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AÇÕES DECLARATÓRIAS DE CONSTITUCIONALIDADE 43 E 44

RELATOR : MIN. MARCO AURÉLIO


REQTE ADC 43 : PARTIDO ECOLÓGICO NACIONAL - PEN
ADV.(A/S) : ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO E OUTRO(A/S)
REQTE ADC 44 : CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO
BRASIL - CFOAB
ADV.(A/S) : LÊNIO LUIZ STRECK E OUTRO (A/S)

AMICI CURIAE : DEFENSORIA PÚBLICA -GERAL DA UNIÃO


(ADC 43 E 44) DEFENSORIA PUBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO
DEFENSORIA PUBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA
INSTITUTO BRASILEIRO DE CIENCIAS CRIMINAIS
INSTITUTO IBERO AMERICANO DE DIREITO PÚBLICO
INSTITUTO DOS ADVOGADOS BRASILEIROS - IAB
INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SAO PAULO – IASP
ASSOCIAÇÃO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO – AAS
ASS. BRASILEIRA DOS ADVOGADOS CRIMINALISTAS

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO:

Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E PENAL. MEDIDA CAUTELAR EM AÇÕES


DECLARATÓRIAS DE CONSTITUCIONALIDADE. PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA OU DA
NÃO CULPABILIDADE. ART. 283 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. EXECUÇÃO DA PENA APÓS
JULGAMENTO DE SEGUNDO GRAU. INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO.
INDEFERIMENTO DOS PEDIDOS DE MEDIDA CAUTELAR.
1. A interpretação que interdita a prisão quando já há condenação em segundo grau
confere proteção deficiente a bens jurídicos tutelados pelo direito penal muito caros à ordem
constitucional de 1988, como a vida, a segurança e a integridade física e moral das pessoas
(CF/1988, arts. 5º, caput e LXXVIII e 144). O enorme distanciamento no tempo entre fato,
condenação e efetivo cumprimento da pena (que em muitos casos conduz à prescrição)
impede que o direito penal seja sério, eficaz e capaz de prevenir os crimes e dar satisfação à
sociedade. Desse modo, muito embora uma das leituras possíveis do art. 283 do Código de
Processo Penal (com redação dada pela Lei nº 12.403/2011) limite a prisão às hipóteses de
trânsito em julgado, prisão temporária ou prisão preventiva, deve-se conferir ao preceito
interpretação que o torne compatível com a exigência constitucional de efetividade e
credibilidade do sistema de justiça criminal.
2. O reconhecimento da legitimidade da prisão após a decisão condenatória de segundo
grau não viola o princípio da reserva legal, uma vez que não se trata de criação, pelo STF, de
nova modalidade de prisão sem previsão em lei, mas de modalidade extraída do art. 637 do
CPP: a prisão como efeito da condenação enquanto pendentes os recursos especial e
extraordinário. Não tendo o recurso especial (REsp) e o recurso extraordinário (RE) efeito
suspensivo, tem-se como decorrência lógica a possibilidade de se dar início à execução penal.
3. Como argumento adicional, seria até mesmo possível extrair a previsão legal para a
prisão após sentença condenatória de segundo grau do próprio art. 283 do CPP – questionado
nessas ADCs –, na parte em que autoriza a prisão preventiva no curso do processo. Com o
esgotamento das instâncias ordinárias, a execução da pena passa a constituir exigência de
ordem pública (art. 312, CPP), necessária para assegurar a credibilidade do Poder Judiciário e
do sistema penal. Nessa hipótese, dispensa-se motivação específica pelo magistrado da
necessidade de “garantia da ordem pública” e do não cabimento de medidas cautelares
alternativas.
4. O baixo índice de provimento dos recursos de natureza extraordinária em favor do
réu, tanto no STF (inferior a 1,5%) quanto no STJ (de 10,3%), conforme dados dos próprios
Tribunais, apenas torna mais patente a afronta à efetividade da justiça criminal e à ordem
pública decorrente da necessidade de se aguardar o julgamento de RE e REsp. Eventual taxa
mais elevada de sucesso nesses recursos verificada em algumas unidades da federação, que se
mantêm recalcitrantes em cumprir a jurisprudência pacífica dos tribunais superiores (por
exemplo, em ilícitos relacionados a drogas), não deve se resolver, em princípio, com prejuízo
à funcionalidade do sistema penal, mas com ajustes pontuais que permitam maior grau de
observância à jurisprudência dos tribunais superiores.
5. Em relação aos pedidos subsidiários, entendo que: (i) não é o caso de excepcionar o
STJ da aplicação do entendimento ora manifestado, pois, embora as funções exercidas por um
e outro tribunal nas causas criminais não sejam idênticas, ambas as instâncias são
consideradas extraordinárias e não há direito ao triplo ou quádruplo grau de jurisdição; e
(ii) não é cabível a pretendida modulação dos efeitos temporais do entendimento do STF no
HC 126.292, uma vez que a alteração jurisprudencial, além de versar sobre matéria processual
penal (sem configurar norma de natureza mista), não cria novo crime ou nova sanção penal,
nem gera qualquer prejuízo à segurança jurídica, à boa-fé ou à confiança dos réus.
6. Interpretação conforme a Constituição ao art. 283 do CPP, com a redação dada pela
Lei nº 12.403/2011, para se excluir a possibilidade de que o texto do dispositivo seja
interpretado no sentido de obstar a execução provisória da pena depois da decisão
condenatória de segundo grau e antes do trânsito em julgado. Indeferimento dos pedidos de
medida cautelar formulados nas ADCs 43 e 44, por ausência de plausibilidade jurídica.

VOTO

I. A HIPÓTESE: DESCRIÇÃO ANALÍTICA DO OBJETO DAS DUAS AÇÕES

1. Trata-se de ações declaratórias de constitucionalidade, propostas pelo Partido


Ecológico Nacional - PEN e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados - OAB,
postulando a declaração da constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal
(CPP), com redação dada pela Lei nº 12.403/2011, que prevê:

“Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem


escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de
sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do

2
processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.”

2. Nas ações, os requerentes apontam controvérsia constitucional relevante acerca


da constitucionalidade do art. 283 da Lei n° 12.990/2014 instaurada em razão da decisão
proferida pelo Supremo Tribunal Federal no HC 126.292, de relatoria do Min. Teori Zavascki.
Afirmam os requerentes que, ao julgar tal habeas corpus, o STF alterou seu entendimento
anterior e afirmou a possibilidade de execução provisória da pena de prisão, antes do trânsito
em julgado da sentença penal condenatória, mas deixou de se pronunciar sobre a questão à luz
do art. 283, CPP.

3. Na ADC 43, o requerente principia por narrar a evolução da jurisprudência do


Supremo Tribunal Federal sobre a matéria. Observa que, nos autos do HC 70.363 (j. em
08.06.1993), o Tribunal afirmou que a presunção de inocência não impediria a prisão antes do
trânsito em julgado, mantendo entendimento que havia se consolidado à luz da Constituição
de 1969. Em 2009, nos autos do HC 84.078, a Corte reviu seu entendimento, assentando que a
prisão antes do trânsito em julgado somente poderia ser decretada a título cautelar. Por fim,
nos autos do HC 126.292, o Tribunal voltou ao entendimento anterior. Todavia, na visão do
requerente, o Tribunal, em sua última virada jurisprudencial, não atentou para o fato de que a
Lei nº 12.403/2011 alterou o teor do art. 283 do CPP e passou a vedar expressamente a prisão
antes do trânsito, vedação legal que não existia à época da decisão do HC 70.363. Assim,
ainda que o art. 5º, incs. LVII e LXI, da CF/1988 pudesse suscitar mais de uma interpretação,
há atualmente – e não havia antes – dispositivo expresso, resultante de ponderação efetuada
pelo Legislador, no sentido de vedar tal expediente.

4. O Partido Ecológico Nacional pretende, então, que o STF reconheça a


legitimidade constitucional de recente opção do legislador de condicionar o início do
cumprimento da pena de prisão ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória. O
argumento principal da ação é o de que o art. 283 do CPP concretiza interpretação
constitucional legítima, compatível com a moldura que a Constituição de 1988 conferiu à
matéria, produzida com base no princípio da livre conformação do legislador, e que inclusive
já foi endossada pelo Supremo nos autos do HC 84.078. E se assim é, deve o STF, no tema,
ser deferente ao que decidiram os representantes do povo, por meio de lei, após amplo debate
da questão. Para os requerentes, o Supremo não pode afastar a aplicação do art. 283 do CPP
sem declarar a sua inconstitucionalidade. Porém, defendem que, ainda que o artigo seja
3
declarado inconstitucional, a criação e a regulamentação de modalidades de prisão se sujeitam
à reserva legal absoluta, de acordo com a Constituição, constituindo verdadeira cláusula de
“reserva de poder” em favor do Legislativo, que impede que o Supremo disponha sobre tais
matérias por meio de sentença aditiva (CF/1988, art. 5º, XXXIX, XL e XLIV).

5. O requerente traz, ainda, três argumentos subsidiários. Em primeiro lugar,


aponta que o STF reconheceu a existência de um estado de coisas inconstitucional no âmbito
do sistema carcerário brasileiro (ADPF 347), ante a ocorrência de violação massiva de
direitos fundamentais dos detentos. Desse modo, o incremento de presos provisórios em
situação já colapsada agravaria as violações de direitos humanos já reconhecidas pelo STF,
além de sujeitar novos indivíduos – alguns deles injustamente – a ingressarem indevidamente
em sistema carcerário que se sabe gravemente comprometido. Nesse sentido, assinala que a
taxa média de concessão da ordem de habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça, após o
julgamento nas instâncias ordinárias, é de 27,86%.

6. Em segundo lugar, aduz que, nos autos do HC 126.292, o STF produziu


interpretação mais gravosa da matéria e mudou anterior entendimento jurisprudencial já
consolidado no próprio Tribunal. Assim, sustenta que, como se veda à lei retroagir para
prejudicar o réu (CF/1988, art. 5º, XXXIX e XV), o mesmo preceito deve ser observado
quanto a eventuais alterações jurisprudenciais mais gravosas, às quais se devem conferir tão-
somente efeitos futuros, em respeito aos princípios da segurança jurídica, da boa-fé e da
confiança dos jurisdicionados. Afirma que esse entendimento foi expressamente manifestado
pelo Ministro Barroso, nos autos da AP 606-QO, e, ainda, em parecer proferido sobre matéria
tributária quando atuava como advogado. O requerente sustenta que o princípio da
irretroatividade das normas penais também é aplicável ao processo penal, sobretudo no
tocante a alterações mais gravosas aos réus que impactem o direito material, como é o caso da
privação da liberdade.

7. Em terceiro lugar, defende o equívoco, à luz da ordem constitucional brasileira,


de se equiparar as funções exercidas pelo STF e pelo STJ nas causas criminais. E isso por três
razões: (i) toda sentença criminal condenatória necessariamente interpreta a lei federal, ao
passo que, apenas excepcionalmente, enfrenta com autonomia questão constitucional; (ii) o
juízo positivo de culpabilidade exigido para a condenação criminal é típico juízo jurídico de
reprovabilidade, não bastando, para a afirmação da culpa, a formulação de juízo fático; e
4
(iii) enquanto as funções do STF passaram por significativa transformação a partir da
objetivação do controle difuso de constitucionalidade, as funções do STJ continuam
plenamente compatíveis com a de um Tribunal Superior de recursos.

8. Aponta, por fim, que o novo entendimento proferido pelo STF penaliza
especialmente a parcela mais vulnerável da população. O julgamento das instâncias ordinárias
não esgota o juízo de culpabilidade ou o exame da repercussão jurídica de fatos e provas. A
jurisprudência do STJ em matéria penal demonstra que esse tribunal pode: (i) decretar a
atipicidade dos fatos e/ou alterar sua qualificação jurídica; (ii) alterar a dosimetria da pena, o
regime prisional, a substituição de pena privativa da liberdade por restritiva de direitos; e
(iii) declarar a ilicitude das provas. Nesse sentido, registra que o índice de sucesso da
defensoria pública do Estado de São Paulo, em HCs e RHCs, tendo por objeto decisões do
Tribunal de Justiça, chega a 62%. Aponta também que a taxa média de sucesso, nos recursos
especiais, no STJ, tem variado, nos últimos anos, entre 29,30% (2015) e 49,31% (2008).

9. Com base em tais fundamentos, o requerente pede, em sede cautelar, que:


(i) “Não sejam deflagradas novas execuções provisórias de penas de prisão e sejam suspensas
as que já estiverem em curso, libertando-se, até que a presente ação seja julgada, as pessoas
que ora se encontram encarceradas, sem que a respectiva decisão condenatória tenha
transitado em julgado”; (ii) “subsidiariamente, caso essa Corte indefira o pedido anterior,
requer-se seja realizada, em caráter cautelar, interpretação conforme a Constituição do artigo
283 do Código de Processo Penal, a fim de determinar, enquanto não se julgar o mérito da
presente ação, a aplicação, por analogia, das medidas alternativas à prisão previstas no art.
319 do CPP em substituição ao encarceramento provisório decorrente da condenação em
segunda instância”; e (iii) “por fim - se os pedidos cautelares formulados nos itens a e b não
forem acolhidos - requer-se seja realizada interpretação conforme a Constituição do artigo
637 do CPP, restringindo, enquanto não for julgado o mérito desta ação, a não produção do
efeito suspensivo aos recursos extraordinários, e condicionando a aplicação da pena à análise
da causa criminal pelo STJ quando houver a interposição de recurso especial”.

10. A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro solicitou a sua admissão no


feito, como amicus curiae, sustentando que, em pesquisa por amostragem realizada em seu
acervo de habeas corpus e de recursos junto aos tribunais superiores, constatou, no período de
março de 2014 a abril de 2016, uma taxa de êxito de 37,5% (trinta e sete e meio por cento).
5
Os feitos versavam sobre absolvição, redução da pena, atenuação do regime ou substituição
por pena restritiva de direitos. Alega, por isso, a Defensoria que a mudança de entendimento
gera graves prejuízos para os hipossuficientes.

11. Requereram, ainda, ingresso no feito, como amici curiae: o Instituto Brasileiro
de Ciências Criminais – IBCRIM, a Defensoria Pública da União, o Instituto de Defesa do
Direito de Defesa Márcio Thomaz Bastos – IDD, o Instituto Íbero Americano de Direito Penal
– IADP, a Associação dos Advogados de São Paulo – AASP, o Instituto dos Advogados de
São Paulo – IASP, a Associação Brasileira dos Advogados Criminais – ABACRIM e o
Instituto da Advocacia Racial e Ambiental.

12. Já nos autos da ADC 44, afirma-se que a decisão proferida no HC 126.292, ao
permitir que os tribunais executem a pena antes do trânsito em julgado, autoriza, por via
transversa, que determinem a prisão e afastem a aplicação do art. 283 do CPP, sem submeter a
questão ao princípio da reserva de plenário. Por essa razão, a decisão do STF violaria o art. 97
da Constituição1 e a Súmula Vinculante nº 102. A OAB alega, ainda, que o dispositivo cuja
declaração de constitucionalidade se requer simplesmente reproduz o teor do art. 5º, incs.
LVII e LXI, CF/1988 3 , de forma que declará-lo inconstitucional implicaria declarar a
inconstitucionalidade de norma constitucional originária, possibilidade que o próprio
Supremo já afastou, nos autos da ADI 815 e da ADI 997. Por fim, aduz que a interpretação
conferida pelo STF aos aludidos dispositivos constitucionais fere a literalidade dos seus textos
e vale-se do “álibi” da efetividade processual, com o propósito de instituir “verdadeira
política judiciária que deverá orientar a atuação dos tribunais nos casos futuros, incluindo os
processos da operação lavajato”.

13. Com base nesses fundamentos, o requerente pede, em sede cautelar, a

1
CF/1988, art. 97: “Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos
membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou
ato normativo do Poder Público”.
2
Súmula Vinculante nº 10: “Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão
fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato
normativo do Poder Público, afasta a sua incidência no todo ou em parte”.
3
CF/1988, art. 5º: “LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença
penal condenatória” e “LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime
propriamente militar, definidos em lei”.
6
“suspensão da execução antecipada da pena de todos os casos em que os órgãos fracionários
de Segunda Instância, com base no HC 126.292/SP, simplesmente ignoraram o disposto do
artigo 283 do Código de Processo Penal”.

14. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo requereu seu ingresso nos autos,
como amicus curiae, salientando que atualmente 64% dos recursos especiais e agravos em
recursos especial interpostos pela instituição contra decisões do Tribunal de Justiça de São
Paulo são providos pelo STJ. Afirmou, ainda, que o percentual de deferimento de habeas
corpus pelo STJ é de 50%, ao passo que no STF a taxa de êxito em HCs variaria em torno de
10 a 20%. Requereram ingresso nos autos, também como amici curiae, as instituições que
solicitaram ingresso nos autos da ADC 43 e o Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB.

15. O voto que se segue é estruturado em três partes. Na primeira parte, procuro
contextualizar o debate, indicando exemplos emblemáticos de como o sistema punitivo
brasileiro funciona extremamente mal e qual o papel do direito penal nas circunstâncias
brasileiras. Na segunda parte, descrevo a oscilação da jurisprudência do STF na matéria até
fixar-se, no julgamento do HC 126.292 (Rel. Min. Teori Zavascki, j. em 17.02.2016), o
entendimento atual no sentido de que a Constituição Federal admite a execução da pena após
a condenação em 2o grau, e aponto, muito resumidamente, os fundamentos que me levaram a
adotar essa posição naquele julgado. Já na terceira parte, analiso os pedidos cautelares
formulados, em especial o pedido para que se reconheça a legitimidade da opção do legislador
de condicionar o início do cumprimento da pena de prisão ao trânsito em julgado da sentença
penal condenatória.

Parte I
CONTEXTUALIZANDO O DEBATE

II. ALGUNS EXEMPLOS QUE DEMONSTRAM QUE O SISTEMA NÃO FUNCIONA

16. O sistema penal brasileiro não tem funcionado adequadamente. A possibilidade


de os réus aguardarem o trânsito em julgado dos recursos especial e extraordinário em
liberdade para apenas então iniciar a execução da pena enfraquece demasiadamente a tutela
dos bens jurídicos resguardados pelo direito penal e a própria confiança da sociedade na
Justiça criminal. Ao se permitir que a punição penal seja retardada por anos e mesmo décadas,
cria-se um sentimento social de ineficácia da lei penal e permite-se que a morosidade
7
processual possa conduzir à prescrição dos delitos. Alguns exemplos emblemáticos auxiliam
na compreensão do ponto.

II.1. Caso Pimenta Neves


17. Um jornalista matou a sua namorada (Sandra Gomide), pelas costas e por
motivo fútil, em 20.08.2000. Julgado e condenado pelo Tribunal do Júri, continuava em
liberdade passados mais de dez anos do fato, vivendo uma vida normal. Devastado pela dor,
corroído pela impunidade do assassino de sua filha, o pai da vítima narra: “Um dia eu liguei
para a casa dele e disse: ‘Você vai morrer igual a um frango. Eu vou cortar o seu pescoço’. Eu
sonhava em fazer justiça por mim mesmo. Era só pagar R$ 5 mil a um pistoleiro. Quem tirou
essa ideia da minha cabeça foram os advogados”. O sistema que tínhamos não era
garantista. Ele era grosseiramente injusto e estimulava as pessoas a voltarem ao tempo
da vingança privada e quererem fazer justiça com as próprias mãos.

II.2. O caso Luís Estêvão


18. Um ex-Senador da República foi condenado pelo desvio de R$ 169 milhões na
construção do Foro Trabalhista de São Paulo. Os fatos ocorreram em 1992. Depois da
interposição de 34 recursos, a decisão finalmente transitou em julgado em 2016, quando ele
veio a ser preso. Durante todo este período, mesmo já condenado, circulou livremente em
carros de luxo, frequentando os melhores restaurantes e distribuindo gorjetas fartas, como um
homem vitorioso. O sistema que tínhamos não era garantista. Ele era grosseiramente
injusto e difundia a impressão de que neste país o crime compensa.

II.3. O caso Edmundo


19. Em dezembro de 1995, um conhecido jogador de futebol, saindo da balada,
dirigindo seu carro a 120 Km por hora na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, provocou um
acidente e a morte de 3 pessoas. Foi condenado em outubro de 1999 a uma pena de 4 anos e
meio de prisão. Seus advogados entraram com nada menos do que 21 recursos, apenas no
STJ. E outros tantos no STF. Em 2011, o Ministro Joaquim Barbosa declarou a prescrição da
pena. O processo ainda aguarda julgamento do Plenário. As famílias das três jovens vítimas
do crime podem assisti-lo livre e feliz como comentarista de jogos de futebol na televisão. O
sistema que tínhamos não era garantista. Ele era um golaço da impunidade.

8
II.4. O caso Pedro Talvane
20. Suplente de Deputado Federal foi denunciado pela morte da titular do
cargo, para tomar-lhe a vaga. A acusação é de que havia contratado pistoleiros que
mataram a Deputada, seu marido e outras duas vítimas, no episódio que ficou
conhecido como “Chacina da Gruta”. O fato se passou em 1998. O réu aguardou em
liberdade o julgamento pelo Tribunal do Júri que, em razão de recursos protelatórios,
só ocorreu em 2012, mais de 13 anos depois. Ele foi condenado a 103 anos e 4 meses
de reclusão. Somente aí, então, se deu a prisão preventiva do réu. Ele recorreu da
decisão e o processo se encontra pendente de recurso especial interposto perante o STJ
(REsp 1449981/AL). O sistema que tínhamos não era garantista. Ele era
grosseiramente injusto e funcionava como estímulo aos comportamentos mais
bárbaros, ao primitivismo puro e simples.

21. Aliás, duas outras conclusões podem ser extraídas deste caso: (i) a
primeira: a condenação pelo Tribunal do Júri em razão de crime doloso contra a vida
deve ser executada imediatamente, como decorrência natural da competência soberana
do júri conferida pelo art. 5º, XXXVIII, d; (ii) a segunda: confirmada a decisão de
pronúncia pelo Tribunal de 2º grau, o júri pode ser realizado. Para que não haja dúvida da
origem espúria do falso garantismo nessa matéria: a regra sempre fora a prisão do acusado por
homicídio após a pronúncia. Foi a Lei nº 5.941, de 22.11.1973, que mudou a disciplina que
até então vigorava. A motivação jamais foi desconhecida: o regime militar aprovou a lei a
toque de caixa para impedir a prisão do Delegado Sérgio Paranhos Fleury, notório torturador e
protegido dos donos do poder de então, condenado por integrar um esquadrão da morte.

II.5. Caso da Missionária Dorothy Stang


22. A missionária norte-americana, naturalizada brasileira, Dorothy Stang
atuava em projetos sociais na região de Anapu, no sudoeste do Pará. Foi morta aos 73
anos, em fevereiro de 2005, por pistoleiros, a mando de um fazendeiro da região. O
júri realizou-se em setembro de 2013, com a condenação de Vitalmiro Bastos de
Moura a 30 anos de prisão. Com muitas idas e vindas, passaram-se oito anos até o
julgamento de primeiro grau. Vale dizer: se não tivesse sido preso preventivamente, o
assassino ainda estaria aguardando em liberdade o trânsito em julgado, que não
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ocorreu até hoje. Isso não é garantismo. É a desmoralização do país perante a
comunidade internacional, que acompanha o caso com interesse.

23. E aqui cabe uma menção especial. O número de presos preventivamente


no Brasil – isto é, pessoas que estão presas antes do trânsito em julgado da decisão – é
de cerca de 40%, ao que se noticia. Uma das razões para a prisão antes do término do
processo – o que, em rigor, constitui uma distorção – é, precisamente, a demora
interminável para que cheguem ao fim. Para evitar a impunidade prolongada, quando
não a prescrição, os juízes decretam a prisão antecipada.

24. Há incontáveis casos em que coisas semelhantes se passaram. Porque esta é a


regra. Apenas a título exemplificativo, no mesmo dia em que nós julgamos o HC 126.292,
mudando a jurisprudência nesta matéria, estava na pauta um RE de relatoria da Ministra Rosa
Weber. O caso envolvia um homicídio qualificado cometido em 1991. Depois de recursos
infindáveis contra a sentença de pronúncia, o réu foi condenado pelo Tribunal do Júri em
1995. Em 2016, a pena ainda não havia sido cumprida, pela interposição sucessiva de
recursos descabidos. Quem quiser ler esta história, humanizada, com os nomes dos
personagens e das famílias devastadas, pode ler a história publicada pelo jornalista Vinícius
Gorczeski, na Revista Época. Quando se colocam nomes, sentimentos, sofrimentos,
inconformismo, o absurdo do sistema fica mais visível.

III. FATORES IMPORTANTES NA CONSTRUÇÃO DE UM PAÍS


25. A Constituição brasileira, no seu Preâmbulo, elegeu como valores supremos da
sociedade brasileira os direitos individuais, a liberdade, a segurança, a igualdade e a justiça. A
construção do país idealizado pelos constituintes de 1988 exige:
a) educação de qualidade desde a pré-escola, para permitir que as pessoas
tenham igualdade de oportunidades e possam fazer escolhas esclarecidas na vida;
b) distribuição adequada de riquezas, poder e bem estar, para que as pessoas
possam ser verdadeiramente livres e iguais, e se sentirem integrantes de uma comunidade
política que as trata com respeito e consideração; e
c) debate público democrático e de qualidade, no qual a livre circulação de
ideias e de opiniões permita a busca das melhores soluções para as necessidades e angústias
da coletividade.
10
26. Dentro desta perspectiva, o direito penal está longe de figurar no topo da lista
dos instrumentos mais importantes para realizar o ideário constitucional de fraternidade,
pluralismo e tolerância. Talvez por isso mesmo, ele tenha sido largamente negligenciado no
Brasil desde a redemocratização. A verdade, porém, é que no atual estágio da condição
humana o bem nem sempre consegue se impor por si próprio. A ética, o ideal de vida boa
precisa de um impulso externo também. Entre nós, no entanto, a ausência de um direito penal
minimamente efetivo e igualitário funcionou como um estímulo a diversos tipos de
criminalidade. Criamos um país no qual o crime frequentemente compensa. Isso vale,
particularmente, para a chamada criminalidade de colarinho branco, universo no qual se situa
o fenômeno da corrupção.

IV. O PAPEL DO DIREITO PENAL


27. Por ter uma história marcada pelo autoritarismo, quando não pela truculência,
crescemos no Brasil, por justas razões, com grande desconfiança em relação à repressão
estatal. Ainda assim, não é possível imaginar uma sociedade democrática, justa e de pessoas
livres e iguais sem o respeito a determinados valores e bens jurídicos. Em toda sociedade
democrática, o direito penal tem um papel importante a desempenhar. O mais destacado deles
é o que a doutrina denomina de prevenção geral: as pessoas na vida tomam decisões baseadas
em incentivos e riscos. Se há incentivos para a conduta ilícita – como o ganho fácil e farto – e
não há grandes riscos de punição, a sociedade experimenta índices elevados de criminalidade.

28. Em passagem que se tornou clássica, Cesare Beccaria assentou que é a certeza
da punição, mais do que a intensidade da pena, o grande fator de prevenção da criminalidade.
Não é necessário o excesso de tipificações nem tampouco a exacerbação desmedida da pena.
O sistema punitivo pode e deve ser moderado. Mas tem que ser sério.

V. OS NÚMEROS RELEVANTES
29. Conforme explicitado no meu voto no HC 126.292, o percentual de recursos
extraordinários providos em favor do réu é irrisório, inferior a 1,5%4. Mais relevante ainda: de

4
Segundo dados oficiais da assessoria de gestão estratégica do STF, referentes ao período de 01.01.2009 até
19.04.2016, o percentual médio de recursos criminais providos (tanto em favor do réu, quanto do MP) é de
2,93%. Já a estimativa dos recursos providos apenas em favor do réu aponta um percentual menor, de 1,12%.
Como explicitado no texto, os casos de absolvição são raríssimos. No geral, as decisões favoráveis ao réu
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1.01.2009 a 19.04.2016, em 25.707 decisões de mérito proferidas em recursos criminais pelo
STF (REs e agravos), as decisões absolutórias não chegam a representar 0,1% do total de
decisões5. No Superior Tribunal de Justiça, de acordo com dados do projeto Supremo em
Números, da Fundação Getúlio Vargas, a média de provimento de recursos especiais (tanto os
admitidos na origem como os que são processados via agravo de instrumento) é de 9,1% em
favor dos réus. Não há estatística acerca de qual percentual resultou efetivamente em
absolvição, mas tal como ocorre no STF, ele deve ser bastante baixo. A maior parte dos
provimentos de recurso dizem respeito ao regime de pena e à dosimetria.

VI. OBSERVAÇÕES FINAIS À PARTE I


30. Antes de demonstrar a constitucionalidade da orientação adotada pelo Supremo
Tribunal Federal no HC 126.292 e de explicitar como o art. 283 deve ser interpretado para
que possa subsistir validamente, duas observações são oportunas:
a) sempre que houver um tribunal acima de outro, com poder de revisão,
haverá reforma. A questão, portanto, é de competência, e não de justiça; e
b) o tratamento de desprezo e desprestígio que tem sido dado aos tribunais
estaduais e aos tribunais regionais federais, como instâncias incapazes de aplicar o direito
com competência e seriedade, é preocupante. Ou estes tribunais funcionam muito mal e
precisamos voltar nossa atenção para eles; ou a crítica é injusta e deve ser revista. Em
qualquer caso, a solução não é o modelo de processos que não terminam nunca.

Parte II
A CONSTITUCIONALIDADE DA EXECUÇÃO DA CONDENAÇÃO PENAL
APÓS A DECISÃO DE SEGUNDO GRAU

I. A OSCILAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF NA MATÉRIA

31. A Constituição Federal proclama, em seu art. 5º, LVII, que “ninguém será

consistiram em: provimento dos recursos para remover o óbice à progressão de regime, remover o óbice à
substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, remover o óbice à concessão de regime
menos severo que o fechado no caso de tráfico, reconhecimento de prescrição e refazimento de dosimetria.
5
Em verdade, foram identificadas apenas nove decisões absolutórias, representando 0,035% do total de decisões
(ARE 857130, ARE 857.130, ARE 675.223, RE 602.561, RE 583.523, RE 755.565, RE 924.885, RE 878.671,
RE 607.173, AI 580.458). Deve-se considerar a possibilidade de alguma margem de erro, por se tratar de
pesquisa artesanal. Ainda assim, não há risco de impacto relevante quer sobre os números absolutos quer sobre o
percentual de absolvições.
12
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. O
dispositivo consagra o princípio da presunção de inocência, ou – em expressão mais técnica –
o princípio da presunção de não culpabilidade6. Desde a promulgação da Carta de 1988 até
2009, vigeu nesta Corte o entendimento de que essa norma não impedia a execução da pena
após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau de jurisdição, ainda que
pendentes de julgamento os recursos extraordinário (RE) e especial (REsp)7. Em linhas gerais,
isso se dava pelo fato de que tais recursos não desfrutam de efeito suspensivo nem se prestam
a rever condenações (a realizar a justiça do caso concreto), mas tão somente a reconhecer
eventual inconstitucionalidade ou ilegalidade dos julgados de instâncias inferiores, sem
qualquer reexame de fatos e provas.

32. Em julgamento realizado em 5.02.2009, porém, este entendimento foi alterado


em favor de uma leitura mais literal do art. 5º, LVII. De fato, ao apreciar o HC 84.078, sob a
relatoria do Ministro Eros Grau, o Supremo Tribunal Federal, por 7 votos a 4, passou a
interpretar tal dispositivo como uma regra de caráter absoluto, que impedia a execução
provisória da pena com o objetivo proclamado de efetivar as garantias processuais dos réus.
Conforme a ementa do julgado, a ampla defesa “engloba todas as fases processuais, inclusive
as recursais de natureza extraordinária”, de modo que “a execução da sentença após o
julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa”8. Esta é
a orientação que vigorou até o julgamento do HC 126.292.

33. No HC 126.292 (Rel. Min. Teori Zavascki, j. em 17.02.2016), o Supremo


Tribunal Federal, também pela maioria de 7 votos, entendeu que a Constituição admite a
prisão do condenado após a decisão em segundo grau – vale dizer, após a condenação por
Tribunal de Justiça ou por Tribunal Regional Federal –, independentemente do trânsito em
julgado da decisão, isto é, enquanto ainda cabíveis recursos especial e extraordinário. Ficaram
vencidos na ocasião os Ministros Rosa Weber, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo
Lewandowski.

6
Sobre o tema, v. Anthair Edgard de Azevedo Valente e Gonçalvez, Inciso LVII do art. 5º da CF: uma
presunção à brasileira, mimeografado, 2009.
7
Veja-se, nesse sentido, os seguintes julgados: (i) no Plenário: HC 68.726, Rel. Min. Néri da Silveira,
HC 72.061, Rel. Min. Carlos Velloso; (ii) na Primeira Turma: HC 71.723, Rel. Min. Ilmar Galvão; HC
91.675, Rel. Min. Carmen Lúcia; HC 70.662, Rel. Min. Celso de Mello; e (iii) na Segunda Turma: HC
79.814, Rel. Min. Nelson Jobim; HC 80.174, Rel. Min. Maurício Corrêa; RHC 84.846, Rel. Min. Carlos
Veloso e RHC 85.024, Rel. Min. Ellen Gracie. Confiram-se, ainda, as Súmulas 716 e 717.
8
Votaram com a maioria os Ministros Eros Grau, Celso de Mello, Marco Aurélio, Cezar Peluso, Ayres
Britto, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. Votaram vencidos, pela manutenção da orientação
anterior, Menezes Direito, Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia e Ellen Gracie.
13
34. Em meu voto, defendi a ocorrência de uma mutação constitucional, isto é, de
uma transformação, por mecanismo informal, do sentido e do alcance do princípio
constitucional da presunção de inocência, apesar da ausência de modificação do seu texto. Na
matéria, tinha havido uma primeira mutação constitucional em 2009, quando o STF alterou
seu entendimento original sobre o momento a partir do qual era legítimo o início da execução
da pena. Encaminhou-se, porém, para nova mudança sob o impacto traumático da própria
realidade que se criou após a primeira mudança de orientação.

35. Com efeito, destaquei que a impossibilidade de execução da pena após o


julgamento final pelas instâncias ordinárias produziu três consequências muito negativas para
o sistema de justiça criminal. Em primeiro lugar, funcionou como um poderoso incentivo à
infindável interposição de recursos protelatórios. Tais impugnações movimentam a máquina
do Poder Judiciário, com considerável gasto de tempo e de recursos escassos, sem real
proveito para a efetivação da justiça ou para o respeito às garantias processuais penais dos
réus. No mundo real, o percentual de recursos extraordinários providos em favor do réu é
irrisório, inferior a 1,5% 9 . Mais relevante ainda: de 1.01.2009 a 19.04.2016, em 25.707
decisões de mérito proferidas em recursos criminais pelo STF (REs e agravos), as decisões
absolutórias não chegam a representar 0,1% do total de decisões10.

36. Em segundo lugar, reforçou a seletividade do sistema penal. A ampla (e quase


irrestrita) possibilidade de recorrer em liberdade aproveita sobretudo aos réus abastados, com
condições de contratar os melhores advogados para defendê-los em sucessivos recursos. Em
regra, os réus mais pobres não têm dinheiro (nem a Defensoria Pública tem estrutura) para
bancar a procrastinação. Não por acaso, na prática, torna-se mais fácil prender um jovem de
periferia que porta 100g de maconha do que um agente político ou empresário que comete

9
Segundo dados oficiais da assessoria de gestão estratégica do STF, referentes ao período de
01.01.2009 até 19.04.2016, o percentual médio de recursos criminais providos (tanto em favor do réu,
quanto do MP) é de 2,93%. Já a estimativa dos recursos providos apenas em favor do réu aponta um
percentual menor, de 1,12%. Como explicitado no texto, os casos de absolvição são raríssimos. No
geral, as decisões favoráveis ao réu consistiram em: provimento dos recursos para remover o óbice à
progressão de regime, remover o óbice à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de
direitos, remover o óbice à concessão de regime menos severo que o fechado no caso de tráfico,
reconhecimento de prescrição e refazimento de dosimetria.
10
Em verdade, foram identificadas apenas nove decisões absolutórias, representando 0,035% do
total de decisões (ARE 857130, ARE 857.130, ARE 675.223, RE 602.561, RE 583.523, RE 755.565,
RE 924.885, RE 878.671, RE 607.173, AI 580.458). Deve-se considerar a possibilidade de alguma
margem de erro, por se tratar de pesquisa artesanal. Ainda assim, não há risco de impacto relevante
quer sobre os números absolutos quer sobre o percentual de absolvições.
14
uma fraude milionária.

37. Em terceiro lugar, o novo entendimento contribuiu significativamente para


agravar o descrédito do sistema de justiça penal junto à sociedade. A necessidade de aguardar
o trânsito em julgado do REsp e do RE para iniciar a execução da pena tem conduzido
massivamente à prescrição da pretensão punitiva 11 ou ao enorme distanciamento temporal
entre a prática do delito e a punição definitiva. Em ambos os casos, produz-se deletéria
sensação de impunidade, o que compromete, ainda, os objetivos da pena, de prevenção
especial e geral. Um sistema de justiça desmoralizado não serve ao Judiciário, à sociedade,
aos réus e tampouco aos advogados.

38. A partir desses três fatores, tornou-se evidente que não se justifica no cenário
atual a leitura mais conservadora e extremada do princípio da presunção de inocência, que
impede a execução (ainda que provisória) da pena quando já existe pronunciamento
jurisdicional de segundo grau (ou de órgão colegiado, no caso de foro por prerrogativa de
função) no sentido da culpabilidade do agente. É necessário conferir ao art. 5º, LVII a
interpretação mais condizente com as exigências da ordem constitucional no sentido de
garantir a efetividade da lei penal, em prol dos bens jurídicos que ela visa resguardar, tais
como a vida e a integridade psicofísica – todos com status constitucional. Ainda que o STF
tenha se manifestado em sentido diverso no passado, e mesmo que não tenha havido alteração
formal do texto da Constituição de 1988, o sentido que lhe deve ser atribuído
inequivocamente se alterou. Fundado nessa premissa, entendi que a Constituição Federal e o
sistema penal brasileiro admitem – e justificam – a execução da pena após a condenação em
segundo grau de jurisdição, ainda sem o trânsito em julgado, destacando múltiplos
fundamentos que legitimam esta compreensão, resumidos a seguir.

II. FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS QUE LEGITIMAM A DE EXECUÇÃO DA


CONDENAÇÃO PENAL APÓS A DECISÃO DE SEGUNDO GRAU

39. No HC 126.292, concluí que a execução da pena após a decisão condenatória


em segundo grau de jurisdição não ofende o princípio da presunção de inocência ou da não

11
De acordo com o CNJ, somente nos anos de 2010 e 2011, a Justiça brasileira deixou prescrever
2.918 ações envolvendo crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/60017-justica-condena-205-por-corrupcao-lavagem-e-improbidade-
em-2012
15
culpabilidade (CF/1988, art. 5º, LVII). Ao contrário, a prisão, neste caso, justifica-se pela
conjugação de três fundamentos jurídicos.

40. Em primeiro lugar, a Constituição brasileira não condiciona a prisão – mas,


sim, a certeza jurídica acerca da culpabilidade – ao trânsito em julgado da sentença penal
condenatória. O pressuposto para a privação de liberdade é a ordem escrita e fundamentada da
autoridade judiciária competente, e não sua irrecorribilidade. Para chegar a essa conclusão,
basta uma leitura sistemática dos incisos LVII e LXI do art. 5º da Carta de 1988, à luz do
princípio da unidade da Constituição. Enquanto o inciso LVII define que “ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, logo abaixo,
o inciso LXI prevê que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada de autoridade judiciária competente”. Assim, é evidente que a Constituição
diferencia o regime da culpabilidade e o da prisão.

41. Em segundo lugar, a presunção de inocência é princípio (e não regra) e, como


tal, pode ser aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros
princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes. No caso específico da condenação em
segundo grau de jurisdição, na medida em que já houve demonstração segura da
responsabilidade penal do réu e finalizou-se a apreciação de fatos e provas, o princípio da
presunção de inocência adquire menor peso ao ser ponderado com o interesse constitucional
na efetividade da lei penal, em prol dos objetivos e bens jurídicos tutelados pelo direito penal
(CF/1988, arts. 5º, caput e LXXVIII e 144).

42. Em terceiro lugar, com o acórdão penal condenatório proferido em grau de


apelação esgotam-se as instâncias ordinárias e a execução da pena passa a constituir, em
regra, exigência de ordem pública, entendida como a eficácia do direito penal exigida para a
proteção da vida, da segurança e da integridade das pessoas e de todos os demais fins que
justificam o próprio sistema criminal. É intuitivo que, quando um crime é cometido e seu
autor é condenado em segundo grau de jurisdição, mas não é punido ou é punido décadas
depois, tanto o condenado quanto a sociedade perdem a necessária confiança na jurisdição
penal. Assim, ainda que não houvesse fundamento constitucional direto para legitimar a
prisão após a condenação em segundo grau, ela se justificaria nos termos da legislação
ordinária. Isso, é claro, não exclui a possibilidade de que o réu recorra ao STF ou ao STJ para
corrigir eventual abuso ou erro das decisões de primeiro e segundo graus, o que continua a
16
poder ser feito pela via do HC, além de poder requerer, em situações extremas, a concessão de
efeito suspensivo no RE ou no REsp.

43. Por fim, apontei três fundamentos pragmáticos que reforçam a opção pela
interpretação adotada, ao demonstrar que a execução provisória de acórdão penal
condenatório proferido em 2o grau de jurisdição pode contribuir para a melhoria do sistema de
justiça criminal. Primeiro, a interpretação permite tornar o sistema de justiça criminal mais
funcional e equilibrado, na medida em que (i) coíbe a abusiva e infindável interposição de
recursos protelatórios, que impedia que condenações proferidas em grau de apelação
produzissem qualquer consequência, conferindo aos recursos aos tribunais superiores efeito
suspensivo que eles não têm por força de lei; bem como (ii) favorece a valorização e a
autoridade das instâncias ordinárias, algo que há muito se perdeu no Brasil, pelo fato de o juiz
de primeiro grau e o Tribunal de Justiça terem passado a funcionar como instâncias de
passagem até a apreciação pelos Tribunais Superiores.

44. Segundo, a execução provisória da condenação penal após a decisão de 2o grau


diminui a seletividade do sistema punitivo brasileiro, tornando-o mais republicano e
igualitário, bem como reduz os incentivos à criminalidade de colarinho branco, decorrente do
mínimo risco de cumprimento efetivo da pena. Antes da mudança jurisprudencial, em regra,
apenas as pessoas com mais recursos financeiros, mesmo que condenadas, não cumpriam a
pena ou conseguiam procrastinar a sua execução por mais de 20 anos. Como é intuitivo, essa
não era a situação das pessoas que hoje superlotam as prisões brasileiras (muitas vezes, sem
qualquer condenação de primeiro ou segundo graus), que não têm condições de manter
advogado para interpor um recurso atrás do outro. Boa parte desses indivíduos, aliás, já se
encontra presa preventivamente por força do art. 312 do Código de Processo Penal.

45. Terceiro, promove-se a quebra do paradigma da impunidade do sistema


criminal, ao evitar que a necessidade de aguardar o trânsito em julgado do recurso
extraordinário e do recurso especial impeça a aplicação da pena (pela prescrição) ou cause
enorme distanciamento temporal entre a prática do delito e a punição. Assim, ao evitar que a
punição penal possa ser retardada por anos e mesmo décadas, fortalece-se a tutela dos bens
jurídicos resguardados pelo direito penal, bem como restaura-se a própria confiança da
sociedade na Justiça criminal.

17
46. Em razão de todos esses motivos, concluí que o princípio da presunção de
inocência ou da não culpabilidade não impede a execução da pena após a decisão
condenatória de segundo grau de jurisdição.

Parte II
O ART. 283 DO CPP NÃO OBSTA A EXECUÇÃO
DA CONDENAÇÃO PENAL APÓS A DECISÃO DE SEGUNDO GRAU

III. PEDIDOS PRINCIPAIS: A CORRETA INTERPRETAÇÃO DO ART. 283 DO CPP À LUZ DA

CONSTITUIÇÃO

47. Nas presentes ações diretas, postula-se a declaração de constitucionalidade do


art. 283 do Código de Processo Penal, que prevê que “ninguém poderá ser preso senão em
flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente,
em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação
ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Ambas as ações
apontam uma suposta omissão do STF no julgamento do HC 126.292 quanto à validade de
referido dispositivo legal, que, em seu sentido literal mais óbvio, impediria o cumprimento da
pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Desde logo deixo consignado que
meu voto enfrentou expressamente a questão do art. 283 do CPC, em parágrafo específico a
ele dedicado, como se verá logo adiante.

48. As ADCs veiculam, porém, fundamentos diversos para defender a


compatibilidade do art. 283 do CPP com a Constituição. De um lado, a ADC 43 não discute a
possibilidade constitucional de execução da pena após a decisão de segundo grau, mas alega
que o art. 283, ao condicionar a prisão ao trânsito em julgado, veicularia uma opção legítima e
razoável do legislador à luz da “moldura” prevista na Carta de 1988. De outro lado, a ADC 44
aduz que o dispositivo do Código de Processo Penal apenas reproduz o teor do art. 5º, LVII e
LXI, da CF/1988, de modo que declará-lo inconstitucional implicaria a inconstitucionalidade
das próprias normas constitucionais originárias, o que não é admitido pelo STF.

49. Começo por afastar a última alegação. Como demonstrei em meu voto no HC
126.292, ao contrário do que uma leitura apressada da literalidade do inc. LVII do art. 5º

18
poderia sugerir, a Constituição brasileira não condiciona a prisão – mas sim a culpabilidade –
ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Tal norma define que “ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. É o inc.
LXI que trata da prisão e este, diferentemente do anterior, não exige o trânsito em julgado
para fins de privação de liberdade, mas, sim, determinação escrita e fundamentada expedida
por autoridade judiciária. Nesse sentido, prevê que “ninguém será preso senão em flagrante
delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente”. Assim,
considerando-se ambos os incisos, é evidente que a Constituição diferencia o regime da
culpabilidade e o da prisão. Não há, portanto, que se falar que o art. 283 do CPP apenas
“espelha” o disposto no texto constitucional e, por isso, não poderia ser questionado.

50. Já em relação à alegação de legitimidade do art. 283 à luz da Carta de 1988, é


razoável suspeitar que uma das leituras possíveis do art. 283 do Código de Processo Penal
(com redação dada pela Lei nº 12.403/2011) é aquela que limita a prisão às hipóteses de
(i) trânsito em julgado de sentença condenatória, (ii) prisão temporária ou (iii) prisão
preventiva. Apesar disso, penso que é tanto necessário, quanto possível extrair do dispositivo
interpretação que comporte a possibilidade de execução provisória da pena antes do trânsito
em julgado da condenação, de modo a compatibilizá-lo com a exigência constitucional de
efetividade e credibilidade do sistema de justiça criminal.

51. Os direitos ou garantias não são absolutos12, o que significa que não se admite
o exercício ilimitado das prerrogativas que lhes são inerentes, principalmente quando
veiculados sob a forma de princípios (e não regras), como é o caso da presunção de inocência.
Enquanto princípio, tal presunção pode ser restringida por outras normas de estatura
constitucional (desde que não se atinja o seu núcleo essencial), sendo necessário ponderá-la
com os outros objetivos e interesses em jogo.

52. Na discussão sobre a execução da pena depois de proferido o acórdão


condenatório pelo Tribunal competente, o princípio da presunção de inocência está em tensão
com o interesse constitucional na efetividade da lei penal, em prol dos objetivos (prevenção
geral e específica) e bens jurídicos (vida, dignidade humana, integridade física e moral, etc.)
tutelados pelo direito penal, com amplo lastro na Constituição (arts. 5º, caput e LXXVIII e
12
STF, MS 23452, Rel. Min. Celso de Mello: “OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NÃO TÊM
CARÁTER ABSOLUTO. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se
revistam de caráter absoluto.”
19
144). Nessa ponderação, com a decisão condenatória em segundo grau de jurisdição, há
sensível redução do peso do princípio da presunção de inocência e equivalente aumento do
peso atribuído à exigência de efetividade do sistema penal. É que, de um lado, já há
demonstração segura da autoria e materialidade e necessariamente se tem por finalizada a
apreciação de fatos e provas. E, de outro, permitir o enorme distanciamento temporal entre
fato, condenação e efetivo cumprimento da pena (que em muitos casos conduz à prescrição)
impede que o direito penal seja sério, eficaz e capaz de prevenir os crimes e dar satisfação à
sociedade. Nessa situação, o sacrifício que se impõe ao princípio da não culpabilidade –
prisão do acusado condenado em segundo grau antes do trânsito em julgado – é superado pelo
que se ganha em proteção da efetividade e da credibilidade da Justiça. E mais: interditar a
prisão quando já há condenação em segundo grau confere proteção deficiente a bens jurídicos
constitucionais tutelados pelo direito penal muito caros à ordem constitucional de 1988.

53. Dessa ponderação decorre que, uma vez proferida a decisão condenatória de
segundo grau, deve se iniciar o cumprimento da pena. A prisão na hipótese decorre, assim, de
fundamento diretamente constitucional, limitando a esfera de liberdade do legislador. Já em
meu voto no HC 126.292 manifestei-me no sentido de que tal ponderação de bens jurídicos
não é obstaculizada pelo art. 283, CPP, nos seguintes termos: “Note-se que este dispositivo
admite a prisão temporária e a prisão preventiva, que podem ser decretadas por fundamentos
puramente infraconstitucionais (e.g., “quando imprescindível para as investigações do
inquérito policial” – Lei nº 9.760/89 – ou “por conveniência da instrução criminal” – CPP,
art. 312). Naturalmente, não serve o art. 283 do CPP para impedir a prisão após a
condenação em segundo grau – quando já há certeza acerca da materialidade e autoria – por
fundamento diretamente constitucional. Acentue-se, porque relevante: interpreta-se a
legislação ordinária à luz da Constituição, e não o contrário”.

54. Por esses motivos, deve-se conferir interpretação conforme a Constituição ao


art. 283 do CPP, com a redação dada pela Lei nº 12.403/2011, para, em juízo de cognição
sumária, se excluir a possibilidade de que o texto do dispositivo seja interpretado no sentido
de obstar a execução provisória da pena depois da decisão condenatória de segundo grau e
antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Note-se que o próprio art. 283, ao
admitir a prisão temporária e a prisão preventiva – ambas decretáveis antes mesmo da
primeira decisão condenatória –, é perfeitamente compatível com a prisão após o julgamento
em segundo grau, quando então, já concluída a instrução e exercida a ampla defesa, se
20
estabeleceu certeza jurídica acerca da materialidade e autoria. Trata-se, portanto, de uma
decisão interpretativa que apenas exclui uma das possibilidades de sentido da norma,
afirmando-se uma interpretação alternativa, compatível com a Constituição. Como se vê, a
técnica não importa em nulidade da norma, de modo a preservar a sua presunção de
constitucionalidade.

55. Ademais, nesse caso, inexiste a afronta ao princípio da reserva de plenário na


decretação das prisões antes do trânsito em julgado (CF/1988, art. 97 e SV 10) alegada na
ADC 44. O fundamento da Súmula Vinculante 10 é o art. 97 da Constituição, que veda a
declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo por órgão fracionário de tribunal.
O objetivo da norma é preservar a presunção de constitucionalidade dos atos do Poder
Público, cuja superação é considerada tão grave que depende de decisão tomada pela maioria
absoluta dos membros da corte ou de seu órgão especial. Naturalmente, ainda mais ofensiva
que a simples declaração de invalidade seria o afastamento dissimulado da lei por invocação
da Carta. Por isso é que a súmula vinculante 10 considera igualmente nulo o acórdão “que,
embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder
Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte ”.

56. Isso não significa, por óbvio, que os órgãos fracionários estejam proibidos de
interpretar a legislação ordinária, com ou sem referência expressa à Constituição. A aplicação
do direito pressupõe a definição do seu sentido e alcance. Essa é a atividade cotidiana dos
tribunais e seus órgãos fracionários. O que não se admite é o afastamento do ato, por norma
constitucional, sem observância da reserva de plenário. A diferença entre as duas hipóteses
nem sempre será clara, mas há uma zona de certeza positiva quanto à incidência do art. 97: se
o tribunal de origem esvaziar a lei ou o ato normativo – i.e. , se não restar qualquer espaço
para a aplicação do preceito legal –, não haverá dúvida de que terá ocorrido um afastamento, e
não uma simples interpretação.

57. No caso, porém, das decisões de tribunais que, após o julgamento do HC


126.292, determinaram a privação da liberdade do condenado antes do trânsito em julgado da
condenação não houve violação à cláusula de reserva de plenário. Em verdade, os tribunais
apenas conferiram ao art. 282 do CPP interpretação condizente com o texto constitucional, do
qual decorre diretamente o fundamento da possibilidade de privação de liberdade após
condenação em segundo grau. Ainda que assim não fosse, tanto no CPC/1973 (art. 481, p.
21
único), quanto no CPC/2015 (art. 949, p. único) prevê-se que “os órgãos fracionários dos
tribunais não submeterão ao plenário ou ao órgão especial a arguição de inconstitucionalidade
quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a
questão”. Assim, a manifestação plenária do STF no julgamento do HC 126.292 afasta a
reserva de plenário.

58. Tampouco há que se falar de violação ao princípio da reserva legal, como


sustenta o requerente da ADC 43. Não se trata, aqui, de criação, pelo STF, de nova
modalidade de prisão sem previsão em lei, mas de modalidade, que além de ter fundamento
diretamente constitucional, é extraída do art. 637 do CPP. Tal dispositivo prevê que “o recurso
extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do
traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença” e vale
igualmente em relação ao recurso especial (sem previsão na CF/1937) nos termos da Súmula
267 do STJ13. Tal preceito, antes mesmo da edição do art. 283 do CPP, funcionava como base
legal da execução da pena após condenação em segundo grau, que vigorou desde a
promulgação da Carta de 1988 até 2009. Isso porque, não tendo o REsp e o RE efeito
suspensivo (como afirma o art. 637, CPP), como decorrência lógica, já se pode iniciar a
execução penal (ainda que em caráter provisório) e a prisão se dá como efeito da própria
condenação.

59. E não é possível alegar-se que o art. 283 do CPP (com redação dada pela Lei nº
12.403/2011) é norma posterior e mais especial em relação ao art. 637 do CPP, de modo a
prevalecer em relação a este por meio do emprego dos critérios cronológico e da
especialidade. Em verdade, ao se conferir interpretação conforme a Constituição ao art. 283
do CPP para compatibilizá-lo com a Constituição de 1988, não resta conflito entre os ambos
os preceitos. Ao contrário, ambos harmonizam-se perfeitamente.

60. Além disso, seria até mesmo possível extrair a previsão legal para a prisão
após sentença condenatória de segundo grau do próprio art. 283 do CPP, na parte em que
autoriza a prisão preventiva no curso do processo. É que, ainda que não houvesse fundamento
direto na Carta de 1988, com o esgotamento das instâncias ordinárias, a execução da pena

13
STJ, Súmula 267: “a interposição de recurso, sem efeito suspensivo, contra decisão condenatória
não obsta a expedição de mandado de prisão” .
22
passa a constituir exigência de ordem pública (art. 312, CPP14), necessária para assegurar a
credibilidade do Poder Judiciário e do sistema penal. Nessa hipótese, porém, dispensa-se
motivação específica pelo magistrado da necessidade de “garantia da ordem pública” e do não
cabimento de medidas cautelares alternativas, valendo, para fins dos arts. 315 e 282, § 6o,
CPP 15 , a própria condenação em segundo grau como demonstração suficiente para a
decretação da prisão.

61. A afronta à efetividade da justiça criminal e à ordem pública pela necessidade


de se aguardar o trânsito em julgado do RE e do REsp torna-se ainda mais patente pela análise
do baixo índice de provimento dos recursos de natureza extraordinária, tanto no STF, quanto
no STJ. Segundo dados oficiais da assessoria de gestão estratégica do STF, referentes ao
período de 01.01.2009 até 19.04.2016, o percentual médio de recursos extraordinários
criminais providos em favor do réu foi de 1,12%. Já no caso do STJ, dados fornecidos pela
Presidência do Tribunal indicam que os recursos especiais criminais providos em favor do réu
no período de 01.01.2009 até 20.06.2016 foi de 10,29%16.

62. Não se ignora que em relação a algumas unidades da federação verificam-se


taxas mais elevadas de sucesso nesses recursos, especialmente os interpostos perante o STJ.
Também não se ignora que, como o sistema prisional é integrado majoritariamente pela
parcela mais vulnerável da população, que estes acabem sendo de alguma forma atingidos.
Porém, entendo que o problema decorre especialmente do fato de que Tribunais em algumas
unidades da federação se mantêm recalcitrantes em cumprir a jurisprudência pacífica dos
tribunais superiores (algumas vezes, até mesmo súmulas vinculantes). A situação é
especialmente dramática em ilícitos relacionados às drogas, já que são responsáveis por 28%
da população prisional17.

14
CPP, Art. 312: A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem
econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal,
quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. (Redação dada pela Lei nº
12.403, de 2011).
15
CPP, art. 315: A decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre
motivada. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
o
CPP, art. 282, § 6 : A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição
por outra medida cautelar (art. 319). (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
16
Dados fornecidos pela assessoria do Ministro Presidente do STJ, extraídos das seguintes fontes:
SJD, SOJ, Gabinetes de Ministros e STI. Foram computados os AREsp e REsp providos em favor do
réu e DP no período de 01/01/2009 até 20/06/2016 por classe de feito
17
Conforme dados do Depen de 2016, referentes a dezembro de 2014. Disponível em:
<http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf/@@download/file>
23
63. Nesse cenário, penso que, em princípio, a questão não deve se resolver com
prejuízo à funcionalidade do sistema penal (excluindo-se a possibilidade de prisão após a
condenação em segundo grau), mas com ajustes pontuais que atinjam a própria causa do
problema e que permitam maior grau de observância à jurisprudência dos tribunais superiores.
É possível, por exemplo, pensar em medidas que favoreçam o cumprimento das decisões do
STJ e do STF, como a edição de súmulas vinculantes em matéria penal nos casos em que se
verificar maior índice de descumprimento de precedentes dos tribunais. Outra opção seria
determinar ao CNJ a realização de mutirões carcerários com maior frequência nessas unidades
federativas. Assim é possível até mesmo restabelecer-se o prestígio e a autoridade das
instâncias ordinárias, algo que se perdeu no Brasil a partir do momento em que o juiz de
primeiro grau e o Tribunal de Justiça passaram a ser instâncias de passagem, aguardando-se
que os recursos subam para o Superior Tribunal de Justiça e, depois, para o Supremo Tribunal
Federal. Ainda assim, para evitar prejuízos aos réus, especialmente aqueles hipossuficientes,
recomenda-se, nos casos em que se verificar tal índice de provimento desproporcional, a
adoção, nos tribunais superiores, de jurisprudência mais permissiva quanto ao cabimento de
habeas corpus que permita a célere correção de eventual abuso ou erro das decisões de
segundo grau.

64. Com base nesses fundamentos, indefiro os pedidos, em sede de medida


cautelar, de que (i) “não sejam deflagradas novas execuções provisórias de penas de prisão e
sejam suspensas as que já estiverem em curso, libertando-se, até que a presente ação seja
julgada, as pessoas que ora se encontram encarceradas, sem que a respectiva decisão
condenatória tenha transitado em julgado”, formulado na ADC 43; e de que (ii) haja a
“suspensão da execução antecipada da pena de todos os casos em que os órgãos fracionários
de Segunda Instância, com base no HC 126.292/SP, simplesmente ignoraram o disposto do
artigo 283 do Código de Processo Penal”, formulado na ADC 44.

IV. PEDIDOS SUBSIDIÁRIOS

IV.1. IMPOSSIBILIDADE DE EXCEPCIONAR O STJ DA APLICAÇÃO DO NOVO ENTENDIMENTO

65. Na ADC, pede-se, ainda, que seja realizada interpretação conforme a


24
Constituição do artigo 637 do CPP, restringindo, enquanto não for julgado o mérito da ação, a
não produção do efeito suspensivo aos recursos extraordinários, e condicionando a aplicação
da pena à análise da causa criminal pelo STJ quando houver a interposição de recurso
especial”. Cita, para esse fim, os seguintes três fundamentos: (i) toda sentença criminal
condenatória necessariamente interpreta a lei federal, ao passo que, apenas excepcionalmente,
enfrenta com autonomia alguma questão constitucional; (ii) o juízo positivo de culpabilidade
consubstancia típico juízo jurídico, não bastando, para a afirmação da culpa, a formulação de
juízo meramente fático; e (iii) enquanto as funções do STF passaram por significativa
transformação nos últimos anos, com a objetivação do controle difuso de constitucionalidade,
as funções do STJ continuam compatíveis com a de um Tribunal Superior de recursos.

66. Em juízo de cognição sumária, entendo, porém, que não é o caso de


excepcionar o STJ da aplicação do entendimento do STF no HC 126.292. Embora as funções
exercidas por um e outro tribunal nas causas criminais não sejam idênticas, ambas as
instâncias são consideradas extraordinárias. Como se sabe, os recursos extraordinário e
especial não se prestam a rever as condenações, mas apenas a tutelar a higidez do
ordenamento jurídico constitucional e infraconstitucional. Por isso, nos termos da
Constituição, a interposição desses recursos pressupõe que a causa esteja decidida. É o que
preveem os artigos 102, III, e 105, III, que atribuem competência ao STF e ao STJ para julgar,
respectivamente, mediante recurso extraordinário e especial, “as causas decididas em única
ou última instância”. Ainda, tais recursos excepcionais não possuem efeito suspensivo (v. art.
637 do CPP e art. 1.029, § 5º, CPC/2015, aplicável subsidiariamente ao processo penal, por
força do art. 3º, do CPP), nem se deve reconhecer, no direito brasileiro, um direito ao triplo
(ou quádruplo) grau de jurisdição.

67. Desse modo, a manutenção da orientação da possibilidade de cumprimento da


pena após decisão em segundo grau prestigia tanto os tribunais ordinários (que deixam de
funcionar como instâncias de passagem), quanto os próprios STF e STJ, cujo acesso se deve
dar em situações efetivamente extraordinárias, e que não podem se transformar em tribunais
de revisão ou ter seu tempo e recursos escassos desperdiçados com a necessidade de proferir
decisões em recursos nitidamente inadmissíveis e protelatórios.

IV.2. NÃO CABIMENTO DA MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS DO ENTENDIMENTO DO STF

25
68. Por fim, o requerente afirma que, nos autos do HC 126.292, o STF produziu
interpretação mais gravosa quanto à possibilidade de prisão antes do trânsito da decisão
condenatória penal, superando seu entendimento pretérito, proferido no HC 84.078, no
sentido da impossibilidade de execução provisória da pena. Pondera, por outro lado, que a
Constituição veda expressamente que a lei retroaja para prejudicar o réu e que, se assim se
procede com a lei penal, o mesmo preceito deve ser observado quanto a eventuais alterações
jurisprudenciais mais gravosas em matéria penal, já que essas se equiparam a uma alteração
legislativa. Por essas razões e, ainda, sob a invocação dos princípios da segurança jurídica, da
boa-fé e da confiança dos jurisdicionados, o requerente da ADC 43 defende que o novo
entendimento do STF seja aplicado tão somente a ilícitos praticados posteriormente à
decisão de mérito proferida nesta ADC 43 ou, subsidiariamente, apenas a ilícitos praticados
posteriormente à decisão do HC 126.292. Ademais, em sede cautelar, pede que “não sejam
deflagradas novas execuções provisórias de penas de prisão e sejam suspensas as que já
estiverem em curso, libertando-se, até que a presente ação seja julgada, as pessoas que ora
se encontram encarceradas, sem que a respectiva decisão condenatória tenha transitado em
julgado”.

69. Não assiste razão ao postulante. Em primeiro lugar, é preciso observar que o
art. 5º, incs. XXXIX e XL, da Constituição prevê que: “Não há crime sem lei anterior que o
defina, nem pena sem prévia cominação legal” e que “A lei penal não retroagirá, salvo para
beneficiar o réu”. Destes dispositivos resulta uma vedação constitucional à caracterização
como crime de um ato que não estava tipificado como ilícito penal, à época em que praticado,
ou à aplicação de uma pena que não estava prevista na lei quando da ocorrência do delito.
Todavia, é preciso observar, em primeiro lugar, que o novo entendimento do Supremo
Tribunal Federal não cria novo crime ou nova sanção penal.

70. A nova interpretação produzida pelo Supremo Tribunal Federal versa


sobre matéria processual penal, sujeita à incidência imediata, nos termos do art. 2º do
Código de Processo Penal, segundo o qual: “A lei processual penal aplicar-se-á desde logo,
sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”. O próprio
Tribunal já assentou, por diversas vezes em sua jurisprudência, que a norma processual penal
aplica-se imediatamente, inclusive no que respeita a ilícitos praticados anteriormente ao início
de sua vigência. Confiram-se os trechos de acórdão a seguir:

26
“(...) IV - Nos termos do art. 2º do CPP, “a lei processual aplicar-se-
á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência
da lei anterior”. Desse modo, se lei nova vier a prever recurso antes
inexistente, após o julgamento realizado, a decisão permanece irrecorrível,
mesmo que ainda não tenha decorrido o prazo para a interposição do novo
recurso; se lei nova vier a suprimir ou abolir recurso existente antes da
prolação da sentença, não há falar em direito ao exercício do recurso
revogado. Se a modificação ou alteração legislativa vier a ocorrer na data
da decisão, a recorribilidade subsiste pela lei anterior. V - Há de se ter em
conta que a matéria é regida pelo princípio fundamental de que a
recorribilidade se rege pela lei em vigor na data em que a decisão for publicada
(...). (RE 752988 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 03.02.2014,
grifou-se)

“(...) 2. O art. 420 do Código de Processo Penal, com a redação


determinada pela Lei n.º 11.689/2008, de natureza processual, aplica-se de
imediato, inclusive aos processos em curso, e não viola a ampla defesa. [...].
4. Existência de vetoriais negativas do art. 59 do Código Penal autorizadoras
da elevação da pena acima do mínimo legal. 5. Habeas corpus extinto sem
resolução de mérito”. (HC 113723, rel. Min. Rosa Weber, DJ 04.12.2013,
grifou-se)

“(...) 4. A norma processual penal aplica-se de imediato, incidindo


sobre os processos futuros e em curso, mesmo que tenham por objeto
crimes pretéritos. 5. O art. 420 do Código de Processo Penal, com a redação
determinada pela Lei n.º 11.689/2008, como norma processual, aplica-se de
imediato, inclusive aos processos em curso, e não viola a ampla defesa. 6.
Recurso ordinário em habeas corpus a que se nega provimento.” (RHC 108070,
rel. Min. Rosa Weber, DJe, 05.10.2012, grifou-se)

71. A aplicabilidade imediata das normas processuais é excepcionada pelo STF nos
casos de leis penais de conteúdo misto, ou seja, no caso de normas que disponham sobre
direito material e sobre direito processual, como ocorreu, por exemplo, com a nova redação
conferida pela Lei 9.271/1996 ao art. 366 do Código de Processo Penal 18 . A nova lei
estabeleceu que a revelia (instituto processual) suspenderia o curso da prescrição (instituto de
direito material). Porque a disciplina processual impactava diretamente sobre a prescrição
entendeu-se que a suspensão do prazo extintivo não poderia ser aplicada a revelias

18
CPP, art. 366, com redação conferida pela Lei 9.271/1996: “Se o acusado, citado por edital, não
comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional,
podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso,
decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312”.
27
configuradas anteriormente à vigência da referida lei. Foi o que decidiu o STF no RHC
105730 (Rel. Min. Teori Zavascki, DJ 08.05.2014). Todavia, o entendimento sobre execução
provisória não configura norma de natureza mista. Ao proferi-lo, o Supremo Tribunal Federal
decidiu em que momento torna-se possível executar decisão judicial confirmada em, ao
menos, duas instâncias. Se a possibilidade de uma norma processual repercutir sobre a
liberdade implicasse sua automática configuração como norma mista ou vedasse sua
aplicação para ilícitos ocorridos anteriormente à sua vigência, a aplicabilidade imediata seria
uma exceção no processo penal e não a regra porque a privação da liberdade é o resultado
provável de inúmeros processos penais.

72. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não considera norma mista ou


norma penal material um dispositivo apenas porque ele pode impactar, de alguma forma,
sobre a liberdade do cidadão. Tanto é assim que o STF, em acórdão relatado pelo Min. Gilmar
Mendes (ARE 644850 ED, DJe, 04.11.2011), considerou norma meramente processual aquela
que dispôs sobre fiança, que possibilita justamente o relaxamento da prisão.

73. Por outro lado, a modulação dos efeitos temporais de uma decisão do STF
pressupõe a ponderação entre o dispositivo constitucional violado e os valores segurança
jurídica, proteção da confiança legítima e da boa-fé do administrado. Não há como sustentar,
contudo, que a segurança jurídica dos réus foi violada porque, se tivessem sabido que seriam
presos após decisão de segundo grau, não teriam cometido seus ilícitos ou teriam se defendido
no processo de forma diversa. Tampouco se pode afirmar que a afronta a esses princípios
estaria no fato de que o réu tinha depositado sua confiança na inefetividade do sistema penal à
época em que escolheu se apropriar do dinheiro público, matar, roubar ou e que, portanto, tem
direito a que tal sistema permaneça inefetivo.

74. O caso em exame difere daquele apreciado na AP 606-QO 19 e do caso do

19
Nos autos da Ação Penal 606, citada pelo requerente em sua inicial, decidiu-se que o momento
para a determinação do tribunal competente para julgar autoridade com foro especial é o final da
instrução processual. Por isso, eventual renúncia ao mandato, posterior a tal momento processual,
não ensejaria a perda da competência do STF. Como a alteração do critério poderia surpreender os
réus que pretendiam renunciar aos respectivos mandatos, porque antes dessa decisão o STF não
adotava esta posição, eu considerei a atribuir efeitos prospectivos à decisão. No entanto, no referido
caso, a instrução ainda não havia sido concluída porque o réu renunciou às vésperas da prova de
defesa, portanto, antes do final da instrução. A reflexão sobre a modulação de efeitos na hipótese
figurou, portanto, como mera conjectura, como mero obiter dictum, não apreciado de forma exaustiva
nem por mim nem pela Corte.
28
crédito presumido em matéria de IPI20 porque em ambos a conduta dos jurisdicionados se
pautou pela jurisprudência do STF, de forma que a mudança do critério jurisprudencial, nesses
casos, efetivamente surpreenderia tanto o deputado que esperou para renunciar ao mandato
com base no termo final estabelecido pela jurisprudência da Corte, quanto o contribuinte que
se creditou do IPI porque a jurisprudência do STF dizia que este creditamento era cabível.
Não é o que ocorre, contudo, no presente caso pelas razões já explicitadas. Portanto, entendo
que a pretendida modulação dos efeitos temporais do entendimento do Supremo Tribunal
Federal que admite a execução provisória da pena não é cabível.

V. CONCLUSÃO

75. Por todo o exposto, voto no sentido de conferir interpretação conforme a


Constituição ao art. 283 do CPP, com a redação dada pela Lei nº 12.403/2011, para, em juízo
de cognição sumária, se excluir a possibilidade de que o texto do dispositivo seja interpretado
no sentido de obstar a execução provisória da pena depois da decisão condenatória de
segundo grau e antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Além disso, indefiro os
pedidos de medida cautelar formulados nas ADCs 43 e 44, por ausência de plausibilidade
jurídica.
76. Afirmo, assim, a seguinte tese de julgamento: “É legítima a execução
provisória da pena após a decisão condenatória de segundo grau e antes do trânsito
em julgado, para garantir a efetividade do direito penal e dos bens jurídicos
constitucionais por ele tutelados, devendo-se conferir interpretação conforme a
Constituição ao artigo 283 do Código de Processo Penal, para excluir interpretação
diversa”.

20
No caso tributário a que, de igual modo, se refere o requerente em sua inicial, o novo entendimento
do Supremo Tribunal Federal implicava, na prática, majoração de tributo, em decorrência de mera
alteração jurisprudencial. Havia, portanto, alteração de interpretação sobre direito material. E o novo
entendimento surpreendia ilegitimamente o contribuinte porque, de acordo com o entendimento
sufragado até então pela Corte, era válido o crédito presumido em matéria de imposto sobre produtos
industrializados e, portanto, o contribuinte abatia o valor do crédito do imposto que tinha a pagar. Uma
guinada jurisprudencial com efeitos retroativos, nessa segunda hipótese, implicava em penalizar os
contribuintes que seguiram os precedentes do STF. Isso sim violaria a segurança jurídica, a boa-fé e
a confiança legítima dos jurisdicionados nas decisões proferidas pelo Supremo.
29

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