé (nordeste), onde o quarto das meninas ¢ interdiwdd pai, irmaos ou quaisquer outros homens. Por outro lado, a correlacao sala/homel espago piiblico versus cozinha/mulher/espaco privado, estudada por Wort) (1985), ainda que exista no plano do modelo, no cotidiano nao é marcante, cozinha constitui um espayo feminino, é nela que pela manha e no final di © casal toma chimarrao, discute ¢ toma decisdes posteriormente tornadas pli) pelo pater familias; é ncla, também, que a familia como um todo faz as relelgth realiza pequenas atividades 4 noite. Nolivro do médice Robert Avé-Lallemant (1980), Viagem pela provinly Rio Grande do Sul — 1858, ao lado de descrigdes da fauna, flora, vegetagila, destinadas a, quem sabe, atrair novos imigrantes, encontram-se algumas indica) sobre a mulher da colénia, As descrigées, em seu adjetivado ¢ personalizado apontam para especificidades interessantes. Apds desctever brincadeiras infantis diferenciavam meninos de meninas, 0 autor aponta para o fato de mogas caval de lado ou como homens e desacompanhadas, comentando que “seria duvi que um bandido conseguisse alcancar a centaura em fuga!” (Avé-Lallemant, 1! p. 118). Em outro momento, visivelmente stirpreso, descreve a habilidade de meninas no uso do remo ao atravessar um rio de canoa, ¢ sua habilidade e con cm se deslocarem sozinhas pelas trilhas da mata. E acrescenta: desenvolve-se também nas mogas, desde a sua tenra juventude. Montam sit [00 elas préprias selam 0 caualo e nado precisam esperar por um irmdo ou por um ililarige pata viajar a cavalo. Aprendem a nito fazer distingao humilhante entre a fill tld CaM- ponés ea moca da sociedade (AvéLallemant, 1980, p. 122) (grifos nossos) A seguir, em varios momentos do texto de Avé-Lallemant, identificam-se tng6cs ligadas 4 construgao de género, tais como a iniciativa de uma mulher de rpelar a um estranho em frente & sua casa, uma jovem robusta que kt dois 108 de fcijio ao armazém para ser vendido na cidade e que, em troca, weeberia artigos industrializados por ela encomendados, Na pagina 184 (Avé-Lallemant, 80), cle descreve a queixa de um soltciro que abrindo a mata para se insala, em lese identifica o perfil esperado da mulher camponesa, jd mencionado em outta fa (Woortmann, 1994): Sozinho, na mata nem o diabo pode suportar. Nao podia achar uma espoxt Ae ha mogas na coldnia. Apenas se emplumam, batem as asas. F geral a queiea sob 4 falta de mocas vigorosas, dessas que podem reunir na mesma pessoa a criada e a senlyt.a mae ¢a.ama ao mesmo tempo (Avé-Lallemant, 1980, p. 185) (grifos nossos). Nesta citagao, observa-se a importancia dada 4 mulher nesse contexto, ialmente a fase inicial do processo de colonizacao. Sao valorizadas como es- sas aquelas que so fisicamente fortes, tém iniciativa, dispoem-se a realizar elas produtiva e econémica préprias, distintas do marido/ pai. Elas sio% Pro- istas, ainda que no plano publico isso fique menos evidente. Nessequadro, como a grande diversidade € ndimero de animais de pequeno porte tais mo galinhas, gansos e porcos (Avé-Lallemant, 1980, p. 124), que, no universo mponés teuto-brasileiro da metade do século XTX, sfo parte tanto da esfera 2 a autossubsisténcia da familia quanto para a comercializacao realizad# pela E interessante observar que, nesse perfodo, a criagao de porcos aindacta atti- igo feminina e seu abate e consumo eram realizados na esfera familiar, Parte de Seatem-se bem dispostos ¢ livres ¢ por isso so corajosos e mesmo altivos, 4) ta modalidade de reserva deferida, no ambito das estruturas de reciprocidade os encontramos no caminho, Este elemento de uma grande determinacio ¢ i nininas/ familiares. 270

Você também pode gostar