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Post nº 19

AÉCIO UNIFICA OS EXÉRCITOS


OCIDENTAIS E ATACA ÁTILA

Enquanto Átila assolava a Gália quase sem encontrar resistência, Aécio tentava coligar as potências
ocidentais para enfrentá-lo numa batalha decisiva (451 DC)
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No início de abril de 451 Átila atravessou o rio Reno na confluência do rio


Necker e devastou o nordeste da Gália como uma praga. Aécio ainda estava em Lion
organizando o exército com as poucas legiões que dispunha e os seus aliados
burgundos tentaram sozinhos deter o invasor, mas foram derrotados e o seu rei
Godofredo foi morto na batalha. Por isso os combatentes restantes retiraram-se para
os vastos pântanos do baixo Reno e uniram-se aos francos de Meroveu na Bélgica.

Após essa significativa vitória inicial de Átila, as poucas legiões couraçadas


de Aécio limitaram-se a lutas de guerrilhas contra o feroz inimigo, pois os 50.000
galo-romanos, mesmo contando com os 40.000 mil franco-burgundos de Meroveu,
com os quais ainda não haviam feito junção, não teriam como enfrentar em campo
aberto os 200.000 cavaleiros de Átila, mais do dobro do que Aécio reunira até então.

Quando Átila arrasou Trier em maio, Aécio viu que o momento da verdade
se aproximava e raspou o fundo do tacho, chamando ao continente a última grande
legião ainda aquartelada na Britannia. Dessa forma, aumentou substancialmente o
seu poderio militar, mas deixou a ilha sem qualquer proteção. Ele estava tendo sérios
problemas para concluir as alianças que lhe permitiriam enfrentar Átila em uma
batalha decisiva, pois Teodorico, rei dos visigodos, não havia superado as
divergências que ambos tinham tido no passado, apesar das posteriores
demonstrações em contrário. Assim, Teodorico declarou que só combateria os hunos
se eles atacassem o seu reino no sudoeste da Gália.

Os visigodos eram fundamentais, não somente pelo seu grande e bem


organizado exército, mas porque várias tribos germânicas menores esperavam eles
se definirem para só então escolherem o lado onde lutar. O apoio de Teodorico traria
cem mil guerreiros à coalizão e definitivo equilíbrio de forças, permitindo a decisiva
batalha em campo aberto.

Em desespero, Aécio apelou para o príncipe galo-romano Avito, homem rico


e refinado que gozava da amizade dos dois. Avito aceitou a missão e, como bom
diplomata, disse ao rei que se Átila vencesse Aécio as tribos germânicas adeririam
em massa ao vencedor, pois ninguém quer ficar do lado perdedor. Quando Átila
atacasse os visigodos, estaria com força dobrada e eles sem aliados. Finalmente
Teodorico curvou-se à lógica dos fatos e aderiu à aliança.

O riquíssimo príncipe galo-romano Avitus era amigo pessoal de Aécio e Teodorico e fez este aderir à
aliança contra Átila. Mais tarde seria imperador e acabaria assassinado (457 DC)

Enquanto isso, Átila destruía a corajosa cidade de Metz após ela se recusar
a render-se para ser saqueada e ter suas mulheres violentadas em troca da vida da
população. A recusa da “generosa oferta” e a sua épica resistência provocou em Átila
tal acesso de fúria que ele ordenou não somente o saque da cidade e o estupro das
mulheres, mas também a sua destruição e o extermínio de todos os seus habitantes.

O mesmo aconteceu em Tongres, mas Toises e Paris escaparam após lhe


pagarem valiosos resgates e curvarem-se humildemente ao seu poder.

No interregno de suas terríveis façanhas, ele se pavoneava, rindo e troçando


diante do seu estado-maior: “Onde está o bravo Aécio? Por que ele não aparece e luta
como homem? Por que está se escondendo como um rato? Por que não está cantando
como um galo? Mas eu sei a razão da sua covardia: isto se deve ao fato dele ter virado
uma galinha depois que a bruxa Placídia, que agora está no inferno, o castrou”! Os
generais hunos, muitos deles conhecendo bem Aécio, riam para agradar o brutal
tirano, mas no íntimo sabiam que o jogo estava só começando. Mais cedo ou mais
tarde "o tigre mostraria as suas garras"!

Em junho, após receber polpudo resgate para poupar Paris, Átila marchou
para o sul e cercou a estratégica cidade de Orleans nas margens do rio Loire. A cidade
resistiu bravamente sob o comando espiritual e político do valente bispo Aignan, que
na igreja, nas ruas e nas muralhas encorajava o povo a lutar contra os invasores
pagãos. A igreja onde o heróico bispo discursava eloquentemente aos fiéis ainda
existe e hoje é anexa a um seminário junto aos restos das antigas muralhas.

Meroveu, rei dos francos, era tradicional aliado de Aécio e esteve ao seu lado desde o início da
campanha. Auto relevo em bronze de Jean Dassier (1720)
No início de julho, Aécio concluiu os termos finais da coalizão e o seu
exército juntou-se ao exército visigodo de Teodorico e ao exército franco-burgundo
de Meroveu, assim como também aos muitos batalhões das tribos menores que
somente decidiram lutar ao seu lado depois da adesão de Teodorico à aliança. Tendo
agora um imenso exército e o apoio dos poderosos reis Teodorico e Meroveu, Aécio
marchou sobre Orleans, onde esperava encurralar Átila contra as altas muralhas da
grande cidade cercada que resistia bravamente ao seu assédio. Mas Átila era astuto e
não daria chance a Aécio, que conhecia desde menino e cujo valor militar respeitava:
somente lutaria no momento que desejasse e no campo que escolhesse! Por isso
levantou o cerco de Orleans e retirou-se para o leste.

Aécio contava agora com duzentos mil homens, o mesmo número do


gigantesco exército de Átila, mas ele tinha uma grande vantagem: as suas dez legiões
couraçadas que, apesar de constituírem apenas um quarto do imenso exército aliado,
eram treinadíssimas e agiam como uma máquina no campo de batalha. Embora
fossem "romanas" no nome, na verdade eram compostas quase inteiramente por
soldados profissionais gauleses, germânicos, britânicos, ibéricos e balcânicos; isto
mostra que na época a Itália deixara de produzir soldados para produzir apenas
burocratas. Por isso é estranho que ainda permanecesse à testa do Império. De
qualquer forma, Aécio não perdeu tempo com as festividades pela libertação de
Orleans e partiu célere em perseguição de Átila.

A hora da decisão chegara!

Notas:

1) o número de tropas envolvidas no gigantesco confronto, tendo de um lado os


aliados romanos Aécio-Meroveu-Teodorico e do outro lado os aliados
bárbaros Átila-Arderico-Clodion são os citados pela maior parte dos historiadores,
mas as possibilidades logísticas da Gália na época os tornam por demais exagerados.
Os antigos gostavam de aumentar desmesuradamente os combatentes das batalhas
importantes e por isso a metade, ou mesmo um terço, dos números citados seja mais
razoável.

2) Aécio e Átila se conheciam desde a adolescência e tinham sido aliados no passado.


As ligações entre os dois eram antigas, pois Aécio residira como refém na Hungria
durante dois anos na corte do rei huno Roua (também chamado Rugila), tio de Átila.
Este, por sua vez, também residira como refém em Ravena na casa do general
Gaudêncio, pai de Aécio. Ainda jovens participaram juntos de algumas campanhas
militares e o radical rompimento entre ambos na maturidade jamais foi bem
explicado.

3) Calcula-se que cerca de vinte nacionalidades europeias participaram da batalha,


de um ou do outro lado. Porém a grande maioria combateu com batalhões inferiores
a mil homens. Os maiores contingentes nacionais foram os hunos, hérulos,
ostrogodos, alanos (divididos), gauleses, visigodos, francos (divididos) e burgundos.
Por isso a Batalha dos Campos Catalúnicos é também chamada de "A Batalha das
Nações".
Post nº 18

ÁTILA INVADE O OCIDENTE E


AÉCIO MARCHA PARA COMBA
TÊ-LO

Fantasia cromática do autor. Tradução do latim: "Fávio Marcelo Aécio


vencedor
de Átila rei dos hunos. Cavaleiro velocíssimo e exímio atirador de flechas"
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Enquanto Aécio passava o inverno de 451 em Florença, tentando superar a


dor causada pela morte recente da imperatriz Placídia, a sombra terrível de Átila
crescia e ameaçava se estender por toda a Europa. Em janeiro Aécio recebera
ameaçadora mensagem do rei huno reiterando suas exigências e, como se zombando
do antigo aliado e amigo, exigindo também a mão de Honória, irmã do imperador
Valentiniano. O general tentara contemporizar mandando-lhe um embaixador
carregado de presentes numa perigosa viagem em pleno inverno, mas este voltara
apressado trazendo apenas respostas vagas e novas ameaças.
Fantasia cromática do autor. Tradução do latim: "Galla Placídia imperatriz
católica fidelíssima e grande defensora da fé cristã"

Todavia, certo de que Átila somente atacaria no verão, resolvera adiar o


assunto para o início da primavera. Até porque as suas alianças com as tribos
germânicas eram muito fortes e elas temiam Átila mais do que ao próprio
demônio. Qual não foi sua surpresa quando ao voltar de Florença em meados de
março o Serviço Secreto lhe apresentou um relatório aterrador sobre a real situação
militar. O rei huno não descansara durante o inverno e, após cruzar o rio Danúbio e
atravessar velozmente a Germania com dezenas de milhares de homens, estava agora
concentrando o seu imenso exército na margem direita do médio rio Reno, ao sul do
país dos burgundos, aliados dos romanos.
Nos últimos trinta dias Arderic, rei dos gépidas, Valamir, rei dos ostrogodos,
e mais os reis dos boius, alamanos, hérulos, pomeranos e turíngios tinham se alistado
sob a bandeira de Átila, o que significava todas as tribos germânicas do leste. Para
completar o desastre, o seu compadre Clodion, rei dos francos, morrera e deixara o
trono para os seus filhos Meroveu, protegido de Aécio, e Clodion, que tinha o mesmo
nome do pai e odiava o irmão. Os dois tinham brigado e a coroa ficara para Meroveu,
graças à intervenção do seu protetor Aécio. O derrotado Clodion fugira para o leste
com milhares de seguidores e depois criara um exército franco independente,
alistando-se sob a bandeira de Átila. Em resumo: os povos germânicos, valiosos
aliados de Aécio, estavam completamente divididos!

O imperador Valentiniano foi imediatamente avisado do perigo e o senado


foi convocado às pressas para deliberar, mas Aécio ficou perplexo ao ver que a
maioria dos apavorados senadores era favorável a que se concedesse a Átila tudo o
que ele exigia.

Exceto as suas riquezas pessoais, é claro!

Quando percebeu que aquela turba de canalhas aristocratas só se importava


com suas propriedades e fortunas individuais, preferindo perderem os dedos para
salvarem os anéis, Aécio discursou-lhes eloquentemente: “Assim que Átila tiver a
Germânia sob seu controle e conquistar a Gália, avançará sobre a Itália, onde estão
dois terços das riquezas do império. Todas as cidades italianas serão destruídas, as
casas dos cidadãos serão saqueadas e as férteis terras da península serão
transformadas em pasto para os rebanhos hunos de carneiros e cavalos. A única
forma de tentar evitar o desastre é lutar agora, enquanto ainda temos o apoio dos
gauleses e de parte das tribos bárbaras, especialmente dos poderosos visigodos de
Teodorico e dos bravos francos de Meroveu. A escolha dos senhores é simples: lutar
agora, enquanto temos esses valiosos apoios e talvez salvarmos nossas riquezas, ou
lutar depois sem qualquer apoio e perdermos tudo. Escolham”!
"Átila, rei dos hunos, flagelo de Deus". Fantasia cromática do autor. Há
medalhões e moedas com a sua efígie, mas não se sabe se são fiéis

O argumento de salvar as riquezas dos aristocratas foi decisivo e uma


escassa maioria de mesquinhos senadores deu a Aécio os recursos financeiros
necessários para enfrentar Átila. Dizemos meios financeiros porque a Itália
praticamente deixara de produzir soldados e quase todo o exército romano era
formado por mercenários estrangeiros de dentro e de fora das províncias do império.

Informado de que o seu temido ex-aliado iria à Gália combatê-lo, Átila lhe
propôs secretamente dividirem o império: o rei huno ficaria com a Germânia, Gália,
Espanha e Britânia; o general romano ficaria com o que restasse: Itália, Sicília, Bálcãs
e Grécia. Mas Aécio recusou o astuto oferecimento porque sabia que tão logo Átila
eliminasse seus aliados germânicos e gauleses no oeste voltar-se-ia para o sul e
esmagá-lo-ia na Itália, onde estaria sozinho e sem os valiosos apoios com os quais
ainda contava no momento.

No início de abril Aécio se pôs em marcha com o pequeno exército que


conseguira formar a duras penas. A guerra contra o terrível Rei dos Hunos ia
começar!

Post nº 17

OS REAIS MOTIVOS DO ASSAS


SINATO DE AÉCIO - ÚLTIMO
DOS GRANDES
GENERAIS ROMANOS
Aécio e Placídia representados por atores famosos em recente filme sobre Átila
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Na qualidade de Regente e tendo Aécio como ministro, exceto por alguns intervalos,
Placídia governou o Império quatorze anos na menoridade do seu filho Valentiniano.
Quando este foi coroado em 440 (A maioria dos historiadores diz que foi em 437),
ela ficou mandando por trás do trono e Aécio continuou ministro. Em 450 ela morreu
e Valentiniano assumiu o poder pleno, mas manteve Aécio no cargo até assassiná-lo
em 454. Contado o tempo de jovem oficial, quando era um protegido do imperador-
adjunto Constâncio, podemos dizer que Aécio andou pelo palácio imperial durante
mais de trinta e cinco anos. Curiosamente, esta era a idade de Valentiniano na época
do assassinato!

Placídia, embora muito mais moça que o marido, era um pouco mais velha
que Aécio, mas a sua beleza e elegância fazia-os parecer terem a mesma idade. Não
se sabe o tipo de relação existente entre eles antes da morte de Constâncio, e nem
mesmo se existia alguma, mas quando o secretário João usurpou o trono, pondo de
lado a viúva Placídia e o pequeno Valentiniano, o jovem general Aécio FICOU
NEUTRO, embora alguns digam que apoiou João e só não combateu em seu favor
porque estava entre os hunos buscando formar um exército para apoiá-lo. Todavia
nem a lógica nem o desenrolar dos fatos apoiam a versão do seu "apoio" a João!

Quando João foi morto por seus próprios soldados e Placídia voltou, Aécio
finalmente veio com suas tropas e ocupou a capital, deixando a imperatriz isolada no
palácio com a sua guarda. A superioridade militar de Aécio era enorme e todos
esperavam que ele se proclamasse imperador, mas os dois tiveram uma longa
conversa a sós e Aécio informou seus partidários que estava tudo acertado: a
imperatriz continuaria no trono e ele seria governador da Gália e seu ministro!
Ambos trabalharam juntos durante anos e tiveram brigas homéricas que sempre
acabavam da mesma forma: Aécio se afastava, passado algum tempo voltava à frente
de um grande exército e Placídia ficava isolada no palácio. Depois de longas
conversas a sós ele dizia que o dissídio fora superado e as coisas voltavam a ser como
antes.

Aécio visto aqui na célebre ópera "Attila" de Giuseppe Verdi, foi o grande rival militar do famoso
Rei dos Hunos e o derrotou em 451 na Gália e em 452 na Itália

Os detalhes mudam conforme o narrador, mas na essência era isso o que


acontecia. Daí os historiadores devotos dizerem que a imperatriz e o ministro eram
“inimigos cordiais” que colaboravam por razões estritamente políticas e não por
secretas razões sentimentais. Apesar dos boatos, desmentidos pelo fato deles não
terem se casado quando Aécio também era viúvo, há sólidas evidências de que
Placídia tinha relevantes motivos pessoais e políticos para não casar, que expomos
em nosso livro “Memórias Íntimas de Flavius Marcellus Aetius” e resumiremos aqui.

Aécio era de origem rica e aristocrática, pois seu pai, apesar de cita de
nascimento, era cidadão romano e um dos mais notáveis generais imperiais, tendo
sido governador da Ilíria, conde da África e comandante-em-chefe da cavalaria do
exército. Sua mãe pertencia à alta aristocracia romana de Milão, na época capital do
Império do Ocidente, sendo o seu avô materno importante ministro na corte
imperial. Mas ao contrário dos demais militares nobres, que adoravam sinecuras e
evitavam batalhas, Aécio estava sempre na linha de frente. Quando criança, vivera
entre os visigodos, cujo rei Alarico era seu padrinho, e já adolescente fora refém na
corte dos hunos. Isto o fez aprender-lhes o idioma e conhecer a fundo seus
armamentos e táticas militares, assim como fazer sólidas amizades. Bom diplomata
e poliglota, se tornou amigo do rei dos hunos Roua, do rei dos francos Clodion (era
padrinho do seu filho Meroveu), do rei dos burgundos Godofredo, do rei dos
visigodos Teodorico e de vários outros reis e príncipes de povos chamados “bárbaros”
pelos romanos, mas cujos idiomas e culturas Aécio conhecia e respeitava. Isto lhe deu
estatura de líder europeu, mas lhe causou sérios problemas na Itália. Sobretudo
porque não mostrava muita devoção religiosa. A aristocracia desconfiava da sua
íntima ligação com os bárbaros, o clero suspeitava da sua fé (seus aliados visigodos
eram heréticos arianos e os burgundos, francos e hunos eram pagãos) e o povo
suspeitava dele pelas duas coisas. Ademais, o seu valor militar, bravura pessoal e
índole explosiva criaram-lhe muitos inimigos que o chamavam de “caudilho
ambicioso e turbulento”. Este conceito era partilhado por quase todos, exceto pelo
exército, onde tinha grande apoio devido à lealdade dos seus soldados. Só depois que
eliminou os seus rivais Bonifácio e Félix, generais devotos amados do clero e da
aristocracia, é que ele solidificou-se no poder e Placídia parou de lhe criar problemas.
A partir de 433, governou como bem quis, mas sempre ao lado dela até a sua morte.
Depois disso, governou ao lado de Valentiniano até ser assassinado.

Placídia era uma raposa política e certamente via na má-fama de Aécio e na possível
substituição de Valentiniano por um filho dele no caso de um matrimônio, sérios
obstáculos para que ele acontecesse. Também o seu apego ao poder a impedia de
entregá-lo por inteiro ao general, pois sabia que se o fizesse ele não mais seria
manobrável e poderia pô-la de lado quando bem quisesse. Os favores dela à Igreja e
o seu empenho em construir mosteiros e templos fez o clero considerá-la uma
“santa”, e, como quase todos os historiadores da época eram clérigos, esforçaram-se
ao máximo para preservar a reputação da sua protetora. Sobretudo quando
esta poderia ser manchada por um suposto caso com o caudilho Aécio. O resultado
é que não há registros dos boatos, que certamente existiam, dado o empenho que
empregam na defesa da reputação da imperatriz. Se não existiam os boatos, então
por que o empenho em negá-los? É possível que o raciocínio dos clérigos fosse o de
que historiadores sérios não devem registrar boatos e maledicências. Por isso foi a
versão deles a que prevaleceu: Aécio e Placídia eram inimigos cordiais que
colaboravam por razões estritamente políticas!
Placídia era bonita e muito culta. Enviuvou pela 2ª vez aos 32 anos e é difícil acreditar
que tenha permanecido casta pelo resto da vida

Devido à fragilidade das versões, tanto da oficial como das alternativas, a


única que faz sentido é a versão lógica apresentada acima. Portanto, o CASO
AÉCIO continua sendo um mistério para os historiadores porque eles repetem o que
outros disseram e não buscam versões lógicas para fatos que parecem inexplicáveis.
Como dizia o detetive Sherlock Holmes ao seu amigo Watson: "Se as hipóteses
existentes são implausíveis, a verdadeira é aquela em que ninguém pensou antes”!

Nota: Aetius no latim clássico pronuncia-se Écius e no latim vulgar Aécius. Em


italiano é Ezio e em português é Aécio. Embora exista um quadro de Placídia com
os filhos, não existe nenhum de Aécio. Os bustos e pinturas que se supõe serem dele
são também atribuídos ao general Stilicon.
ost nº 16

POR QUE VALENTINIANO III M


ATOU AÉCIO, ÚLTIMO
DOS GRANDES GEN
ERAIS ROMANOS ?

Átila fora a grande ameaça durante o governo de Aécio. Tela de Eugene Delacroix (séc. XIX)
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As afirmações de que os motivos que levaram ao assassinato de Aécio são um mistério


e de que a existência de uma ligação amorosa entre o general e a imperatriz Placídia
é mais do que uma hipótese, continuam a suscitar debates entre os historiadores até
hoje. Em nosso romance histórico Memórias Íntimas de Flavius Marcellus
Aetius atribuimos o crime a uma explosão de loucura edipiana do imperador ao
descobrir que Aécio e Placídia tinham sido amantes e ele poderia ser filho do ilustre
general, coisa que de modo algum está fora de questão, pois a história mostra que
pouquíssimos foram os crimes praticados nos recessos das cortes cujos motivos
tenham sido unicamente "altas razões de Estado".

A História lida com os fatos e as suas versões, e estas são de três tipos: a
versão oficial, a versão alternativa e a versão lógica. Costumamos lidar com as três,
mas devemos sempre dar preferência à versão lógica, sobretudo quando as outras
são insatisfatórias ou mesmo implausíveis.

No Caso Aécio a versão oficial é a do assassino. Como já vimos nas razões


de Aureliano contidas no post anterior, ela é completamente IMPLAUSÍVEL e não
merece ser levada em consideração. Portanto, passemos às versões alternativas, que
são duas: 1ª) Houve uma grave discussão entre os dois por causa das altas despesas
militares: ambos se atracaram e Valentiniano apunhalou Aécio; 2ª) A mesma coisa,
só que o motivo da briga foi o imperador acusar o general de querer aproveitar-se do
casamento entre os seus filhos para colocar o jovem Gaudêncio no trono logo que o
matrimônio se realizasse.

Estas versões alternativas são tão IMPLAUSÍVEIS quanto a versão oficial,


porque Valentiniano era um irresponsável que não cuidava da administração e, em
um Império continuamente atacado por invasores bárbaros, altas despesas militares
eram mais que justificáveis. Quanto ao casamento, ele fora ajustado com este
objetivo, pois tendo somente filhas Valentiniano queria ser sucedido por um genro
com suficiente respaldo militar para tornar-se futuramente imperador e fazer sua
filha imperatriz, gerando-lhe um neto que daria continuidade à sua dinastia. Do
ponto de vista político e militar nada mais acertado que este genro fosse o filho do
nobre e fiel general que durante décadas garantira a permanência dele e da mãe no
trono imperial. Ademais, Aécio jamais poderia ser apunhalado por Valentiniano no
caso de uma briga, pois era rijo guerreiro altamente versado nas artes marciais.
Apesar de ser vinte e dois anos mais moço, Valentiniano era um bêbado indolente
que jamais pusera os pés num campo de batalha e cuja única habilidade era o jogo de
azar; mesmo desarmado, Aécio facilmente o dominaria. Assim, ele só poderia pegar
o general se ele estivesse desprevenido e de surpresa, como realmente aconteceu.

Verifica-se, portanto, que tanto a versão oficial quanto suas alternativas não
se sustentam no que se refere aos motivos e por isso são IMPLAUSÍVEIS.

Resta a versão lógica que adotamos no livro Memórias Íntimas de Flavius


Marcellus Aetius.

O maduro general e imperador-adjunto Constâncio morreu quando


Valentiniano era criança e por isso ele não deve ter conhecido o pai. Na época, Aécio
era um bravo e jovem oficial da alta nobreza militar, filho do prestigioso general
Gaudêncio e protegido de Constâncio, que o fizera general aos vinte e poucos anos de
idade. Era também afilhado do falecido Alarico, rei dos visigodos que ocupou Roma
em 410. Não tendo filhos, ele tratava Aécio como tal e este deve ter conhecido Ataulfo,
sobrinho do seu padrinho (alguns dizem que era cunhado e outros que era primo),
depois também rei dos visigodos e primeiro marido de Placídia, irmã do imperador
Honório. As ligações de Aécio com a família imperial, portanto, datavam de longe e
eram bastante estreitas.
O Imperador Valentiniano III assassinou Aécio traiçoeiramente em uma reunião ministerial

Algum tempo depois da morte de Constâncio ele se tornou ministro da bela


imperatriz, agora viúva pela segunda vez e regente do império na menoridade do filho
único, o qual ela tratava com desusado carinho mesmo quando já era ele adolescente.
Isto criou boatos sobre uma possível relação incestuosa entre mãe e filho, coisa
certamente inverídica, mas é provável que o seu exagerado amor maternal tenha
mexido com a mente doentia de Valentiniano e causado a tragédia quando, muitos
anos depois, ele descobriu a verdadeira natureza da longa e íntima colaboração
política entre Aécio e Placídia, já falecida na época do crime.

Os sólidos indícios de uma relação amorosa entre eles, assim como as razões
de ter sido a relação mantida oculta pelos dois e pelos devotos historiadores da época,
pois Placídia gozava de imenso prestígio religioso e era considerada quase uma
"santa" pela Igreja, são assuntos ainda carentes de investigações mais detalhadas
devido a pobreza historiográfica do século V.
Post n° 15

O ASSASSINATO DE AÉCIO
- ÚLTIMO
DOS GRANDES GENERAIS ROM
ANOS

Retrato idealizado de Aécio (Aetius), cognominado "O Último dos Romanos"


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Em 454 o imperador Valentiniano III assassinou durante uma reunião


ministerial o general Flávio Aécio (Flavius Aetius), comandante-em-chefe do
exército romano e último baluarte às invasões bárbaras que vinham de todos os
lados e destruiriam o Império alguns anos depois. O crime e as perplexidades que
ele gerou foram abordados no Diário de um nobre amigo seu no trecho que
transcrevo abaixo.

Aécio está morto!

Hoje recebi a terrível notícia do seu assassinato cometido traiçoeiramente


pelo imperador Valentiniano, quatro anos após a morte de Placídia e onze meses
depois da morte de Átila. É tão absurdo que mal posso acreditar; porém amigos
próximos já me tinham advertido dos perigos que cercavam Aécio na corte imperial.

De acordo com o relatório enviado pelo general Clavinus, comandante


legionário na Gália, Aécio participava de uma reunião ministerial no palácio e havia
terminado o seu relatório sobre a situação militar do império. O imperador felicitou-
o pelo excelente trabalho, levantou-se e o abraçou sorridente sob os aplausos dos
demais ministros.

Aécio protagonizado por Thomas Todd na ópera "Ezio" (nome italiano de Aécio) de Friedrich
Häendel

Aécio estava desarmado, em trajes senatoriais, e quando o falso abraço


terminou ele virou-se para agradecer os aplausos recebidos. Aproveitando a
oportunidade, Valentiniano sacou um punhal e golpeou seu ministro pelas costas
diante dos olhos aterrorizados dos demais. Atingido no coração, Aécio morreu sem
saber o que se passava.

Para justificar sua covarde atrocidade, Valentiniano e seus cúmplices


emitiram uma declaração dizendo que Aécio planejava um golpe de estado para
apoderar-se do trono e vários dos seus amigos e auxiliares foram presos e executados.

A justificativa é absurda porque todos sabem que se Aécio quisesse o trono


o teria tomado muitos anos antes, pois teve várias oportunidades para se tornar
imperador e delas nunca se aproveitou. Por que iria ele tentar isto agora, já na velhice
e às vésperas da aposentadoria? A razão sugerida por um sábio amigo de que Aécio
se tornara supérfluo aos interesses da oligarquia romana depois da morte de Átila é
insuficiente, porque além dos laços políticos também havia outros fortes laços entre
ele e Valentiniano desde os tempos de Placídia, reforçados ano passado pelo noivado
da filha mais nova do imperador com o seu filho Gaudêncio.

É bem verdade que enquanto Átila estava vivo ele era indispensável porque
era o único general romano capaz de lidar com o rei dos hunos, seu antigo aliado e
depois adversário. Afinal de contas, Aécio derrotara Átila duas vezes, tanto durante
a invasão da Gália em 451 como da Itália em 452. Ninguém na Europa seria capaz de
tal façanha, mas de acordo com a teoria uma vez morto Átila a ameaça desapareceria
e Aécio tornar-se-ia dispensável.

De qualquer forma, mesmo com a morte de Átila, outra ameaça continuava


presente no sul, pois todos sabem que Genserico, rei dos vândalos, há muito vem se
preparando para invadir a Itália partindo de suas bases no norte da África.

A morte de Aécio deixou Roma indefesa e Genserico um ano depois a invadiu e saqueou

Ele não atacara antes devido ao imenso respeito que tinha por Aécio, que o
derrotara em 443 quando tentara conquistar a Sicília. Mesmo assim havia fortes
rumores de que Genserico estava terminando seus preparativos e logo atacaria
novamente, pois em sua opinião o império ficara muito enfraquecido pelas invasões
dos hunos e não teria como resistir se fosse alvo de um novo ataque em massa.
Somente a forte presença de Aécio no comando do exército romano estaria
impedindo o rei vândalo de executar o seu projeto.

Qual o proveito de Valentiniano ao remover este último obstáculo às


ambições de Genserico? Do ponto de vista político o covarde assassinato não faz
sentido e do ponto de vista militar é uma catástrofe. A absurdidade política e militar
do crime é tão evidente que o comentário mais comum na Itália é que Valentiniano
agiu como um louco furioso “que decepa a sua mão direita com a sua mão esquerda”!
Portanto, qual poderia ser o verdadeiro motivo de tamanha insanidade?
Suspeito que algo muito sórdido se esconde atrás da cena.

Aguardemos o futuro!

(in “Memórias Íntimas de Flavius Marcellus Aetius”)

Nota: Decorridos mais de quinze séculos, os verdadeiros motivos do imperador


Valentiniano para o crime continuam sendo um mistério

Post nº 14

NERO - O IMPERADOR QUE


INCENDIOU ROMA E JOGOU O
S CRISTÃOS ÀS FERAS

No ano 64 DC Roma sofreu enorme incêndio que destruiu metade da cidade e matou milhares de
pessoas. O
povo acusou Nero e ele culpou os cristãos, mandando jogá-los às feras para apaziguar as massas
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Nero foi um dos piores e mais cruéis imperadores romanos e se dissermos que foi um
"monstro moral" não estaremos longe da verdade. Todavia, poucos foram tão
populares e tão amados pelo povo quanto ele, a ponto de não acreditar que tivesse
morrido e surgirem impostores dizendo-se Nero à frente de revoltas populares
buscando ter o trono de volta. Todos foram presos e executados, mas não foi excluído
o fato de que a versão oficial da morte do tirano era duvidosa e difícil de convencer a
quem estudasse o assunto com atenção, pois embora o suicídio fosse forma comum
de briosos líderes romanos escaparem do opróbrio, Nero não era nem brioso nem era
líder. Na verdade, era cafajeste da pior espécie que chegou ao poder com apenas
dezoito anos de idade graças aos sórdidos crimes e intrigas políticas de sua mãe, a
imperatriz Agripina, os quais incluiu o envenenamento do imperador Cláudio, seu
tio e marido.

Ela era a irmã mais nova de Calígula e cresceu vendo todos os tipos de crimes e
loucuras de que era capaz o seu monstruoso irmão, portanto não surpreende que,
com tão exímio professor, ela assimilasse grande parte de suas perversas lições.
Apesar de fria, cruel e assassina, Agripina era mãe extremosa. Além de fazer o filho
imperador, preterindo o jovem príncipe herdeiro Britanicus, seu primo e enteado,
deu a Nero os melhores mestres de Roma, o filósofo Sêneca e o erudito Bhurrus,
possibilitando-lhe ter excelente educação e adquirir boa cultura, sobressaindo-se em
artes e literatura para imensa satisfação dos sábios professores. Todavia, Agripina
era pouquíssimo rigorosa em questões de disciplina e mimava excessivamente o
filho, permitindo-lhe sempre satisfazer as vontades por mais incorretas e
inapropriadas que fossem. Isto agravou a licenciosidade e perversidade de Nero,
fazendo-a arrepender-se amargamente do erro de pô-lo no poder, pois ela logo seria
a mais notória vítima do celerado imperador.

A arrogância e ambição de Agripina passaram dos limites quando ela mandou


cunhar
moedas imperiais com sua efígie ao lado da efígie do filho imperador

O início do seu reinado no ano 54 DC foi auspicioso, pois não só era gentil com todos
como seguia à risca os conselhos dos seus ex-professores e agora sábios ministros
Sêneca e Burhus. Mas sua ambiciosa mãe queria ser a soberana de fato e
arrogantemente se intrometia nos negócios do Estado, contrariando as próprias
ordens do imperador e dos seus ministros, o que logo a tornou impopular e detestada
pelo filho que tudo devia a ela. Enquanto isso, a fama de Nero crescia como rapaz
culto, atencioso, moderado e governante conscencioso. Porém a arrogância de
Agripina não lhe dava sossego e ela chegou ao ponto de mandar cunhar moedas
tendo não somente a efígie do imperador mas também a sua, como se ambos fossem
co-governantes. Por fim Nero perdeu a paciência e, apoiado pelos ministros e pelo
povo, a exilou em luxuosa mansão fora da cidade, proibindo-a de voltar a Roma.
Nero envenena seu irmão Britanicus em um banquete e manda cremar o
cadáver sem demora. Ilustração de François Chauveau (séc. XVII)

Mas ela continuou a intrigar, e para castigar o filho ingrato aproximou-se


do adolescente príncipe Britânicus, seu enteado e filho legítimo do falecido
imperador Claudius. Por direito o imperador deveria ser Britanicus, o que fez Nero
suspeitar de um complô liderado pela mãe para substituí-lo pelo irmão. Em
consequência, o envenenou durante um banquete e disse aos convivas que o jovem
tivera um ataque epilético, mandando que os servos o levassem para o seu quarto,
mas na verdade para dar fim ao cadáver. Assim, enquanto o seu irmão assassinado
era secretamente cremado nos fundos do palácio Nero continuava a se banquetear
alegremente como se nada tivesse ocorrido.
O grande filósofo Sêneca foi a mais famosa e ilustre vítima do monstruoso Nero. Quadro "A Morte
de Sêneca" do pintor italiano Luca Giordano (séc. XVII)

A partir daí Nero desembestou e logo depois mandou matar a sua mãe Agripina a
golpes de espada. Querendo libertar-se de toda e qualquer tutela que pusesse freio
aos seus instintos perversos, livrou-se dos seus dois sábios ministros, mandando
envenenar Burhus e ordenando que o idoso Sêneca se "suicidasse". Nem mesmo o
jovem e brilhante poeta Lucano de apenas vinte e seis anos, maior poeta romano da
época, escapou à sua sanha assassina, alguns dizem que por pura inveja do seu
talento. Para tanto aproveitou a tola conspiração de alguns aristocratas idealistas, de
cujo círculo Lucano fazia parte. Eles logo foram denunciados por sórdidos ex-
escravos, que tinham feito da espionagem e da delação lucrativo meio de vida a
serviço do histriônico imperador, e o resultado é que tanto Sêneca, o maior filósofo,
como Lucano, o maior poeta da época, foram obrigados a cometer suicídio no altar
da monstruosa tirania.
Escultura em corpo inteiro da imperatriz Agripina apresentando Nero ao povo
como sucessor do recém falecido imperador Cláudio (54 DC)

Depois de assassinar o irmão, a mãe, e o que havia de melhor entre seus ministros e
notáveis intelectuais, Nero entregou-se de corpo e alma à mais feroz devassidão e
despotismo. Curiosamente, ao mesmo tempo em que assassinava o que havia de
melhor na intelectualidade de Roma, ele posava como protetor das artes e da cultura,
promovendo festivais de poesia, música, dança, teatro e esportes, dos quais muitas
vezes participava como ator, músico e dançarino. O fato causou enorme escândalo na
aristocracia, que julgava isso indígno de um simples nobre, que dirá de
um imperador. Não satisfeito, passou a participar no hipódromo de corridas de
bigas, como cocheiro, e de cavalos, como jóquei, coisas julgadas ainda mais indignas
pelos cidadãos de respeito. Porém suas extravagâncias só fizeram aumentar sua
popularidade, pois o povo começou a tê-lo como "um dos seus", sobretudo porque
duplicou a ração de "pão e circo" que o governo dava às massas. Mas isso não impediu
a sua popularidade de periclitar quando Roma foi assolada por grande incêndio que
a destruiu pela metade em 64 DC. Para acalmar o povo, revoltado com sua
incapacidade em lidar com a catástrofe e suspeitando ter sido ele o culpado, acusou
os cristãos de serem os autores do incêndio e prendeu centenas deles, jogando-os aos
leões no circo para divertir a populaça. Outros foram untados com óleo e queimados
à noite em cruzes espalhadas pelas ruas para iluminá-las com tochas humanas.

Para aplacar as massas enfurecidas Nero culpou os cristãos pelo incêndio de Roma e mandou atirá-
los
aos leões no circo. Quadro de Jean-León Gerôme (séc. XIX)

Diz a lenda que durante essa brutal perseguição foram executados São Pedro e São
Paulo, mas não há evidências históricas disso, e nem mesmo de que ambos
estivessem em Roma na ocasião, embora fosse bastante provável. Fato é que Nero
continuou sua sinistra trajetória política de crime em crime e a devassidão da sua
vida privada chegou ao auge quando repudiou a sua virtuosa esposa Otávia e a exilou
em uma ilha, onde poucas semanas depois mandou seus guardas matá-la e trazer-
lhe a sua cabeça para presenteá-la à sua ciumenta amante Popeia. Nem bem o corpo
de Otávia esfriara, ele casou com a sua linda e depravada amante, mas o casamento
não durou muito: algum tempo depois, estando ela grávida, matou-a a ponta-pés
dentro do palácio imperial após voltar de uma orgia completamente
bêbado! Enquanto assim agia na esfera privada, matando o irmão, a mãe e duas
esposas, na esfera pública ele se comportava com total despudor e
irresponsabilidade, esvaziando o tesouro com gastos absurdos e não dando a mínima
importância às contínuas guerras que o Império era obrigado a sustentar em seu
imenso território e ao longo das suas extensas fronteiras.
Nero dava ao povo grandes espetáculos. Entre os mais populares estavam as corridas e às vezes
ele atuava como cocheiro

Após mais de uma década de desmandos, crimes hediondos e corrução desenfreada,


ele resolveu mexer com quem não devia: o Exército! Por razões obscuras, mandou
executar o general Córbulo, um dos mais competentes e admirados generais da
época, e o alto comando viu que Nero era um perigo não só para cortesãos e desafetos
como para qualquer um capaz de lhe fazer sombra ou representar perigo à sua
tirania. A conspiração tomou corpo e os generais Vindex, comandante das legiões da
Gália, e Galba, comandante das legiões da Espanha, se revoltaram no início de 68
DC, esperando contar com o apoio do influente general Virgínio, comandante das
poderosas legiões do Reno. Mas, muito aferrado à disciplina, ele discordou da revolta
e ficou ao lado de Nero, atacando e derrotando Vindex, que se suicidou ou foi morto
por seus próprios soldados. Sem saber o que fazer com a vitória, o general vitorioso
foi imobilizado quando a soldadesca o proclamou imperador no lugar de Nero, e,
dividido entre o dever e a ambição, ficou indeciso e buscou um acordo com Galba,
rebelado na Espanha. Tudo indica que a morte de Vindex ao invés de enfraquecer os
rebeldes os fortaleceu, pois a essa altura todos os altos oficiais viram que a anarquia
se alastrava e nenhum deles estaria seguro no caso de uma guerra civil, pois Nero era
muito popular nos baixos escalões da soldadesca pelos substanciais aumentos de
salários que lhes dera. Isto os paralisou e preferiram não se arriscar, permitindo às
legiões ibéricas do enérgico e decidido general Galba reiniciar a rebelião
temporariamente interrompida. Todavia nada ainda estava decidido, pois
Virgínio continuava indeciso, esperando para ver de que lado soprariam os ventos, e
Nero poderia ter ficado no poder se tivesse um mínimo de habilidade e competência
política, mas não tinha nenhuma das duas e entrou em pânico ao saber que os
generais confabulavam entre si e faziam ouvidos moucos às suas ordens idiotas.

Busto de Nero pouco antes da sua fragorosa queda e misterioso "suicídio"

Aproveitando-se da incompetência e do pânico de Nero face à confusão geral, pois


ninguém sabia ao certo quem era leal ou quem era rebelde, os cidadãos dotados de
consciência política, que odiavam o cruel tirano, espalharam o boato de que Galba
chegara em marcha forçada ao norte da Itália com o apoio do grosso do exército do
norte e entraria em Roma em breve. Os dias de Nero estavam contados! Isto fez com
que o acovardado Senado decretasse a deposição do monstro e o declarasse fora da
lei (junho de 68 DC). Achando que estava tudo perdido, a guarda imperial se
acovardou, abandonou o palácio e trancou-se nos quartéis. Parentes, ministros,
cortesãos, empregados e escravos também fugiram deixando Nero praticamente só,
pois apenas sua serva e amante Áctea, com um fiel escravo e alguns ex-escravos, entre
os quais o liberto Phaon, permaneceu ao seu lado.

A história diz que ele fugiu com os libertos para uma chácara que possuía nos
arredores de Roma, encontrando-a deserta. Depois um dos libertos o teria ajudado a
suicidar-se enquanto ele dizia: que grande artista perde o mundo! Mas é difícil
acreditar que no geral panorama de covardia e omissão ex-escravos tenham se
portado tão nobremente, arriscando-se a ficar com ele até o fim, quando os seus
próprios ministros e familiares já lhe tinham virado as costas. A hipótese mais
provável é que ele fugiu só com Áctea e o escravo para a casa de campo. Vendo-a
deserta, o seu caráter covarde o pôs de novo em pânico e Áctea, prevendo que ele logo
seria preso e ultrajado antes da inevitável execução, certamente o aconselhou a fazer
algo inteligente.

A versão oficial é que ele se suicidou e seus fiéis servidores fizeram uma pira funerária
onde o cremaram, de sorte que os guardas acovardados, que haviam se colocado à
disposição do Senado tão logo o tirano fugira, saíram à sua procura e ao chegarem à
chácara só acharam cinzas e restos humanos irreconhecíveis. Indagados por que
haviam feito a cremação com tanta rapidez, os autores e testemunhas do fato
disseram que apenas cumpriram as ordens do amo, pois ele temia que seu cadáver
fosse vilipendiado e arrastado pelas ruas de Roma. Os oportunistas guardas e
senadores tinham sido leais a Nero até poucos dias atrás e por isso não investigaram
o assunto mais a fundo, preferindo dá-lo logo por encerrado. O rápido inquérito
concluiu que os depoimentos eram convincentes e que os anéis calcinados
encontrados nos despojos, inclusive o que continha o sinete imperial, eliminavam
quaisquer dúvidas. Assim, confirmaram o suicídio do déspota e aclamaram Galba
novo imperador. Mas outra versão diz que os guardas chegaram antes da cremação e
puderam testemunhar que o cadáver era mesmo de Nero, por isso o Senado
promoveu-lhe discreto funeral e depositou suas pretensas cinzas no túmulo da
família. Porém é lícito pensar que isso foi inventado e o funeral foi encenado apenas
para tirar as dúvidas dos recalcitrantes que se negavam a acreditar no suicídio do
sórdido imperador após a aclamação de Galba.
Lutas de gladiadores eram o espetáculo preferido dos romanos e Nero as proporcionava em
abundância
às massas, por isso elas o adoravam. Quadro de Jean-León Gerôme (séc. XIX)

A verdade é que o povão idolatrava Nero pela fartura de pão e circo que ele lhe
dava e recusou-se a acreditar na sua morte. Para completar, algum tempo depois
Áctea e o escravo sumiram e os boatos eram de que eles tinham ido se juntar ao
saudoso imperador em seu esconderijo. Isto fez impostores dizerem-se Nero e
reivindicarem o trono à frente de multidões rebeladas, mas foram presos e
executados. Alguns meses depois o novo imperador foi assassinado em um motim
militar e mais dois imperadores o seguiram em rápida sucessão, o que piorou as
coisas ainda mais. Seguiu-se um ano de anarquia até que o enérgico e hábil general
Vespasiano tomou o poder e restaurou a ordem abalada, quase que
imediatamente dando início à construção do Coliseu, o maior e mais suntuoso circo
que já existira (70 DC). Isto deu emprego à turba ociosa da capital e fez com que os
arruaceiros logo esquecessem o seu pranteado ídolo.
Para dar vazão ao seu "gosto artístico", Nero mandou martirizar uma jovem cristã amarrando-a ao
dorso
de um touro para reencenar o mito de Dirce. Quadro de Henryk Siemiradzki (séc.
XIX)

Todavia, por incrível que pareça, o mito de Nero como "ótimo imperador" persistiu
durante anos no meio do povo e vez por outra apareceram impostores dizendo-se
Nero e arrebanhando centenas de seguidores, os quais eram logo dispersos pelas
autoridades e quase sempre presos e executados. Isto originou debates entre
historiadores, alguns, como Flavius Josefus, defendendo Nero, e outros, como
Suetonius e Dion Cassius, atacando o monstruoso tirano. Porém, por mais boa
vontade que se tenha, impossível é não concluir que ele foi um desastre como homem
e como governante. Uma fria análise do seu caráter e das suas ações privadas mostra
que ele foi um degenerado moral dotado da mais extrema perversidade, e um
cuidadoso exame do seu governo e das suas ações públicas mostra que ele foi um dos
piores e mais torpes imperadores que Roma teve em toda sua história.

Porém, pondo de lado a história oficial e as críticas pró e contra para focar apenas
na sua morte, há bons indícios de que o povão estava certo e que o suicídio de Nero
foi uma farsa. As evidências mostram que ele seria o último sujeito do mundo a
suicidar-se, pois gozava a vida a todo vapor. Apesar de ser covarde e monstruoso, ele
tinha apenas trinta e dois anos, era boa pinta, culto, educado e muito simpático. Era
também farrista inveterado e se lixava para as tarefas de governo, deixando-as aos
cuidados de corruptos e incompetentes cupinchas, geralmente ex-escravos e gente
da mais baixa extração social. A sua paixão era o teatro, pois tocava vários
instrumentos musicais, cantava, recitava, dançava e representava! Também adorava
competições esportivas, das quais às vezes participava e vencia por absurdas decisões
de juízes aduladores. Em resumo: sendo um maníaco assassino destituído de
qualquer tipo de sensibilidade humana e de mínimos freios morais capazes de levar
o homem normal à autocrítica e ao arrependimento, Nero era o típico indivíduo
monstruoso que jamais se suicidaria!
Guiando o seu próprio carro, o monstruoso imperador passeia por avenida de Roma
iluminada por cristãos transformados em tochas humanas

Exame detalhado da sua psicopática personalidade hedonística e assassina,


insensível ao sofrimento alheio e ligada apenas aos gozos egoístas mais pervertidos e
aos mais baixos apetites pessoais, dá suporte à hipótese de que, ao contrário do relato
histórico, ao chegarem à chácara deserta ele e os seus comparsas mataram algum
pobre diabo que perambulava nos arredores, vestiram-no com os trajes refinados do
imperador, puseram-lhe nos dedos os anéis imperiais e o queimaram. Em seguida
Nero, grande aficionado da arte dramática e que já atuara nos palcos como amador,
disfarçou-se e foi para o esconderijo seguro que lhe indicaram. Levando bastante
dinheiro e mantimentos, esperou a poeira sentar e Áctea ir com o bom escravo
encontrá-lo. Depois viajaram incógnitos e juntaram-se como modestos atores a
algum circo mambembe itinerante. Sempre atuando, devem ter chegado ao mar Egeu
e desembarcado na Ásia Menor, onde a língua franca era o grego. Nero o falava bem
e, com a experiência teatral que adquirira e o dinheiro que levava, não lhe deve ter
sido difícil tornar-se ator razoável e dono de circo ambulante. As possibilidades de
ser reconhecido eram nulas, pois nunca estivera na Ásia e na época não havia jornal,
fotografia, rádio ou televisão; suas habilidades lhe permitiam representar o papel de
homem do povo, com o qual sempre convivera bem, e, como os atores usavam
máscaras quando atuavam, era impossível alguém da plateia reconhecê-lo. Ademais,
chances de um romano seu conhecido ir ver o espetáculo de um circo no interior da
Ásia eram de uma em um bilhão!

É só uma hipótese, mas é bem possível que Nero tenha vivido feliz como ator o resto
da vida tendo sempre ao seu lado a dedicada Áctea e morreu velho de causas naturais.
Talvez em pleno palco, como aconteceu ao famoso Molière muitos séculos depois!
Post nº 11

NIBELUNGOS - A
VERDADE HISTÓRICA
POR TRÁS DO MITO GERMÂNI
CO

A "Cavalgada das Valquírias" é um dos episódios mais famosos das magníficas óperas
de Wagner. Tela do pintor americano William Maud (séc. XIX)
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Na Idade Média os germânicos procuraram se atribuir uma civilização e um passado


glorioso que nunca existiram, pois até o século VI não possuíam cidades na margem
direita do Reno, ou seja, na Germania propriamente dita; as que existiam estavam
na margem esquerda e tinham sido fundadas por gauleses ou romanos. A Germania
era pobre, atrasada e povoada por tribos primitivas que emigravam sem cessar para
o ocidente em busca de melhores condições de vida no próspero território do
Império; a fome e a miséria entre os povos germânicos, além das ferozes guerras que
travavam entre si ou com outros povos igualmente primitivos, foram as verdadeiras
causas das chamadas Invasões Bárbaras.

Entre os invasores estavam os belicosos burgundos, que tentaram repetidas vezes


cruzar o Reno e só o conseguiram no início do século V, ocupando uma região que
passou a se chamar Burgundia ou Borgonha e travando contínuas guerras contra os
romanos que tentavam expulsá-los. Finalmente, na década de 420, um tratado de
paz concedeu-lhes a região e eles tornaram-se súditos e aliados do Império.
Todavia, alguns anos depois tentaram ocupar mais territórios e foram derrotados
pelo general romano Flávio Aécio. De volta ao seu território original, entraram em
confronto com os hunos e foram massacrados. Finalmente se contiveram e
tornaram-se firmes aliados dos romanos, ajudando Aécio a derrotar Átila em 451. Na
Idade Média a Burgundia se tornou um dos mais poderosos principados da Europa,
tendo no duque Carlos o Temerário, chamado "O Fazedor de Reis", o seu mais
notável líder.
O massacre dos burgundos pelos hunos na primeira metade do século V é simbolizado no final
do poema pela
sangrenta batalha no castelo de Átila. Cena do filme "Die Nibelungen" de Fritz Lang (1924)

Tudo indica que foi após a final celebração da paz com os romanos que ocorreram os
fatos inspiradores dos Cantos dos Nibelungos, pois não falam dos romanos, mas
falam muito dos hunos e do seu rei Átila a quem os germânicos chamavam Wetzel. A
epopéia termina com a morte dos líderes burgundos e de Kriemhilde, esposa de
Siegfried que ao enviuvar casa com Átila, por isso podemos situar a ação dos poemas
entre os anos 430, quando foi celebrada a paz com o Império, e os anos 450, quando
o famoso rei dos hunos morre e o seu império desaparece. Os burgundos não
conheciam a escrita e não fizeram registros relativos ao período, mas existem relatos
romanos dizendo que na época os seus líderes mais importantes eram Gundefredus
e o seu cunhado Sigefredus, sendo que o primeiro era famoso pela astúcia e o segundo
pela bravura. A terminação fried era bastante usada pelos germânicos nos nomes
próprios masculinos, e estes, quando latinizados, adquiriam a terminação fredus. É
possível que um deles se chamasse Guntherfried e o outro Siegfried, e os romanos
lhes tenham latinizado os nomes para Gundefredus e Sigefredus. Assim, é razoável
supor que os referidos líderes burgundos fossem os Gunther e Siegfried dos Cantos.
Os dois teriam rompido devido a um escândalo familiar, pois se dizia que o segundo
seduzira a esposa do primeiro, além de se recusar à vassalagem que Gundefredus,
com o apoio da grande maioria dos chefes de clãs, se obrigara a prestar aos romanos
em troca da paz e dos territórios que ocupavam. Por isso Sigefredus retirara-se para
o alto Reno, onde criara um principado e travara sangrentas guerras com tribos
rivais; no processo, adquirira fama legendária por sua extraordinária bravura e
aliara-se aos hunos, ao contrário do seu cunhado Gundefredus, que se mantivera fiel
à aliança com Roma. Quando Sigefredus foi morto, Átila tomou a bela viúva sob sua
proteção e exterminou os inimigos do antigo aliado.

No poema, os burgundos do rei Gunther que escapam do incêndio no castelo de Átila são executados
por ordem da rainha Kriemhild. Cena do filme de Fritz Lang "Die Niebelungen" (1924)

As escassas fontes escritas não mencionam outros personagens nem o


envolvimento de Gundefredus na morte do cunhado, ou que esta tenha ocorrido de
forma traiçoeira; tampouco dizem ter Gundefredus morrido pela mão de Átila,
embora isto possa ter ocorrido quando ele massacrou os burgundos nos anos 430 ou
quando invadiu a Gália em 451, promovendo novo massacre. Embora as poucas
fontes não se refiram diretamente a Gundefredus (em português Godofredo), elas
dizem que os principais líderes burgundos pereceram na batalha, mas não dizem que
tenham sido capturados e executados por Átila. Derrotados, os seus guerreiros
remanescentes retiraram-se para a Bélgica, onde formaram um novo exército com
outros líderes e uniram-se aos francos de Meroveu, participando da coalizão formada
por Aécio para derrotar os hunos na batalha dos Campos Catalúnicos, também
chamada "A Batalha das Nações", pois nela participou a maioria dos povos europeus
da época. Quanto à morte do temido rei dos hunos, os historiadores são unânimes
em afirmar que ela ocorreu por causas naturais em seu palácio de madeira na
Hungria dois anos após sua derrota na Gália, não havendo indícios de assassinato. A
versão da lenda, de que Wetzel tenha sido vítima de aliados de Gunther e Hagen, não
possui qualquer suporte histórico.

Os nebulosos personagens e os poucos fatos historicamente comprovados,


que certamente estão por trás da lenda, são os antes mencionados. Tudo o mais
nos Cantos dos Nibelungos (seres sobrenaturais, acontecimentos mágicos e detalhes
fantásticos) ficam por conta da imaginação popular e do talento criativo de brilhantes
escritores e grandes músicos.

Post nº 10

NIBELUNGOS - O POEMA MEDI


EVAL QUE INSPIROU O NACIO
NALISMO
GERMÂNICO
As valquírias eram belas guerreiras que galopavam nos céus e levavam
ao paraíso do Valhalla os heróis mortos em combate
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A literatura de ficção da Idade Média foi dominada pelos franceses com o


gênero "Romance de Cavalaria e de Amor Cortês", mas outros povos europeus
também estiveram presentes ao intenso ressurgimento da Literatura Ocidental
ocorrido nos séculos XII e XIII. Dentre esses destacaram-se os germânicos e
escandinavos que, inspirados em antigas sagas nórdicas, brindaram a civilização com
dois notáveis poemas compostos por talentosas mãos anônimas. O primeiro
foi Beowulf, escrito em dialeto anglo-saxão da alta Idade Média, e o segundo, escrito
em alemão mais recente, foi Os Nibelungos, também conhecido como A Canção do
Nibelungo ou Cantos dos Nibelungos.
Página de abertura de uma das edições manuscritas de "Nibelungos", feita
provavelmente na primeira metade do século XIII (1220-1250)

O primeiro, tendo guardado a forma e a linguagem primitiva, a ponto de se dizer que


fora publicado tal como composto nos século VIII e IX, não teve público na brilhante
baixa Idade Média e não se destacou depois, mas o segundo adquiriu grande voga
nos países de língua alemã por ter sido escrito em linguagem bem mais moderna no
século XIII e em primorosos versos rimados e metrificados organizados em estrofes.
Ademais, o seu talentoso autor, cujas razões para ficar anônimo são
desconhecidas, adotara em sua obra a paixão e o estilo do Romance de Cavalaria e
de Amor Cortês, adorado pelo sofisticado público leitor que na época tinha no
francês a sua língua culta corriqueira. Isto fez com que o público leitor alemão que
não dominava o idioma francês se deliciasse com um poema que celebrava lendas
suas em seu idioma, mas impediu que ele ganhasse outros públicos e fosse conhecido
fora dos limites da cultura germânica.

"Nibelungos" é inspirado nas sagas nórdicas que têm nas Valquírias os seus mais marcantes seres
mitológicos

Porém o mais importante em Nibelungos é ser ele na sua essência um contraponto


ideológico ao Romance de Cavalaria e de Amor Cortês, cuja forma adota sem adotar-
lhe o conteúdo, pois enquanto este celebra valores éticos do cristianismo como amor,
lealdade e justiça, aquele celebra valores éticos do paganismo como ódio, traição e
vingança. Tirante a comum afeição pelo fantástico e pelo sobrenatural, sua essência
está muito mais próxima da Ilíada do que da Canção de Rolland e por isso não é de
estranhar tenha modernamente se tornado o poema favorito de uma parte do povo
germânico que repudiou o humanismo universal em favor do nacionalismo
exclusivista.
Embora no contexto do poema o dragão seja a personificação do "mal", tampouco é Siegfried a
encarnação
do "bem" segundo o ideal cristão. Cena do filme de Fritz Lang "Die Niebelungen"
(1924)

Em "Nibelungos" é evidente o repúdio aos ideais éticos do cristianismo e


a romantização de valores éticos do paganismo. Isto talvez tenha sido a causa do seu
genial autor medieval ter preferido as sombras do anonimato ao brilho da
popularidade e da riqueza, que por certo teria caso tivesse se identificado e escrito
em francês. Isto nos leva a crer que o magnífico poeta talvez fosse um
clérigo inspirado que estivesse com a sua fé em dúvida e não desejasse correr o risco
de ser chamado a um Tribunal Eclesiástico para explicar o conteúdo anti-cristão da
sua obra. Embora a repercussão de Nibelungos tenha sido modesta na Idade Média,
no século XVIII o poema obteve grande prestígio quando Herder o tomou como base
do romantismo nacionalista alemão, pregando uma identidade racial e cultural
germânica que viria a produzir funestos resultados no futuro.
O filósofo, linguista e literato Johann Gotfried Herder era um liberal iluminista,
mas chocou o ovo da serpente ao pregar o nacionalismo germânico

O nobre objetivo de Herder era tentar curar os alemães de sua baixa autoestima
devido à miséria causada por séculos de lutas fratricidas, fanatismo religioso e
disputas entre príncipes feudais ambiciosos, ocupados apenas em oprimir e explorar
o povo. Achava ele que se os alemães voltassem a se orgulhar de suas raízes culturais
e de sua história adquiririam sólido sentimento de pátria, expulsariam os crueis
senhores feudais e construiriam uma nação unificada capaz de satisfazer os anseios
de todos por liberdade e justiça. Herder alcançou em parte o seu objetivo um século
depois quando a Alemanha foi unificada em poderoso Império, mas no processo
despertou exarcerbado sentimento étnico e cultural que viria mais tarde a
desembocar no mais enlouquecido nacionalismo racista, coisa que jamais esteve nos
seus planos e ele nem de longe poderia prever nem muito menos querer.
Na revolução cultural por ele desencadeada, o poema foi redescoberto e muito
comentado, mas o seu prestígio máximo só foi alcançado no século
seguinte quando Richard Wagner compôs a sua obra-prima musical O Anel dos
Nibelungos, dividida em quatro óperas: O Ouro do Reno, A Walkyria, Sigfried e
o Crepúsculo dos Deuses, as quais lhe deram fama imorredoura. No século XX ele
adquiriu notoriedade macabra quando Hitler e o regime nazista
proclamaram Nibelungos "Saga Nacional Alemã" e endeusaram a música de Wagner
por tê-lo transformado em belíssima epopeia musical. Todavia, devemos ressaltar
que as óperas de Wagner têm pouco a ver com o poema propriamente dito, baseando-
se nas coletâneas de lendas nórdicas sobre heróis mitológicos que são também
personagens de Nibelungos e não no enredo deste.

Disposto a apoderar-se do tesouro dos anões feiticeiros, Siegfried invade a caverna onde ele
é ciosamente
guardado pelo feroz dragão Fafner. Cena do filme "Die Niebelungen" de Fritz Lang
(1924)

Polêmicas aparte, a verdade é que se examinarmos com cuidado as poéticas, porém


indecentes e sanguinárias lendas, veremos que Nibelungos está eticamente muito
mais próximo dos poemas homéricos e de outros poemas pagãos da antiguidade do
que dos poemas cristãos que lhe são contemporâneos, repletos dos altos ideais éticos
da apaixonada literatura cavalheiresca da Idade Média. Vejamos um breve resumo
do tema central do poema.
O príncipe Siegfried é líder de uma tribo dos burgundos, também conhecidos como
borgonheses. Famoso por sua beleza e valentia, quando jovem ele matara o
rei Nibelungo e seu irmão, chefes de uma tribo de anões feiticeiros também
conhecidos como "Nibelungos", e depois matara o gigante Fafner, amigo dos anões.
Para proteger o seu enorme tesouro, Fafner o guardara em uma caverna e se
transformara em dragão para melhor defendê-lo, mas Siegfried dele se apodera após
matar o monstro e tornar-se invulnerável banhando-se no seu sangue. No processo,
uma folha cai de uma árvore e cola-se nas suas costas, impedindo o sangue da fera
de blindá-lo totalmente e deixando-o vulnerável nesse ponto.

Siegfried mata o dragão e após banhar-se no seu sangue fica invulnerável, exceto em
local das
costas onde uma folha caída se grudara e impedira de ser banhado pelo sangue da
fera

Depois dessa extraordinária façanha, o seu clan adota o nome de "Nibelungos" por
ter a posse do Tesouro e ele vai à Worms, capital da Burgundia, pedir ao rei Gunther a
mão de sua irmã Kriemhild, cuja beleza é celebrada por todos. Este não a
apresenta de logo ao herói, pois resolve primeiro testar a sua bravura encarregando-
o de liderar uma guerra contra os dinamarqueses. Quando ele volta vitorioso após
realizar novos prodígios, é apresentado a Kriemhild e fica ainda mais apaixonado,
porém Gunther diz que só lhe concederá a mão da irmã se o príncipe ajudá-lo a
conquistar a virgem valquíria Brunhild, rainha do "país das névoas" (identificada no
poema como a Islândia, mas provavelmente uma tribo da Escandinávia). Ela é
famosa por sua extraordinária força e poderes mágicos, tendo declarado que só se
casará com o homem que a vencer numa série de desafios por ela própria criados.

Não consta do poema, mas consta das sagas nórdicas que ambos já se conheciam,
pois anos antes Siegfried, utilizando-se dos talismães enfeitiçados que roubara de
Nibelungo, não só a acordara de um sono mágico como a libertara do círculo de fogo
onde o deus Wotan seu pai a aprisionara após grave desentendimento. Siegfried e a
valquíria teriam se apaixonado, mas ela recusara-se a dar-lhe sua virgindade
temendo perder seus super-poderes e ele a abandonara profundamente frustrado.
Depois disso ela jurara que só se entregaria ao homem que lhe fosse superior em
força e bravura, o que era praticamente impossível acontecer. Ocorre que ao
apoderar-se do tesouro Siegfried também se apoderara dos talismães enfeitiçados de
Fafner com os quais, segundo as sagas escandinavas, salvara Brunhild e poderia tê-
la ganho com eles, porém não o fez por querer que a conquista se devesse aos seus
méritos e não à artes mágicas. Por isso desistira dela e se apaixonara por Kriemhild,
sendo ardentemente correspondido.
Brunhild é filha do deus Wotan, mas ele a prende em um círculo de fogo e
Siegfried a liberta. Gravura de Ferdinand Leek (séc. XIX)

No poema ele não se importa com Brunhild e quer ganhar Kriemhild a qualquer
custo, por isso veste o capuz mágico roubado dos anões feiticeiros e com os seus
super-poderes assume as feições de Gunther para vencer em seu lugar os testes de
força exigidos pela indômita valquíria. Porém ela fica desconfiada de ter sido
enganada por Gunther e se apaixona por Siegfried, mas tem de cumprir sua palavra
e casa-se com Gunther na mesma cerimônia em que Siegfried também se casa com
Kriemhild. Contudo, ela o faz contrariada por estar enciumada de Kriemhild
e suspeitosa de ter sido vencida nos testes mediante engodo. Por isso nega-se ao
marido na noite de núpcias, amarrando-o e pendurado-o no teto de forma
ridícula para que ele não a moleste durante o sono.
No poema Brunhild é poderosa guerreira que reina no País das Névoas e por amor vira mulher
comum,
mas nas nas sagas nórdicas é divindade que galopa nas nuvens. Tela de Peter Arbo (séc.
XIX)

Desesperado, Gunther novamente recorre ao cunhado para que com os seus poderes
convença Brunhild a aceitar a consumação do casamento, mas Siegfried resolve
divertir-se aproveitando a situação para deflorar Brunhild e não para convencê-la a
se entregar a Gunther. Assim, usa o capuz mágico para ficar invisível e entrar
no quarto da valquíria, dominando-a e deflorando-a. Não satisfeito, rouba-lhe os
mágicos cinto de seda e anel de ouro, que são os símbolos da sua pureza e fontes do
seu poder. Após também usar o capuz mágico para fazê-la esquecer o estupro, oculta
sua torpeza e diz a Gunther que a encantou e ela não mais lhe resistirá. Ignorante do
que o cunhado fizera, coisa que a própria Brunhild ignora, Gunther consuma o
casamento por ter ela ficado fraca ao perder a virgindade e os poderes mágicos.
Enquanto isso Siegfried, sentindo-se orgulhoso da sua façanha, conta-a
à Kriemhild e a presenteia com os troféus roubados da valquíria.
Sigfried apaixona-se ao conhecer a doce Kriemhild, mas a concepção de amor do poema difere
daquela
da Idade Média e da atual, pois é moralmente inaceitável o que ocorre em
Nibelungos

Não sabendo da fraude do marido, ela fica enciumada por achar que ele
apenas cedera aos encantamentos de Brunhild, mas o perdoa e aceita as jóias da
outra. Na verdade ela está não somente enciumada, mas também enraivecida por
achar que as jóias foram dadas por Brunhild a Siegfried como suborno para seduzi-
lo. Porém ela guarda segredo e as coisas parecem calmas até o dia em que o casal vai
a Worms visitar os soberanos. As duas mulheres então brigam por vaidade na
entrada da catedral e Kriemhild, com ciúmes de Brunhild, chama-a de prostituta e
acusa-a de seduzir Siegfried, trazendo a trama à superfície.

Cientes do estupro, a estupefata Brunhild e o indignado Gunther rompem com eles,


fazendo com que Hagen, fiel amigo de Brunhild e parente próximo de Gunther,
decida vingá-la do sórdido defloramento. Após acumpliciar-se com o marido
ultrajado, Hagen engana Kriemhild fazendo-a revelar o ponto fraco de Siegfried
enquanto Gunther finge fazer as pazes com ele. Após elaborarem o seu
traiçoeiro plano, convidam Siegfried para uma caçada durante a qual
Hagen aproveita-se do momento em que o herói se curva para beber água em um
regato e crava-lhe a lança no seu único ponto vulnerável: o que a folha impedira de
ser banhado pelo sangue do Dragão!
Atraído a uma caçada por traidores, Siegfried morre ao ser ferido no seu
único ponto vulnerável: a parte
das costas que não fora banhada pelo sangue do dragão! Cena do filme "Die
Niebelungen"

O mal e a total ausência de cavalheirismo eram até então presenças


constantes em Nibelungos, mas mostravam-se em vestes discretas, porém o frio
assassinato de Siegfried abre a caixa de Pandora e os demônios espalham-se sem
peias pelo mundo, tornando-se a única força que de fato domina as mentes e conduz
os acontecimentos. Se a desonestidade, o engano e a indecência até então eram o
contraponto do poema aos altos ideais de honra, verdade e lealdade que norteiam o
romance medieval cristão de cavalaria, agora são os valores abertamente pagãos de
ódio e vingança entronizados naquele que vão contrapor-se aos valores de amor e
justiça consagrados neste. Untando sua mão no sangue de Siegfried, a até então doce
Kriemhild decide que vingará o marido covardemente morto custe o que custar. Para
ela, heroína da segunda parte do poema, o ódio é muito mais forte que o amor, o
perdão não existe e a vingança é mais importante que a justiça.
Kriemhild transforma o amor pelo marido desleal em ódio pelo irmão e decide que
a vingança
é mais importante que a justiça. Cena do filme "Die Nibelungen"

Kriemhild volta-se contra o seu irmão Gunther e seus demais familiares, sobretudo
o assassino Hagen, e assume a liderança da família do marido morto, mostrando a
todos valentia e determinação até então desconhecidas. É quando o poema mostra
que no litígio estão também envolvidos o roubo e a cobiça, pois a principal
reivindicação de Kriemhild e seus partidários não é apenas a vingança, mas a
devolução do valioso tesouro dos Nibelungos roubado pelos assassinos.

Após matar Siegfried, Hagen tinha se apoderado da sua espada famosa e do


seu fabuloso tesouro, vangloriando-se da sua traição como se fosse um herói por
assassinar covardemente um verdadeiro herói e roubá-lo. Mais do que o assassinato
é isto que enfurece Kriemhild e os seus partidários, fazendo inclemente e catastrófica
a luta familiar que se segue ao crime. Em consequência, Hagen julga que o Tesouro
dos Nibelungos é amaldiçoado e é a causa de todas as desgraças, além de ser também
um grande perigo para o seu partido, pois aumentará o poder de Kriemhild caso volte
às suas mãos. Assim, resolve livrar-se dele entregando-o à guarda das ninfas do
Reno.
A doce Kriemhild chora Siegfried, amaldiçoa os seus assassinos e jura
vingança. Cena de "Os Nibelungos" de Fritz Lang

Depois que Hagen desfaz-se do tesouro a luta fratricida se acalma, mas


Kriemhild persiste secretamente no seu primitivo intento e firma um tratado de
paz fingindo ter perdoado os seus parentes assassinos. Ela aparenta manter-se em
bons termos com eles, mas é tudo um engodo e o faz apenas para fortalecer-
se enquanto espera como serpente traiçoeira a oportunidade de destruí-los.
Hagen suspeita da traição de Kriemhild e adverte Gunther. Cena do filme "Die Nibelungen"

Finalmente, ao casar-se em segundas núpcias com Wetzel, nome que os germânicos


dão a Átila o Huno, ela consuma a sua vingança fazendo o seu feroz marido preparar
uma armadilha para os seus familiares assassinos. Assim, os convida para um
banquete em sua corte na Hungria e eles ingenuamente aceitam, sendo recebidos
com grandes festas e efusivas manifestações de amizade até que Wetzel
subitamente lhes dá voz de prisão. A luta explode entre hunos e burgundos no salão
real e após terrível combate, onde o próprio filho de Átila e Kriemhild é morto à vista
do casal, os burgundos expulsam os hunos do palácio e nele se entrincheiram,
somente depondo as armas quando Kriemhild manda incendiá-lo.
Finalmente dominados, o rei dos hunos entrega à vingança da esposa todos os
prisioneiros, entre os quais estão Gunther e Hagen.
Kriemhild torna-se monstruosa após a morte de Siegfried e faz com que Wetzel (Átila),
seu segundo
marido, a ajude a matar o próprio irmão e seus cúmplices. Cena do filme "Die
Niebelungen"

Com o seu ódio à flor da pele por terem eles durante as festas vangloriado-se do
covarde assassinato de Siegfried, julgando erroneamente que de há muito estivesse
tudo esquecido e perdoado, Kriemhild os humilha com escárnio e manda executar
todos os prisioneiros, inclusive o seu irmão Gunther, mas poupa Hagen porque não
acredita que ele tenha entregue o Tesouro às ninfas do Reno e o quer de volta. Assim,
ela lhe exibe a cabeça de Gunther dizendo que o mesmo lhe acontecerá caso não
revele onde escondeu o tesouro, mas ele se nega e ela pessoalmente lhe corta a cabeça
com a mesma famosa espada que ele roubara de Siegfried. Na ocasião o cavaleiro
Hildebrand fica indignado com o procedimento traiçoeiro, vingativo e cobiçoso de
Kriemhild e mata-a sem que Átila o impeça, pois a essa altura ele também a reprova
pelos males causados. O poema termina com o poderoso rei dos hunos lamentando
a morte de tantos heróis e manifestando a esperança de que a sua história não seja
esquecida.
A luta no palácio de Átila é feroz e no final os burgundos são exterminados. Cena do filme "Die
Nibelungen"

Inúmeros episódios igualmente crueis e fantásticos permeiam o núcleo central da


narrativa, dando ao poema notável vivacidade ao por em evidência o lado negro do
ser humano, pois é um festival de roubos, trapaças, intrigas, traições, feitiçarias,
vinganças e assassinatos, onde dragões, bruxos e seres demoníacos estão por toda
parte. Nele o super-homem está mais para super-vilão do que para super-herói e
pouca coisa realmente nobre e decente acontece. As razões de ter se tornado tão
famoso só podem ser buscadas na beleza dos versos e na magia da música de Wagner,
porque moralmente é calamitoso.
Ao contrário dos poemas cristãos onde os maus tornam-se bons pelo perdão e
arrependimento,
em Nibelungos os bons tornam-se maus e Kriemhild vira um
monstro

Não é de se estranhar, portanto, tenha a sua intrínseca indecência e desumanidade,


apresentadas em belas e sedutoras vestes, impressionado de forma tão avassaladora
a doentia mente nazista. Alguns chegam mesmo a dizer, embora disso eu discorde,
que o poema revela muito do eu profundo dos alemães e explica parte das atrocidades
que praticaram em tempos recentes, mas devemos considerar tais opiniões
preconceitos que não fazem justiça ao muito que também deram à humanidade ao
longo da história. Em todo caso, tais interpretações são assunto para psicanalistas e
não para historiadores.

Fritz Lang, o famoso diretor alemão que fez o magnífico filme Die Niebelungen em
1924, era ativo anti-nazista e sempre repudiou as insinuações de que a sua
obra contribuíra para a "mitologia hitlerista", afirmando que Nibelungos era tão
somente uma obra-prima da poesia germânica medieval celebrando as lendas e os
mitos de um povo em seus estágios primitivos de civilização, tendo ele para os
alemães o mesmo significado que a Ilíada tinha para os gregos. Mas eu creio que
Lang somente estaria certo caso Nibelungos tivesse sido escrito em plena Era Pagã,
como foi o caso da Ilíada, e não em plena Era Cristã.

Restam vários exemplares fragmentados e alguns completos do que se considera a


publicação original de Nibelungos no século XIII, mas apresentam diferenças entre
si, uns apresentando episódios que não constam dos outros e vice-versa. Todavia não
há duvida de que são do mesmo autor, o que leva a supor que tenham sido fruto de
edições separadas por alguns anos e que ele tenha decidido acrescentar
alguns episódios e excluir outros, daí as diferenças. Porém elas não alteram o enredo
nem afetam o valor literário da obra.
Cabe à valquíria escolher os guerreiros mortos em combate que devem ir para o Valhala,
por isso ela está muito associada à morte. Tela de Peter Arbo (séc. XIX)

Há que se levar em conta também que na época os livros eram manuscritos e não
impressos, o que fazia com que raramente dois exemplares fossem rigorosamente
idênticos. Alguns copistas eram criativos e gostavam de modificar ou inovar sem
alterar de modo flagrante a forma ou o conteúdo da obra. Se fossem talentosos para
não só criar, mas também assimilar e reproduzir o estilo do autor, versos e até
estrofes inteiras podiam ser acrescentadas a um poema sem que se visse a mão alheia.
Porém o mais provável é que as mudanças tenham sido feitas pelo próprio autor entre
uma edição e outra.

Existem poemas germânicos medievais menores e sagas nórdicas tendo como


personagens os mesmos heróis e heroínas que povoam os versos de Nibelungos.
Brunhild, por exemplo, aparece em alguns poemas escandinavos como "anjo do mal"
e em outros como "anjo do bem". Isto é explicável por não ser ela burgunda e em
Nibelungos ser apresentada como "raínha do país das névoas", certamente um país
da Escandinávia, mas o correto é tê-la como uma primitiva divindade
tanto escandinava quanto germânica, pois o germânico deus Wotan, o pai cruel que
a castiga aprisionando-a no círculo de fogo, é sob o nome de Odin um deus também
escandinavo.

Todavia há indícios de que Nibelungos, embora fantasioso na sua essência, baseia-se


em fatos reais ocorridos durante as grandes invasões bárbaras do Império Romano,
nas quais os burgundos tiveram papel importante. Não só Átila o Huno é um
personagem histórico real como historicamente reais foram as sua alianças e lutas
com os burgundos, bastante realçadas no poema, sendo certo que ele os
massacrou em 437, após estes terem sido derrotados pelo romano Flávio
Aécio, e teve como esposas princesas borgonhesas em decorrência de alianças
políticas. Assim, é bem possível que Siegfried, Kriemhild e Guntherfried (Sigefredus,
Cremilda e Godofredus para os romanos) tenham sido pessoas reais que depois
foram mitificadas pela lenda.

Post nº 09

O DIA EM QUE SANTOS E ANJ


OS FIZERAM ÁTILA RECUAR

O inexplicável recuo de Átila em 452, após conferenciar com o Papa Leão I no norte da Itália, é
um dos grandes mistérios da história. Afresco de Rafael (séc. XVI)
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Em 452 Átila cruzou os Alpes Orientais com o seu enorme exército de cavaleiros
hunos e devastou o norte da Itália. Sem condições de enfrentá-lo em batalha campal,
pois o exército romano era muito inferior ao exército huno, o general Aécio foi para
as montanhas com os seus poucos batalhões e lhe moveu incansável guerra de
guerrilhas. Porém Átila continuou a saquear e destruir, até que resolveu marchar
para o sul e apoderar-se da mais rica presa de todas: Roma!

O caminho estava completamente aberto: não havia nenhum exército


inimigo e a população civil abandonara suas casas, fugindo aterrorizada para as
montanhas. Devido ao ódio que tinha aos romanos e ao cristianismo, o rei dos hunos
era chamado de “O Flagelo de Deus” e contava-se que o seu passatempo favorito era
incendiar igrejas e crucificar padres, dizendo-lhes rindo que assim eles chegariam à
presença de Jesus Cristo de acordo com a sua fé e a certeza da salvação. Porém é
possível que muita coisa fosse lenda ou propaganda do próprio Átila para se fazer
mais aterrador e assim obter o que queria. Durante anos ele obtivera fortunas
chantageando o Império Romano do Oriente, porém quando decidiu fazer o mesmo
com o Império Ocidental o general Aécio, que o conhecia bem, se opôs e o derrotou
em grande batalha na França atual em 451. Mas para realizar tal façanha Aécio tivera
o apoio de Visigodos, Alanos, Francos, Burgundos e dezenas de outras tribos
bárbaras menores já estabelecidas na Gália atacada e em acelerado processo de
romanização. Porém referidas tribos estavam distantes e Aécio não contou com o
mesmo apoio quando no ano seguinte Átila atacou a própria Itália com milhares de
ferozes cavaleiros da Europa central e do leste. Por isso o general romano se refugiou
nas montanhas com o seu pequeno exército e limitou-se a ações de guerrilhas contra
o líder huno, seu ex-amigo e antigo aliado.

O grande adversário de Átila era o general romano Aécio, mas ele não dispunha
de exército capaz de enfrentar os hunos. Ilustração gráfica do autor

Não havendo obstáculos entre os terríveis invasores e a capital do mundo, Átila pôs-
se em marcha com suas centenas de batalhões bárbaros e foi aí que aconteceu um
dos fatos mais surpreendentes e misteriosos da história: à sua frente surgiu o Papa
Leão I montado em uma mula, acompanhado de uma centena de padres e de alguns
altos dignitários romanos, todos eles em trajes simples e completamente
desarmados. O que se passou de verdade ninguém sabe, pois tudo que temos é o
relato da própria Igreja, mas o fato é que Átila fez meia-volta e desistiu de destruir
Roma após conversar longamente com o Papa. Em seguida retirou-se da Itália
acossado pelos batalhões guerrilheiros de Aécio e regressou ao seu reino. No ano
seguinte morreu de causas naturais enquanto dormia ao lado da esposa em seu
palácio de madeira na Hungria atual.

Quando ele desistira de atacar Roma todos gritaram “Milagre!”, pois a Igreja
dizia que Átila obedecera a ordem de Leão para recuar depois que vira São Pedro e
São Paulo pairando no ar sobre a cabeça do Papa, tendo atrás deles uma coorte de
anjos com ameaçadoras espadas de fogo; Átila e os seus guerreiros tinham ficado tão
apavorados que preferiram não insistir e decidiram fazer o longo caminho de
volta. Por incrível que pareça, esta versão predominou durante mais de mil anos e
inspirou artistas como Rafael a retratarem o fantástico evento em esculturas
e quadros famosos. Somente a partir do século XVIII, com o advento do Iluminismo
e da chamada “Era da Razão”, é que surgiram dúvidas e a versão da Igreja foi
contestada. Vários historiadores apresentaram versões alternativas, mas nenhuma
teve comprovação histórica e elas continuam a ser hoje o que eram no início: apenas
hipóteses!
Escultura em mármore no Vaticano sobre o encontro de Átila e Leão I
em 452 no norte da Itália. Alessandro Algardi (séc. XVII)

As únicas testemunhas do fato extraordinário estão mortas há mais de mil


e quinhentos anos e a versão que elas nos deram é a que foi divulgada pela Igreja.
Duvido que algum dia o mistério possa ser esclarecido. De qualquer forma, peguei
um fato histórico comprovado aqui, outro acolá, e embora não se referissem
diretamente a entrevista de Átila com o Papa, juntei todos eles de forma coerente e
ofereci a minha versão no Capítulo III do meu romance “O Senhor dos Dragões”.
Penso que ela não está longe da verdade, mas é uma hipótese como as outras e os
interessados no assunto podem discuti-la e formularem suas próprias versões.

Enquanto isso permanece o mistério!


Post nº 08

O TENEBROSO JULGAMENTO
DOS CAVALEIROS TEMPLÁRIO
S

Morte na fogueira em março de 1314 de Jacques de Molay, grão-mestre dos


Cavaleiros Templários. Autor anônimo (séc. XIX)
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Poucos dias depois do golpe, doutores da Universidade, ordens da nobreza,


confrarias religiosas, corporações profissionais e enorme multidão reunidos em vasta
praça de Paris com bandeiras desfraldadas ao vento, ouvem o libelo acusatório de
Felipe: “Uma coisa amarga e deplorável, horrível de pensar e terrível de ouvir,
execrável de perfídia e detestável de infâmia, uma coisa que nada tem de humano,
mas que é atestada por inúmeros testemunhos, chegou aos nossos ouvidos,
causando-nos violento espanto e horror indizível. A nossa dor foi imensa ao
sabermos dos crimes enormes praticados contra a majestade divina e a fé católica,
crimes que são uma vergonha para a humanidade, um exemplo de perversidade e um
escândalo público”! Em seguida, enumera os sórdidos crimes que atribui aos
cavaleiros: a) na cerimônia secreta de admissão na Ordem renegam Cristo três vezes
e cospem no crucifixo; b) dão e recebem beijos obscenos nas partes íntimas; c)
praticam a sodomia; d) adoram ídolos e cabeças de animais empalhadas, sobretudo
a de um bode que representa Satanás; e) não fazem a consagração da óstia durante a
missa e a rezam diante de uma cruz de cabeça para baixo; f) se masturbam diante da
imagem da Virgem; g) urinam nas imagens dos santos; h) festejam com as bruxas
nos bosques a noite de Walpurgis; i) promovem orgias na quinta-feira santa para
ridicularizar a Última Ceia de Jesus; j) vendem suas almas a Satanás em troca de
riquezas... e por aí vai o absurdo rol de acusações, um dos libelos mais estapafúrdios
da História!

A Inquisição e os clérigos que odeiam os Templários são as maiores armas


de Felipe no torpe processo. Ilustração de autor anônimo (séc. XIX)

Porém, numa época de fanatismo e superstição, o esdrúxulo libelo é de enorme


eficácia para destruir os acusados perante a opinião pública. Sob terrível tortura
muitos confessam; os que não confessam morrem e os carrascos dizem que "se
suicidaram" por não suportarem o peso dos próprios pecados; aqueles que mais tarde
renegarem as confissões serão queimados como impenitentes. Seiscentos anos antes
dos “julgamentos” ordenados por ditadores totalitários contra os seus rivais, durante
os quais confissões descabidas e insensatas serão atribuídas pela imprensa
democrática a refinadas técnicas de lavagem cerebral da polícia secreta, Felipe
consegue o mesmo sem dispor de meios tão sofisticados. Sem imprensa ou rádio, ele
também cria no século XIV a propaganda difamatória massiva. Para tanto usa
arautos que lêem sem cessar em todo reino confissões extorquidas a ferro e fogo,
dando no século XX aos tiranos o imoral ensinamento de que a mentira
incessantemente repetida acaba se tornando verdade!
Bispos e monges de outras Ordens que odeiam os Templários lhes aplicam
as mais atrozes torturas. Ilustração de autor anônimo (séc. XIX)

Enquanto se desenrola o execrável processo, trava-se acirrada luta entre Felipe e o


Papa Clemente V, que diante do fato consumado não tem outra opção senão aprovar
o ato policial do rei, mas dizendo que o processo judicial é da alçada da Santa Sé, pois
só ela tem jurisdição sobre a matéria. Atrás disso não está apenas a tentativa do Papa
de restaurar sua autoridade, mas a posse do enorme patrimônio da Ordem. Em
consequência, ele recusa-se a extingui-la enquanto o assunto não for resolvido e até
lá os príncipes serão apenas fiéis depositários dos bens seqüestrados. Indo adiante,
Clemente promove reunião secreta do Colégio de Cardeais no castelo de Chinon onde
é aprovada bula papal em junho de 1308 anistiando os Templários. Porém Felipe é
informado e impede a sua publicação, mantendo virtualmente prisioneira toda a
cúpula da Igreja. Os altos prelados se calam e o decreto de anistia somente será
conhecido setecentos anos depois quando os arquivos secretos do Vaticano são
abertos à pesquisas de historiadores independentes.
O Papa Clemente V é o modelo perfeito do indivíduo covarde e
pusilânime. Gravura de autor anônimo (séc. XVIII)

O Papa tenta salvar sua cambaleante autoridade mudando-se com sua corte
para território fora da jurisdição real e em agosto de 1308 convoca Concílio para
resolver o caso na cidade de Vienne, sudeste da França, mas independente da
autoridade de Felipe. O rei contra-ataca e convoca assembleia de príncipes e bispos
franceses na cidade de Lion, muito mais populosa e importante que a pequena
Vienne, para examinar a conduta infame do falecido Papa Bonifácio VIII, antecessor
de Clemente V. Este se amedronta e adia o início do Concílio, que só se reunirá três
anos mais tarde. No interregno Felipe finge negociar, mas não entrega ao Papa
nenhum dos prisioneiros. Sadicamente tortura-os nas masmorras e de vez em
quando queima alguns em praça pública.

Para mostrar que não está brincando, em 1310 manda queimar em Paris cinquenta e
dois cavaleiros de uma só vez, no que foi a maior execução por esse tipo de suplício
da história. Os executados não ocupam posições importantes e são de categoria
social inferior, pois ou pertencem à pequena nobreza sem influência política ou
provêm das classes baixas, tendo sido nobilitados pela própria Ordem ao serem
sagrados cavaleiros. Isto faz com que a alta aristocracia se abstenha de manifestar
insatisfações ou protestos e fortalece ainda mais a autoridade de Felipe, que há
tempos é também chamado pelo povo de "O Rei de Ferro". Por enquanto ele poupa
o estado-maior templário, não só porque é constituído por cavaleiros bem
conectados na alta nobreza, mas também porque tem esperanças de que lhe revelem
o paradeiro do Tesouro da Ordem, pois é voz geral que ele não foi encontrado
quando o Templo foi invadido na manhã do golpe.
Em 1310 Felipe manda mensagem de advertência ao Papa queimando
templários em massa. Iluminura medieval

Daí em diante o rei implacável adota o expediente de mandar à fogueira de tempos


em tempos alguns modestos cavaleiros independentemente de aprovação papal para
mostrar à alta cúpula da Igreja que não tolerará absolvições eclesiásticas nem
subterfúgios legais que visem salvar a Ordem da extinção. O seu trabalho é facilitado
pela covardia de Clemente que passa a aparentar estar ao lado de Felipe, ordenando
aos demais príncipes católicos que prendam os Templários que estiverem em seus
territórios e lhes confisquem os bens. Porém apenas Eduardo I da Inglaterra, onde a
Ordem quase não tem presença, e alguns príncipes alemães o obedecem, mas apenas
na Alemanha há algumas execuções. Os príncipes de Chipre e de Rhodes obedecem,
mas não há execuções. Todavia na Península Ibérica, onde estão dois terços dos
cavaleiros e castelos templários na Europa, os decretos papais são solenemente
ignorados e a Ordem continua funcionando normalmente.
Enquanto se desenrola o processo, Felipe e os príncipes europeus, exceto os reis
ibéricos de Portugal, Castela e Aragão, vão roubando e dilapidando os bens da
Ordem. Para agir com tanta desenvoltura e desprezo pela supremacia papal Felipe
tem uma arma poderosa: o processo secreto movido pela Coroa Francesa e seus
bispos mais fieis contra a devassidão e os desmandos do Papa anterior, Bonifácio
VIII, a quem a morte salvara de uma deposição ignominiosa. Friamente, Felipe
ameaça torná-lo público e queimar na fogueira os restos do Papa falecido,
desmoralizando a Cúria de uma vez por todas caso Clemente insista numa atitude
não cooperativa. Assim, tendo o papado em xeque, ele faz o que quer e mantém o
Sumo Pontífice calado e omisso.

Felipe periodicamente queima templários em praça pública para manter submissa toda a alta
cúpula da Igreja através do terror de Estado. Iluminura medieval
Em 1311 o Concílio enfim se reúne depois que Felipe consegue impor a sua agenda e
impedir a presença de prelados notoriamente favoráveis aos Templários. Como se já
dando por certa a extinção da Ordem, o assunto a ser debatido será o que fazer com
os seus bens! O tópico é absurdo porque o estatuto da Ordem diz claramente que o
papado é o seu herdeiro e portanto não há o que discutir, mas é precisamente o que
o acovardado Papa permite discutir, pois o interesse de Felipe e dos seus associados
é não só despojar a Ordem, mas também a Igreja dos bens que legitimamente lhe
pertencem. Apesar de ser uma assembléia manipulada, os escrúpulos jurídicos da
maioria dos seus membros os faz decidir que não é possível condenar os réus sem
que eles sejam ouvidos; por isso ordena que Felipe os apresente para que sejam
corretamente julgados. Porém, temendo que os cavaleiros sejam absolvidos e
escapem das suas garras, Felipe capciosamente argumenta que é desnecessário
apresentá-los in corpore, pois uma comissão nomeada pelo Concílio poderá muito
bem fazê-lo na prisão onde os réus se encontram. Mais uma vez o Papa se curva e os
templários presos ainda vivos, exatamente a cúpula da Ordem, jamais comparecerão
diante de um verdadeiro tribunal antes do Juízo Final. É uma luta política feroz e
indecente onde todos os meios são válidos, até mesmo a vil chantagem praticada
sem qualquer pudor pelas autoridades mais altas da Terra.

Interrogatório de Jacques de Molay pelo tribunal da Santa Inquisição.


Ilustração de autor anônimo (séc. XIX)

Em abril de 1312, no final do Concílio, é selado um acordo que permite ao


Papa Clemente V salvar a cara e a Ordem é extinta, mas ao invés dos seus bens irem
para a Santa Sé irão para os Cavaleiros Hospitalários, uma Ordem bem menos
poderosa e mais acessível à vontade dos reis. Os novos proprietários levarão anos
tentando arrecadá-los, pois quase tudo foi desviado através de inescrupulosas
manobras de príncipes e bispos vorazes cujos "documentos" os cordatos Cavaleiros
Hospitalários não se atrevem a contestar. No fim eles só herdarão dívidas!

Controlando o Concílio do começo ao fim, Felipe dele se utiliza para roubar ainda
mais e astutamente sugere uma "nova cruzada" para reconquistar Jerusalém. Claro
que tanto ele quanto Clemente V sabem que isso é inviável, mas o que ambos de fato
pretendem é arrecadar o famoso dízimo dos cruzados, imposto que é lançado sempre
que se organiza uma nova Cruzada e que tem por fim financiá-la. A "cruzada" é
convocada, o dízimo é cobrado e Felipe e Clemente esquecem o assunto logo que
enchem os bolsos.

Em Portugal, onde a Ordem do Templo continua funcionando e a Ordem do Hospital


não tem presença, o rei Diniz nomeia os próprios ex-templários para administrarem
os bens que já administram e tudo continua na mesma. Mais tarde ele cria a Ordem
dos Cavaleiros de Cristo e obtém autorização papal para doá-los à nova Ordem, na
qual admite os antigos cavaleiros templários. Com essa manobra transforma a
Ordem do Templo na Ordem de Cristo e os cavaleiros de uma em cavaleiros da outra.

Finalmente o processo do estado-maior Templário é concluído pelos inquisidores,


inteiramente dóceis à vontade de Felipe, e os cavaleiros são condenados à morte na
fogueira por heresia e devassidão. Felipe os executa coletivamente em horrendo
espetáculo público, mas, não se sabe bem por que, poupa os dois mais
importantes durante alguns meses. Embora não existam provas documentais ou
testemunhais, tudo indica que ele o faz porque ainda tem esperança de por a mão no
tesouro desaparecido da Ordem, procurando por isso negociar com os dois altos
prisioneiros a revelação do seu esconderijo em troca das suas vidas. Mas as
evidências são de que a aquela altura eles não tinham mais nenhuma confiança no
sórdido monarca e decidiram levar para o túmulo o segredo, saboreando em silêncio
a terrível frustração imposta ao seu feroz inimigo.

Jacques de Molay amaldiçoa o Papa Clemente e o Rei Felipe. Gravura de


autor anônimo (séc. XIX)

Há uma versão que diz terem os cardeais lhes aplicado a pena de prisão perpétua,
mas a teriam agravado para pena de morte em virtude dos réus terem
veementemente protestado inocência. O fato é verdadeiro, mas os cardeais
modificam o veredito não por serem os réus "impenitentes", mas porque Felipe fica
furioso e os manda modificá-lo sob pena de irem todos juntos para a fogueira. Não é
por acaso que Felipe é também chamado de "O Rei Falsário" e "O Rei de Ferro".

No dia 14 de março de 1314 o Grão-Mestre Jacques de Molay e o seu mais importante


auxiliar, Godofredo de Cherney, são levados à fogueira em Paris na presença de
grande multidão e do rei. Contam que várias vezes ele amaldiçoou os seus algozes e
mesmo em meio às chamas ainda teve forças para gritar ao rei: Antes que o ano
acabe, tu e Clemente comparecerão ao Tribunal Celeste e receberão de Nosso
Senhor Jesus Cristo o justo julgamento!

A maldição foi forte, dando origem à lenda dos "reis


malditos". Gravura de autor anônimo (séc. XIX)

Em 20 de abril o Papa Clemente V morre em meio a uma repugnante crise de vômitos


e em 29 de novembro o rei Felipe o segue, após ficar completamente paralisado por
uma queda de cavalo. No ano anterior, poucos meses antes da execução, o jurista
Guilherme de Nogaret fora encontrado em sua mesa de trabalho com a cabeça caída
sobre os autos que examinava e os olhos esbugalhados, vítima de fulminante
apoplexia. Como Jacques de Molay profetizara do alto do patíbulo, os seus três
principais algozes estavam mortos antes que o fatídico ano de 1314 chegasse ao fim!
A execução de Jacques de Molay e Godofredo de Chernay tornou-se
célebre. Gravura de autor anônimo (séc. XIX)

Coincidência ou não, a morte dos amaldiçoados obedece rigorosamente à hierarquia,


pois primeiro morre o Papa, depois morre o Rei, e finalmente morrem os seus
descendentes, pois Felipe é sucedido em perfeita ordem de idade pelos seus três
filhos que em dez anos morrem um atrás do outro após curtos reinados. Para
completar, eles não deixam herdeiros e a Dinastia Capeto se extingue após ter
governado a França por mais de trezentos anos. Tão grande coincidência dá origem
à famosa lenda dos "Reis Malditos"porque para os supersticiosos a maldição de
Jacques de Molay foi daquelas tão fortes que atingem tanto o amaldiçoado quanto
à sua família.
Em novembro de 1314 Felipe o Belo morre devido à uma queda de cavalo. Iluminura medieval

Outra lenda diz que quando o dia 13 de outubro coincide com uma sexta-feira e há
lua cheia, aparece nas ruínas dos antigos castelos templários o fantasma de cavaleiro
armado dos pés à cabeça portando o manto branco e o escudo com a cruz. Olhando
em volta ele grita: Quem defende o Santo Sepulcro de Nosso Senhor Jesus Cristo?

E o eco responde: Ninguém... A Sagrada Ordem do Templo está morta!

Post nº 07
A REAÇÃO DE PORTUGAL AO
GOLPE MILITAR EM FRANÇA C
ONTRA OS
CAVALEIROS TEMPLÁRIOS

Os Cavaleiros Templários foram fundamentais para a expulsão dos mouros de Portugal e todas as
famílias
nobres tinham membros na Ordem. Por isso o rei Diniz e o povo português ficaram do seu lado
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A notícia do arrasador golpe na França contra os Cavaleiros Templários deixa a


Europa estupefata! Nos outros países nobreza, clero e povo ficam tão espantados
quanto seus iguais franceses, mas seus soberanos, que devem grandes favores aos
legendários Cavaleiros, também ficam temerosos do poder, audácia e implacável
eficiência de Felipe o Belo. Ademais, a França é o país mais extenso, populoso, rico e
poderoso do continente, e concluem que é melhor não desafiar o seu rei, até porque
existe na sociedade forte antipatia aos Templários, pois o povo, embora surpreso,
aplaude o golpe.

Aos humildes nada é mais prazeroso do que a escandalosa queda e desgraça dos
poderosos! Por isso os reis europeus limitam-se a pedir a Felipe tímidas explicações
e ele responde mentindo, dizendo que tem o apoio do Papa e lhes mandando a lista
das atrozes acusações forjadas contra os cavaleiros. Na verdade, o Papa está tão
perplexo quanto os demais e permanece calado tentando negociar nos bastidores,
mas isto é visto como consentimento e os príncipes concluem que o melhor é seguir
o colega francês, perseguindo a Ordem e tomando-lhe os bens. Como urubus,
lançam-se à carniça e com documentos falsos alegam serem seus “credores”, pois
nela “depositaram grandesquantias”!

Além de culto e valente, Diniz é honesto e recusa-se a participar da


roubalheira dos demais monarcas europeus

Porém enquanto a Ordem existir os seus bens são inalienáveis. Caso seja extinta,
serão incorporados a uma outra escolhida pelo Papa, mas no interregno ficarão sob
a guarda das autoridades eclesiásticas. Os reis contornam a árdua questão jurídica
através dos seus bispos, que embora nomeados pelo Papa são indicados por eles.
Assim, fazem altos prelados de sua confiança “fiéis depositários” do acervo e
apoderam-se dele. É importante realçar que embora o povo seja fanaticamente
religioso a Igreja Católica, como instituição terrena, passa por enorme crise moral e
política, estando o Sumo Pontífice refugiado em um castelo na cidade de Avignon
no sul da França devido aos cismas e revoltas que sacodem Roma e a Itália. Assim,
embora conserve sua enorme autoridade religiosa sobre massas ignorantes e
fanáticas, o Papa carece da boa vontade do poderoso rei francês para manter sua
autoridade política e debelar as rebeliões que ameaçam desembocar em avassalador
movimento de Reforma Religiosa 200 anos antes que ele realmente ocorra, como de
fato virá a ocorrer no século XVI. O resultado é que o Papa pouco ou nada pode fazer
pelos seus fiéis cavaleiros, pois além de estar politicamente fraco Felipe o chantageia
ameaçando revelar ao público segredos que possui sobre fatos gravíssimos que
acabariam por desmoralizar a Igreja completamente.

Não sabendo ainda que a chantagem inativara o Papa, Diniz manda-lhe


embaixadores para aconselha-lo a resistir ao rei Felipe
No resto da Europa os Templários, sabedores da catástrofe francesa, contra-atacam
como podem. Ensarilham armas e entram em estado de alerta máximo,
atemorizando príncipes e bispos que não se atrevem a hostiliza-los, mas também não
se colocam ao seu lado e preferem esperar que as coisas fiquem mais claras. Em
alguns principados alemães senhores mais afoitos lançam-se sobre os cavaleiros, mas
são derrotados e é a vez deles entrincheirarem-se amedrontados em seus castelos.
Porém o tempo está contra os Templários e à medida que passa e a voz do Papa não
se ergue em sua defesa acreditam que o Sumo Pontífice está contra eles e fogem ou
ingressam na Ordem dos Cavaleiros Teutônicos. Processos, execuções e fugas
ocorrem em toda a Europa, porém nada igual ao que acontece na França. Na maioria
dos casos os cavaleiros simplesmente somem, fugindo para lugares distantes ou
ingressando em outras Ordens que se atrevem a correr o risco de aceitá-los.

Castelo de Tomar, sede da Ordem dos Cavaleiros Templários em Portugal. Diniz muda-lhe o nome
para "Ordem dos Cavaleiros de Cristo" e tudo continua na mesma

Todavia, no cruel cenário de covardia, desonestidade e cupidez que grassa em toda a


Europa, uma voz discordante se ergue em defesa dos perseguidos cavaleiros: a do
popular rei Diniz de Portugal, grande administrador, valente guerreiro, brilhante
intelectual e celebrado poeta. Apesar de reinar sobre um pequeno país, Diniz é o mais
culto e digno soberano europeu. Estudioso e educado por doutores da Universidade
de Paris, além de culto ele é também guerreiro e poeta, o que lhe vale a alcunha de
"O Trovador".Criou escolas e incentiva a instrução, o comércio, a indústria e a
agricultura, o que lhe dá também o apelido de "O Lavrador". Pouco tempo depois do
traiçoeiro golpe militar ele funda a Universidade de Coimbra, que logo se tornará
uma das mais afamadas da Europa.

Os cavaleiros templários tiveram grande atuação na Península Ibérica e foram essenciais para a
reconquista de Lisboa aos muçulmanos. Quadro de Alfredo Roque Gameiro (1917)

Portugal é o pais europeu onde proporcionalmente ao seu tamanho e população


existem mais Cavaleiros e Castelos Templários, ao todo cerca de mil cavaleiros e
trinta castelos. Na Inglaterra e Escócia, por exemplo, não existe nenhum castelo e o
número de Cavaleiros nos dois países não chega a cem. Por outro lado, a unificação
de Portugal, decorrente da expulsão dos muçulmanos para a qual os Templários
muito contribuíram, é recente e, ao contrário do resto da Europa, eles gozam de
grande prestígio entre o povo. Quase todas as famílias nobres têm pelo menos um
membro na Ordem e o culto rei Diniz lhe tem respeito e gratidão, não só pela valente
ajuda militar como pelo valioso auxílio à sua grande obra administrativa. Por isso,
indignado com o que se passa na França, manda enérgico protesto ao Papa e vitupera
a infame atitude de Felipe.

Passando das palavras aos atos, oferece integral proteção à Ordem. Em Portugal ela
continuará atuando e todos os cavaleiros fugitivos serão bem recebidos! Centenas
deles chegam de toda a Europa trazendo apenas a roupa do corpo, mas trazendo
também os grandes conhecimentos que possuem, não só das artes marciais, mas
também das artes do comércio e da navegação.
Em Portugal existem dezenas de castelos e ruínas de castelos templários. O castelo do Almourol em
ilha do rio Tejo é um dos mais belos e importantes

Oito navios templários que fogem de um porto francês atracam no pequeno porto de
Lisboa. Logo chegam mais navios e com eles experientes tripulações, mapas secretos,
valiosos instrumentos náuticos, livros contendo elaboradas técnicas contábeis,
preciosas informações geográficas e astronômicas, e listas de importantes contatos
comerciais no Mar Mediterrâneo, Mar Negro, Mar do Norte e Mar Báltico.
Maior tesouro que os Templários levam para Portugal são seus navios e
seus conhecimentos náuticos.
No ano da sua chegada Diniz funda a Universidade de Coimbra e a marinha portuguesa

Não se sabe se com os navios também chegou a Portugal o lendário Tesouro dos
Cavaleiros Templários, mas é certo que com eles chegou um outro valiosíssimo: o
tesouro do conhecimento comercial e naval! Graças ao rei Diniz e aos Cavaleiros da
Ordem do Templo, Portugal vai entrar no rol das grandes potências europeias e isto
terá relevante importância no mundo muitos anos depois, inclusive no Brasil. Mas
antes disso teremos de nos debruçar sobre outras questões do rumoroso caso e o
longo e sinistro processo judicial que se desenrola na França contra a legendária
Ordem guerr

Post nº 06
O GOLPE MILITAR QUE DESTR
UIU A ORDEM DOS CAVALEIR
OS TEMPLÁRIOS

Rei Felipe IV de França apelidado "O Belo". Ele destruirá a Ordem dos Cavaleiros Templários
com um golpe militar fulminante. Tela de autor anônimo do século XIX
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Na manhã da quinta-feira 12 de outubro de 1307 realiza-se em Paris o solene funeral


de Catarina de Courtenay, neta do imperador de Constantinopla e esposa do
nobilíssimo Carlos de Valois. O rei Felipe o Belo e toda a alta nobreza estão presentes,
incluindo o Grão-Mestre Templário Jacques de Molay, ao qual cabe a subida honra
de segurar uma das pontas da mortalha. O poderosíssimo Grão Mestre ainda não
sabe, mas ele está vivendo o seu último dia de glória e liberdade: no dia seguinte
estará maltrapilho em um calabouço imundo e daí a 6 anos e 5 meses morrerá na
fogueira depois de sofrer as mais ultrajantes torturas e humilhações. Tudo que
restará dos seus temidos Cavaleiros Templários serão superstições e lendas que
sobreviverão ao peso dos séculos.
Notre Dame de Paris onde Jacques de Molay aparecerá livre e poderoso em público pela última
vez. No
dia seguinte ele e seus cavaleiros estarão acorrentados em calabouços imundos.

Porém nesta manhã, onde luto é apenas pretexto para exibição de poder e vaidade,
nada nos rostos dos dois homens denota a batalha diplomática secreta que travam
junto ao papado em torno da poderosa e riquíssima Ordem dos Cavaleiros do Templo
de Jerusalém, pois somente o Sumo Pontífice tem jurisdição sobre ela. Jacques de
Molay está tranqüilo e confiante no apoio do Papa, que o mantém a par das manobras
diplomáticas de Felipe, mas ignora totalmente sua secreta preparação para uma
eventual solução militar caso a diplomacia não lhe permita alcançar os seus perversos
objetivos.

As denúncias contra os Templários colecionadas por Felipe se acumulam há meses e


em agosto as partes envolvidas concordam que seja instaurado inquérito real-
eclesiástico, conduzido por comissão mista de juízes indicados pelo Rei e pelo Papa,
para apurá-las e por um ponto final na questão, fazendo cessar de vez os falatórios.
O início das audiências é marcado para o dia 20 de outubro e tudo parece seguir os
devido trâmites legais.
Castelo e sede dos Templários em Paris, demolido quinhentos anos mais
tarde por Napoleão Bonaparte. Tela de autor anônimo (1795)

O Rei parece conformado, pois há semanas não toca no assunto, mas é tudo um
disfarce, pois Felipe não é homem de aturar desafios à sua autoridade nem deixar
que tecnicalidades legais se interponham entre ele e os seus objetivos. Cansado das
delongas papais, há um mês reuniu em sigilo o seu conselho privado e decidiu pela
radical supressão da Ordem, lavrando-se o rol de terríveis acusações e o mandado de
prisão dos seus membros. Ele sabe que somente agindo disfarçado nas trevas poderá
apanhar de surpresa os aguerridos e experientes Cavaleiros com chances de vitória,
por isso todo o seu sinistro plano é mantido em rigoroso segredo e medidas
preliminares são tomadas. O Capelão da Corte, seu servo obediente, é o Grande
Inquisidor da França e o seu aval é obtido sem dificuldades. O exército fica de
prontidão nos quartéis, restaurando a disciplina e treinando para enfrentar “futuros
inimigos externos”. Peça chave da conspiração oficial, o exército é posto de prontidão
e os comandantes nada dirão aos soldados, mas devem ficar no aguardo de
importantes ordens reais cujo teor eles ignoram e que podem chegar a qualquer
momento.

Sabendo que os cavaleiros vão estar ocupados reunindo documentos, procurando


testemunhas e planejando depoimentos nos dias que antecederão à abertura do
Inquérito, ele marca o dia do golpe para uma semana antes do seu início: 13 de
outubro! Nem uma palavra vaza sobre os Templários, homens do Papa e amigos do
Rei.

Finalmente chega a hora. Enquanto ocorrem as suntuosas exéquias de Catarina de


Courtenay em Paris, velozes correios militares cruzam a França com mensagens
urgentes aos comandantes das guarnições do exército. As ordens estão lacradas e só
serão abertas à zero hora da sexta-feira 13 de outubro. Após romperem o lacre e
tomarem conhecimento das determinações reais, deverão executar imediatamente
as suas detalhadas instruções.

Jacques de Molay, grão-mestre da Ordem dos Cavaleiros Templários.


Obra de autor anônimo. Bibliothéque Nationale de France

Ao primeiro cantar do galo os comandantes dirigem-se com pequena escolta às


fortalezas templárias, chamadas comendas, dizendo trazerem notícias urgentes.
Abertos os portões, tropas ocultamente posicionadas penetram e os monges
guerreiros são presos ainda em trajes de dormir. Com calma, sem erros ou
precipitações, as ordens são executadas na mesma hora e com a mesma eficiência em
todo o país, prendendo Cavaleiros aterrorizados pelas espantosas acusações que
ouvem como se fosse um pesadelo. Alguns fogem, outros se suicidam. Em Arras,
cavaleiros são sumariamente degolados.

Em toda a França é uma madrugada de medo e horror!

Em Paris, as operações são dirigidas pelo Ministro da Justiça Guilherme de Nogaret,


que pessoalmente dá voz de prisão ao Grão-Mestre Jacques de Molay e a cento e
quarenta dos seus cavaleiros, levados acorrentados aos imundos calabouços sem que
sequer lhes permitam mudar de roupa. Muitos de lá somente sairão para as
fogueiras.
Iluminura medieval mostrando os Templários sendo levados pelos guardas ao calabouço.
Note-se
que estão descalços e vestindo apenas o hábito com que foram presos dormindo

Quando o dia amanhece as fortalezas templárias estão em poder das tropas reais, os
Cavaleiros estão presos ou mortos e a população está atônita. O segredo da
assombrosa operação militar foi mantido e Felipe o Belo triunfa de ponta a ponta,
criando no século XIV uma técnica de Golpe de Estado que no século XX vai ser
estudada e aplicada por todos que almejam conquistar ou manter o poder por meios
violentos, livrando-se de adversários poderosos com um Golpe Militar devastador
e fulminante. Se do ponto de vista administrativo e ético ele se mostrou e se mostrará
cruel e corrupto, de agora em diante ele também se mostrará competente e
implacável líder militar e político, com toda a frieza e cinismo que isto implica.

O ministro Guilherme de Nogaret conduz o golpe e prende


Jacques de Molay. Autor anônimo (séc. XVIII)

O vitorioso rei instala-se no Templo, manda abrir os cofres e livros da Ordem e


apodera-se das suas riquezas, prometendo divulgar o valor arrecadado logo que o
inventário estiver completo, promessa que é logo esquecida. Ninguém jamais saberá
o montante do Tesouro apreendido e nem mesmo se houve algum, pois surgirão
fortes suspeitas de que Felipe nada encontrou. Os comentários serão de que os
cavaleiros o teriam levado para local secreto face ao tenso relacionamento com a
coroa nos meses anteriores ao golpe e se negavam agora a revelá-lo ao traiçoeiro
monarca, mesmo sob ultrajantes torturas.

O imenso tesouro desaparecido, posto fora do alcance das mãos ávidas do ganancioso
rei, será apenas uma das questões discutidas nos anos seguintes. Por enquanto
o longo e tenebroso processo judicial dos Cavaleiros Templários e a secular polêmica
histórica sobre os mistérios que os cercam estão somente começando.

O seu desfecho será sinistro !

Post nº 05

APOGEU E DECADÊNCIA DOS


CAVALEIROS TEMPLÁRIOS

Nos séculos XII e XIII várias Ordens religiosas-militares aparecem na Europa em razão
das Cruzadas, mas nenhuma é tão rica e poderosa quanto a Ordem dos Cavaleiros Templários
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Por volta de 1200 a Ordem dos Cavaleiros Templários está no auge: é a mais rica e
poderosa da Europa, poucos reinos da época têm o seu mesmo poder econômico,
político e militar, e o seu Grão-Mestre fala de igual para igual com príncipes, reis e
imperadores. Acima dele e dos seus cavaleiros estão somente Deus e o Papa!

O seu poder militar na Europa é tão grande quanto na Ásia e se faz sentir de forma
marcante na Península Ibérica, onde ela desempenha papel tão importante quanto
na Palestina, pois é essencial na reconquista de Lisboa em 1147 e na posterior
expulsão dos muçulmanos do território português, permitindo a unificação do país
tal como o conhecemos hoje. Isto talvez explique porque Portugal é o país europeu
com maior número de castelos templários proporcionalmente à sua população.
Os cavaleiros templários tiveram forte participação na reconquista de Lisboa pelo rei Afonso
Henriques. Quadro de Joaquim Rodrigues Braga (1840)

Porém menos de um século depois o sólido edifício começa a apresentar rachaduras:


os guerreiros cristãos saem derrotados da Palestina, os muçulmanos são expulsos
definitivamente de Portugal e os príncipes ibéricos fazem uma trégua com o reino
islâmico da Andaluzia, o mais próspero e civilizado da Espanha. O fervor cruzado
esmaece e os cavaleiros dormitam ociosos em seus castelos, pois os veteranos com
experiência militar estão velhos ou mortos e os jovens que agora se alistam o fazem
não por fé, glória e aventura, mas por vaidade, privilégio e conforto. A rígida
moralidade, férrea disciplina e duro treinamento são relaxados, permitindo que
oportunistas ingressem na Ordem e gozem das suas vantagens sem sequer possuírem
as elementares virtudes da valentia e da decência. À medida que desce o valor
guerreiro e moral dos cavaleiros, sobe o seu orgulho e arrogância, criando um clima
de antipatia que faz surgirem ditados populares do tipo, come igual a um templário,
bebe mais que um templário, fornica como um templário, e outros igualmente
depreciativos.
O estado-maior da Ordem tem voz ativa nos mais altos assuntos da Europa, mas isto lhe traz a
antipatia
dos reis e a inveja dos bispos. Cena do filme "Arn o Cavaleiro Templário"

A situação piora com a mudança da sede da Ordem para a capital francesa, onde, não
tendo muçulmanos com que se preocupar, os cavaleiros passam a tratar os locais
como seus inferiores e a imiscuírem-se nos seus negócios como se fossem um poder
paralelo ao poder real e eclesiástico. Exceto na península ibérica, onde existe um
poderoso reino muçulmano com o qual os cristãos estão sempre em luta e têm muito
com que se ocupar, no restante da Europa os templários dedicam-se aos negócios
econômicos como se fossem uma empresa comercial e não uma guarda de elite
destinada à proteção dos lugares santos e à expansão da fé católica fora do
Continente. Seu grande poder econômico logo é acompanhado de grande poder
político dentro da própria Europa, e os seus rivais passam a ser cristãos ao invés de
muçulmanos. Príncipes e bispos, embora economicamente se beneficiem de
empréstimos e doações dos cavaleiros, ficam cada vez mais ressentidos com o
enorme poder que eles exercem dentro de suas próprias jurisdições, muitas vezes
suplantando ou simplesmente ignorando a sua autoridade.

Em todos os países da Europa Ocidental a Ordem torna-se um Estado dentro do


Estado,com a agravante de ser um Estado multinacional a serviço do Papa dentro
de suas fronteiras sem qualquer vínculo de subordinação às suas Coroas. Ocorrendo
isto no momento em que a Revolução Comercial impele os países europeus a se
estruturarem em grandes Estados Nacionais, para o que é essencial a instituição
do Rei Absoluto, a Ordem Templária surge como enorme obstáculo aos novos
tempos. Isto não passa desapercebido a monarcas europeus mais astutos e
clarividentes, como é o caso de Eduardo o Caolho de Inglaterra e Felipe o Belo de
França.

Felipe é enérgico e unifica quase todo o reino. Eduardo I da Inglaterra lhe presta vassalagem
pelos poucos feudos que ainda tem na França. Iluminura medieval (séc. XIV)

Embora mau administrador, Felipe é implacável e reconquista quase todos os


territórios que durante séculos tinham estado em mãos de reis estrangeiros,
sobretudo da Inglaterra, por isso não admite oposições nem arranhões na autoridade
real, o que lhe vale receber do povo o apelido de "O Rei de Ferro". O próprio rei inglês
Eduardo I lhe presta vassalagem por alguns principados que ainda tem na França,
mas sabe que a qualquer momento pode perdê-los se Felipe achar conveniente
extinguir a relação feudal sob pretextos que venha a inventar. Em
consequência, mantém com o rei francês as melhores relações possíveis e concorda
que os Templários são realmente um grande incômodo para monarcas que, como
eles, aspiram governar plenamente os seus reinos sem ingerências de qualquer
espécie.

Mas ao contrário de Eduardo, em cujo país a Ordem tem presença superficial e


não lhe causa maiores incômodos, pois não possui castelos-fortaleza nas ilhas
britânicas, para Felipe o problema é gravíssimo, pois é na França que a Ordem tem
a sua sede e a sua mais ostensiva presença, com dezenas de castelos-fortaleza e
grande contingente de cavaleiros. Diferente do que ocorre na Inglaterra, na França a
Coroa depende mais da Ordem do que a Ordem da Coroa, coisa que para um
monarca aspirante ao absolutismo é intolerável.

Seja por esta ou por outra razão, príncipes e grandes mercadores interessados na
solidificação do Poder Real começam a murmurar contra o enorme poder
da Ordem e o descontentamento se espalha pela sociedade, gerando um ambiente de
geral hostilidade aos Templários. Com a hostilidade surgem histórias escandalosas
sobre as suas atividades públicas e privadas, muitas delas mentirosas, mas algumas
respaldadas aos olhos do público pelo comportamento descuidado, arrogante e
impróprio assumido por muitos cavaleiros no meio da supersticiosa e
fanática sociedade onde vivem.

Passando a viver em contato com as populações locais, os templários revelam-se brutais, arrogantes
e pouco virtuosos, tornando-se odiados. Cena do filme "Arn o Cavaleiro Templário"

Como em todo agrupamento humano, é provável que entre eles sempre tenha havido
cavaleiros inclinados aos pecados da gula, da intemperança e da luxúria, mas a sua
fervorosa religiosidade certamente os fazia julgá-las tentações do diabo e as
sufocavam sob grossas camadas de fanatismo e bravura. Porém agora fé e valentia
não são mais essenciais e as suas perversas inclinações se tornam visíveis, ainda que
disfarçadas pela hipocrisia. Embora sejam exceções, sua má conduta danifica a
reputação de todos, tal como a maçã podre contamina as saudáveis dentro do
cesto. Todavia isso em nada diminui o poder econômico e político da Ordem: reis,
príncipes e ricos mercadores lhe devem altas somas e dela dependem para suas
despesas e grandes transações; por isso lhe são sabujamente submissos.

Entre os que mais devem favores à Ordem está o rei Felipe o Belo, que a faz seu
banqueiro e depositária do Tesouro Real. Quando por mais de uma vez os seus
desmandos levam a França à beira do desastre, ele é salvo pelo dinheiro dos
Templários. Sempre carente de recursos, ele confisca os bens dos judeus e depois
manda diminuir o percentual de prata nas moedas cunhadas pelo Erário Real, o que
faz o povo lhe dar o apelido de "O Rei Falsário". Em 1306 ocorre um levante popular
em Paris contra o seu governo incompetente, e as tropas reais, que não recebem seus
soldos há meses, ficam inativas nos quartéis enquanto ele refugia-se no Templo,
nome que tinha a sede da Ordem em Paris e se tornara seu sinônimo. Felipe fica sob
a proteção dos Cavaleiros até a calma ser restaurada após árduas negociações do
Grão Mestre Jacques de Molay com os amotinados, mas durante sua hospedagem
forçada entre os Templários ele vê os seus enormes tesouros e toma ciência do seu
vasto patrimônio comercial e imobiliário espalhado por toda a Europa, o que lhe
aumenta ainda mais a cobiça e faz o despeito sobrepor-se à gratidão que deveria ter
aos Cavaleiros por o terem salvo da fúria popular. Ardilosamente, contrai novo
grande empréstimo com a Ordem, põe em dia o pagamento das tropas e dos
servidores civis, lhes dá um substancial aumento e lhes ganha o apoio e a gratidão.
A Ordem dos Templários era riquíssima, possuindo feudos e castelos em toda a Europa,
sobretudo na França e na Península Ibérica

Felipe é um patife astuto que percebe estar o Templo deixando de ser uma sociedade
de monges guerreiros para se tornar uma sociedade de mercadores banqueiros, a
maior e mais rica que já se viu e cujo poder político é enorme. Mas ele vê também
que, em um mundo onde a espada é a lei, o poder econômico e político dissociado do
poder militar é um convite certo ao desastre. Depois de várias décadas sem combater,
o poder militar dos Templários é só uma lembrança de um passado distante.
Corretamente, ele avalia que a Ordem é um gigante de pés de barro: um golpe
certeiro a jogará por terra! Ademais, ela tem a antipatia do alto clero, muito
incomodado por sua independência da autoridade dos bispos e pelo prestigioso
diálogo direto que tem com o Papa e o Colégio de Cardeais. Muitos bispos não se
conformam com o fato de ser o comendador diocesano da Ordem muito mais rico e
poderoso do que ele dentro da sua própria Diocese. Também nobres e comerciantes,
que têm os seus débitos judicialmente executados ou em vias de execução, gostariam
de se ver livres de sua implacável credora e assim salvarem suas propriedades.

Poderosas muralhas do castelo templário de Tomar, sede da Ordem em Portugal que abrigará
cavaleiros fugitivos vindos de toda a Europa após a derrota na França

Já sabendo que o Templo é uma mina de ouro e tem muitos inimigos, Felipe tenta
tornar-se seu membro e apoderar-se dele, mas o Grão-Mestre Jacques de Molay se
nega a admiti-lo sob o argumento de que não poderia se tornar monge um homem
casado e rei; para tanto teria que renunciar ao trono e à esposa. Felipe fica furioso e
começa a arquitetar a destruição da Ordem com o seu ministro Guilherme de
Nogaret, o qual, por razões pessoais idênticas a de muitos outros, também odeia os
Cavaleiros. Portanto, coleciona vasto rol de denúncias sobre o mau procedimento de
vários membros da Ordem e pleiteia secretamente junto ao Papa a sua dissolução
alegando não ser ela mais necessária porque o seu principal objetivo, a proteção dos
lugares santos na Palestina, desapareceu desde que ela de lá foi expulsa. Alega
também que a má reputação dos cavaleiros faz do Templo um ônus para a Igreja, mas
o Papa está ciente que o despeito e a cobiça são os verdadeiros motivos de Felipe e se
nega a atendê-lo. Muito pressionado, tenta negociar e previne Jacques de Molay dos
sinistros desígnios reais, dando início a um longo e incrível jogo de gato e rato que se
travará nos bastidores e terá um desfecho terrível.

O Grande Mestre Templário ainda não sabe, mas ele e a sagrada Ordem dos
Cavaleiros do Templo de Jerusalém já estão mortos!
Post nº 04

OS CAVALEIROS TEMPLÁRIOS
- UMA SAGA DE HEROÍSMO MI
LITAR E TRAGÉDIA POLÍTICA

A tomada de Jerusalém pelos Cruzados em 1099 levaria à criação da Ordem


dos Cavaleiros Templários para guardar e proteger os lugares santos
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Poucos assuntos têm sido tão explorados pelos modernos fabricantes de mitos
quanto a Ordem dos Cavaleiros do Templo de Jerusalém, extinta há setecentos anos
por um feroz processo ordenado pelo Rei de França e sancionado pelo Papa. Os seus
líderes morreram na fogueira por práticas diabólicas e as riquezas imobiliárias da
Ordem foram parar nas mãos do rei francês e dos reis europeus que o apoiaram.

Digo riquezas imobiliárias porque as riquezas monetárias (ouro, prata, jóias, pedras
preciosas e moedas de todos os tipos), cujo montante se sabia ser enorme, jamais
foram encontradas, nem na sede da Ordem em Paris nem nas suas fortalezas
espalhadas por toda a Europa. Quando as tropas reais as ocuparam e prenderam os
cavaleiros que lá estavam os tesouros tinham sumido!

O fragor do longo e escandaloso processo ressoa até hoje, e o mistério do Tesouro dos
Templários tem sido fonte para as estórias mais mirabolantes. Tudo quanto é de seita
obscura, real ou imaginária, tem sido relacionado à Ordem, a qual, segundo os
produtores de mistério, existe secretamente até hoje e os seus membros guardam
terríveis segredos que envolvem intrincadas tramas e conspirações.

As lutas entre cristãos e muçulmanos tumultuaram o Oriente Médio


durante dois séculos. Tela de Eugène Delacroix (séc. XIX)

Todos esses imaginosos enredos constituem ótimo divertimento, mas não têm nada
a ver com a verdade da história real. A Ordem dos Cavaleiros Templários nasceu em
1118 quando dois jovens cruzados franceses da alta nobreza, Hugo de Payen e
Godofredo de Saint-Omer, decidiram adotar a vida de monges sem abandonar o
mundo secular, continuando a guerrear os infiéis na Terra Santa e a proteger os
peregrinos que seguiam por suas perigosas estradas e desfiladeiros. O número de
monges-soldados aumentou e a sua bravura, fé e desprendimento logo espalharam a
sua fama por toda parte.
Em 1128 o Concílio de Troyes aprovou a Ordem dos
Templários. Gravura de autor anônimo (séc. XIX

O rei Balduíno II de Jerusalém lhes deu para alojamento um prédio anexo às ruínas
do Templo judeu, em cujo topo está a célebre mesquita Al-Aksa, e eles o
transformaram em grande fortaleza que se expandiu pelos subterrâneos do Templo,
criando a lenda de que os cavaleiros os escavavam em busca do Tesouro do rei
Salomão. Mais tarde a lenda foi acrescida do mito de que eles o teriam achado e por
isso teriam se tornado imensamente ricos. Por controlarem as ruínas do Templo e
nelas terem o seu quartel principal, eles passaram a ser chamados de Os Pobres
Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão, nome este que adotaram para a sua
Ordem quando alguns anos mais tarde ela veio a ser oficializada por bula papal que
lhe aprovou os estatutos.
O Templo de Jerusalém foi destruído pelos romanos no século I DC e os
cavaleiros ocuparam suas ruínas ganhando o nome de "Templários"

Uma ordem de monges que ao invés de viverem reclusos no mosteiro meditando e


rezando viviam de espada em punho matando nos campos de batalha era um
conceito estranho à longa tradição cristã e por isso houve muita resistência ao
reconhecimento da nova organização religiosa. Em 1127, Hugo de Payen e alguns
companheiros chegaram a Roma em busca da aprovação papal e o Santo Padre
nomeou o nobre clérigo Bernardo de Claraval, famoso por sua erudição e santidade,
para estudar o assunto. Ele aderiu com entusiasmo à iniciativa dos bravos cavaleiros
e reuniu brilhante Concílio na cidade francesa de Troyes que a debateu durante
semanas. Finalmente a Ordem foi estabelecida em 1128 e Bernardo se tornou seu pai
espiritual e maior propagandista, fazendo com que a sua fama corresse toda a
Europa. Reis e príncipes lhe doaram castelos e propriedades, homens ricos a
presentearam com fortunas em dinheiro e milhares de jovens nobres, fanaticamente
religiosos e sedentos de aventuras, nela ingressaram com fervor. Em pouco tempo
a Ordemdos Cavaleiros do Templo tornou-se a espinha dorsal do exército cruzado e
a mais poderosa e afamada de toda a cristandade.
A Ordem cresceu quando Bernardo de Claraval pregou
a II Cruzada. Tela de Émile Signol (séc. XIX)

A Ordem fortaleceu-se ainda mais quando em 1146 São Bernardo de Claraval pregou
por toda a Europa a II Cruzada e convocou os jovens nobres a juntarem-se aos
Templários. Ela novamente recebeu uma torrente de novos membros e tornou-se um
verdadeiro exército com milhares de homens treinados dia e noite para o combate.
Eram todos rapazes ricos dos mais diversos níveis da nobreza e alguns tinham status
de príncipes por pertecerem a casas reinantes, mas uma vez cavaleiros templários os
privilégios desapareciam e tudo era concentrado nos esforços para deter o avanço
islâmico que havia retomado várias cidades e agora ameaçava retomar Jerusalém.
Porém o mais significativo de tudo é que com os novos cavaleiros veio não só nova
onda de entusiasmo, mas também nova onda de doações que tornaram a Ordem
ainda mais rica do que já era.
Hugo de Payen criou a Ordem, mas quem lhe deu poder foi São
Bernardo. Quadro de Georg Andreas Wasshuber (séc. XVIII)

Ela agora possuía terras, castelos, fortalezas, exércitos, esquadras e lojas nos
principais portos da Europa e do Oriente Médio, o que a fez criar as cartas de crédito
para transferência de dinheiro: comprava-se uma carta na loja da Ordem em
Londres, que cobrava uma taxa pelo serviço, e se a sacava na loja de destino. Isto, que
hoje é trivial, era novidade no século XII e deu início à economia globalizada.

Durante sessenta anos os Cavaleiros Templários foram o braço armado e principal


sustentáculo do reino cristão da Palestina, mas no final do século XII o sultão
Saladino reconquistou Jerusalém e a Ordem viu-se obrigada a retirar-se,
abandonando sua sede nas ruínas do Templo. Todavia conservou o seu nome
tradicional e continuou lutando com denodo na esperança de retomar a cidade e
fazer as coisas voltarem ao que eram. Nos oitenta anos seguintes não parou de crescer
e de obter vitórias contra os muçulmanos tanto no Oriente como na Península
Ibérica, onde foi fundamental para a expulsão dos árabes de Portugal, mas não
conseguiu obter a vitória que realmente lhe importava: Jerusalém!

Na segunda metade do século XIII as cruzadas tiveram uma parada e o principal


objetivo da Ordem, que era a reconquista da guarda do Santo Sepulcro e dos lugares
santos, ficou cada vez mais distante. Para completar, os príncipes espanhóis fizeram
uma trégua com o Sultão de Granada, deixando os cavaleiros sem ter o que fazer e o
seu valoroso grão-mestre buscando uma nova razão de ser para a poderosa
organização que dirigia.

Sagração de Jacques de Molay, último grão-mestre da Ordem dos


Cavaleiros Templários. Quadro de Marius Granet (séc. XIX)

O seu último grão-mestre Jacques de Molay tentou organizar nova cruzada e chegou
a assolar o litoral da Palestina e do Egito com uma grande esquadra que montara com
os vastos recursos da Ordem, mas o empreendimento se mostrou irrealizável quando
o império mogol da Pérsia, seu provável aliado militar contra os sultanatos árabes do
Cairo e de Damasco, desistiu de uma guerra a Oeste e investiu sobre à Índia no Leste,
fazendo com que a chegada do século XIV encontrasse a Ordem quase que
militarmente inativa. Os tempos de ociosidade militar que se seguiram minaram
ainda mais a sua capacidade guerreira, mas não lhe diminuíu a arrogância nem o
hábito de ganhar dinheiro e amealhar riquezas, adquirido ao longo de cento e oitenta
anos de incrível sucesso político-militar e imensa prosperidade econômica.

Isto levaria à sua destruição.

Post nº 03

A CAVALARIA MEDIEVAL E A
LENDA
DO SANTO GRAAL

Cavaleiro Templário guardião do Santo Graal. Cena do filme "Indiana Jones e a Última Cruzada"
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Uma das estórias mais interessantes produzidas pelo chamado Ciclo de Lendas
Arturianas é a do Santo Graal. Segundo a Bíblia, José de Arimateia, um nobre judeu
membro do Sinédrio e com acesso a Pilatos, dele conseguiu autorização para sepultar
Jesus, de quem secretamente era seguidor, e o fez em uma gruta próxima ao local da
crucificação, fechando-a depois com uma grande pedra.

Aí terminam os relatos bíblicos e começam os relatos arturianos, que na Idade Média


produziram várias versões e na nossa época muitas outras ligadas à indústria do
entretenimento, como são os casos do livro O Código Da Vinci e do
filme Indiana Jones e aÚltima Cruzada.

Analisemos a questão com base nas escassas fontes que possuímos sobre o Rei Arthur
porque a estória do Santo Graal está intimamente ligada à sua. O poema Gododdin,
composto oralmente nos anos 500 e publicado em linguagem escrita nos anos 600,
é a fonte mais antiga conhecida sobre Arthur, mas ela não fala do Santo Graal. O
historiador Nennius, escrevendo século e meio depois a sua Historia Britonnum, se
refere longamente a Arthur, citando suas grandes vitórias contra os invasores
bárbaros, porém é omisso sobre o Graal. As menções ao cálice sagrado somente
surgem em poemas celtas produzidos em torno do ano 1000, dentre eles destacando-
se um dos poucos que chegaram até nós, intitulado Lives of Welsh Saints, escrito
originalmente em latim e no qual o Rei Arthur é convertido ao cristianismo por um
milagre.
A explosão artística da 1ª Renascença incorporou o maravilhoso à vida
das pessoas e as fez substituir as dúvidas pelas certezas

Dada a pobreza de versões consistentes sobre o assunto produzidas na primeira


metade da Idade Média, creio que as únicas versões que merecem atenção, ao menos
como referencial histórico, são as produzidas na sua segunda metade, especialmente
a partir do final do século XII, quando o assunto é abordado com vigor e criatividade
pelas penas dos poetas Gaimar, Estoire des Engles; Wace, Le Roman de
Brut; Beroul, Tristan; Marie de France, Lais; e sobretudo Chrétien de Troies, autor
de vários poemas em prosa e maior expoente do gênero literário a que se deu o nome
de Romance de Cavalaria e de Amor Cortês, o qual quatrocentos anos depois seria
genialmente satirizado por Miguel de Cervantes em seu famoso romance Dom
Quixote de La Mancha. Todavia, o fato de não termos fontes escritas claras sobre o
Santo Graal antes do século XII não significa que elas não existissem, pois calcula-se
que menos de um décimo do material literário produzido no Ocidente durante a
Idade Média chegou até nós. A quase totalidade da pequena fração do legado
intelectual greco-romano preservado após a queda do Império somente nos veio a
partir do mencionado século, trazido que foi ao Ocidente por cruzados, clérigos e
mercadores que voltavam do Oriente, pois a maior parte fora preservada lá por
sábios Ortodoxos e Muçulmanos. Basta lembrar que Aristóteles e Ptolomeu, cujas
filosofia e astronomia viriam a se tornar oficiais para a Igreja Católica, eram até então
desconhecidos no Ocidente.

O pensar do homem medieval era simples: se a maravilha de uma catedral


gótica é real, por que então o Santo Graal não seria?

Não é por acaso que a Primeira Renascença Europeia, com fundação de


universidades, construção de catedrais e surgimento de vigorosa literatura
romanesca e filosófica, se inicia no século XII. Creio assim que a lenda do Santo Graal
já existisse há séculos nos relatos orais guardados na memória do povo e tenha sido
aproveitada pelos poetas e escritores altamente intelectualizados da Primeira
Renascença, ansiosos por ganharem dinheiro, fama e prestígio com os escritos
produzidos para satisfazer o gosto por romance e aventura de um novo público
letrado enriquecido pelo saque do Oriente proporcionado pelas Cruzadas. Porém não
excluo a hipótese de que a lenda tenha sido forjada por fanáticos no final do século
XI para dar às massas mais uma motivação à Primeira Cruzada, além da pura e
simples expulsão dos muçulmanos de Jerusalém e a reconquista da guarda do Santo
Sepulcro.

A maestria da arte religiosa medieval da 1ª Renascença tornou real para as pessoas o que de
outro modo seria mistério ou pura fantasia

De qualquer forma, foi o ciclo literário medieval do Romance de Cavalaria e de


Amor Cortês que deu consistência e popularidade às lendas sobre o Rei Arthur, seus
heróicos cavaleiros e o místico Santo Graal, cujas versões podemos reduzir a três. A
primeira diz que José de Arimatéia guardou o cálice usado por Jesus na última ceia
e com ele colheu um pouco do seu sagrado sangue ao tirá-lo da cruz. Depois levou o
cálice para a Britannia e o escondeu em Glastonbury. A segunda tem base
semelhante, mas difere ao dizer que o cálice foi levado à Espanha por São Tiago e lá
conservado em um mosteiro, pois operava milagres, até que um mago pagão invejoso
o roubou e o levou para local secreto.O mesmo acontece com a terceira, diferindo das
outras ao afirmar que o cálice não saiu da Palestina e foi ocultado pelos próprios
discípulos de Jesus. Como todo mito sempre tem um fundo de verdade, não custa
analisar as três versões citadas, dada a importância literária e cinematográfica que a
lenda do Santo Graal assumiu na indústria do entretenimento do mundo moderno.
Exeter, com sua magnífica catedral gótica, fica no sudoeste da Inglaterra,
onde o Graal teria sido escondido e Arthur teria reinado

Penso que as duas primeiras versões não merecem credibilidade porque se o cálice
fosse levado para Glastonbury, situada no próprio reino de Arthur, não haveria razão
para os seus cavaleiros Percival, Galahad e Bors irem procurá-lo em lugares
distantes, a ponto dos dois primeiros desaparecerem na perigosa jornada e somente
Bors regressar. Por outro lado, os Atos dos Apóstolos, que relatam suas viagens para
converterem os pagãos, não falam em viagem de Tiago à Espanha.
O imaginário medieval sobre o Graal tem sido tema na atualidade de muitos livros e filmes

Na minha opinião a única versão que possui plausibilidade é a terceira, pois sendo
José de Arimatéia secretamente cristão, a ponto de opor-se ao Sinédrio na decisão de
condenar Jesus à morte, teria sido possível que obtivesse o cálice para tê-lo como
objeto de culto e em sua devoção o utilizasse para colher um pouco do sangue que
julgava sagrado. Dessa forma, o santo cálice continuaria na Palestina escondido em
algum mosteiro no deserto ou lugar secreto nas montanhas, como sugere o filme
"Indiana Jones e a Última Cruzada".
Ruínas do Templo de Jerusalém. Alguns dizem que os Cavaleiros Templários teriam escondido o
Graal
em seus subterrâneos antes da tomada da cidade pelo sultão Saladino no ano de 1187

Recentes escavações em Jerusalém e arredores mostram que existiam lugares


secretos de culto de seitas diversas nos primeiros tempos do cristianismo, os quais
foram abandonados pelos fiéis devido às perseguições e depois soterrados pelo
tempo. Assim, não é de se duvidar que a relíquia possa um dia ser encontrada em um
desses sítios arqueológicos. A versão de que o cálice jamais saiu da Palestina possui
valor histórico e prático porque motivou muitos cruzados, sobretudo os Cavaleiros
Templários, a perseverarem na terra santa e lutarem ainda com mais fé contra os que
consideravam inimigos de Cristo.
Os artistas pintam o Graal como um cálice de ouro ou prata, mas sendo
cálice de carpinteiro deve ter sido de madeira

Porém o maior argumento contra a existência do Graal é o fato de nenhum Doutor


da Igreja o mencionar em suas obras dos séculos IV, V e VI, quando se produziu a
melhor Teologia antes do século XIII. Também nenhum bom poeta do período o
menciona em seus poemas, fato no mínimo estranho, pois o fervor religioso no final
do Império Romano era enorme. A Imperatriz Helena em sua peregrinação a
Jerusalém ordenara a construção da Igreja do Santo Sepulcro e inaugurara a "Era
das Relíquias Sagradas", levando consigo para Constantinopla o que lhe garantiram
ser fragmento da Verdadeira Cruz, ossos dos Reis Magos, mortalha de Jesus,
vestido de Nossa Senhora, etc. Caso a estória do Santo Graal já existisse, a devota
imperatriz moveria montanhas para encontra-lo e por certo o teria encontrado, tal
como encontrou as outras sagradas relíquias.
Igreja do Santo Sepulcro construída em Jerusalém no século IV pela imperatriz Helena, esposa do
imperador Constâncio Cloro e mãe do Imperador Constantino, que legalizou o cristianismo

Pessoalmente, acho que o Santo Graal é apenas uma lenda criada por poetas
talentosos, com base em relatos orais memorizados e repetidos pelo povo numa
época em que a religião reinava suprema, lenda que em nossos dias é uma mina de
ouro para cineastas e escritores criativos, sobretudo os cultores dos gêneros "policial"
e "fantasia

Post nº 2

O REI ARTHUR REALMENTE EXIS


TIU ?
Seguindo a versão romântica do século XII, estátuas, quadros e filmes mostram
Arthur como guerreiro medieval e não como legionário romano
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As primeiras referências escritas que temos de Arthur estão em poemas populares


compostos a partir dos anos 500 no oeste da Inglaterra pelos britânicos nativos de raça
céltica que há muito tinham adotado o cristianismo. Eles resistiram aos invasoes pagãos
anglo-saxãos e conservaram o que podiam da religião cristã e da cultura romana,
mantendo também o culto aos heróis da resistência.

Nos anos 700 a conquista se completou e os anglo-saxãos se converteram ao cristianismo,


dando ensejo a que aparecesse uma “História dos Britânicos” escrita por alguém que se
autodenominou Nennius, provavelmente um sacerdote cristão a respeito de quem nada se
sabe. A obra cita muito Arthur e contém uma lista de doze batalhas vencidas por ele contra
os invasores pagãos, o que sugere ter o herói vivido nos anos 400, período das grandes
invasões bárbaras que destruíram o Império Romano do qual a Inglaterra era parte.
Nos séculos V e VI os anglo-saxãos pagãos empurraram os britons
cristãos para o Oeste. Muitos foram para França e Espanha

É razoável supor que Arthur era um alto oficial que ficara na Ilha sob as ordens de
Ambrosius Aurelianus, importante cidadão romano-britânico que parece ter governado a
Britannia nos anos 30-50 do século V, pois há parte de uma carta sua ao imperador datada
de 436. O bispo Gildas fala muito nele em sua obra De Excidio Britanniae (A Destruição
da Britannia) publicada em 540, e tudo indica que estava no controle da província quando
as legiões foram combater Átila na Gália em 451. Todavia Gildas não fala em Arthur, o
que é compreensível se nos anos 30-50 do século V, quando Ambrosius Aurelianus era
o último governador romano da Britannia, Arthur fosse apenas um seu subordinado.

Devemos notar que após a provável partida das legiões em 451 o contato entre a
Britannia e Roma cessou e os historiadores, todos eles do continente, não tiveram mais
notícias da ilha e nada escreveram sobre o período que vai dos anos 450 aos anos 520,
década em que Gildas provavelmente chegou de Roma e desembarcou na ilha. Embora
de origem britânica, é provável que Gildas tivesse saído do país ainda criança ou nascido
no continente, pois a atual região francesa da Bretanha era povoada na época por
britânicos fugitivos das invasões anglo-saxônicas. Tendo sido educado em Roma e lá
vivido até a maturidade, é possível que ele soubesse a história do seu país apenas pelos
historiadores continentais, e estes nada tinham escrito sobre a época posterior a
Ambrosius Aurelianus.

No século XIX o romantismo trouxe de volta o "Ciclo Arturiano" com o poema "Os
Idílios do Rei" de lord Tennyson, ilustrado por Gustave Doré

Sendo um scholar, Gildas certamente não deu importância aos poemas orais em língua
local, recitados ao redor das fogueiras nas noites frias ou nas festas populares. Isto talvez
explique a sua ignorância sobre Arthur, pois nos anos 500 já circulavam oralmente no
sudoeste da Britannia, terra do herói, muitos poemas sobre as lutas que os locais travavam
para manter os invasores afastados da sua região. Desses poemas o único que chegou até
nós foi o épico Gododdin, onde Arthur e outros herois são celebrados, mas ele só adquiriu
forma escrita por mão anônima nos anos 600, bem depois da morte de Gildas. Creio que
a oralidade da história britânica em poemas populares na sua época, cheios de fantasias
como é próprio do gênero, certamente motivou a sua ignorância sobre os fatos e
os homens que desde a morte de Ambrosius Aurelianus no século anterior sustentavam a
independência da região contra os bárbaros invasores pagãos.

No século XX a romantização de Arthur como herói medieval continuou


firme na mídia. Vemos aqui cena da peça musical "Camelot"

O século V, período em que Arthur teria vivido, é um dos mais obscuros da história
britânica, pois nem sequer se sabe ao certo o ano da partida das legiões. Historiadores
apontam diferentes datas, sendo 407 a mais comum, mas acho falso, pois é certo que em
436 ainda havia um governo romano na Britannia, como atesta carta de Ambrosius
Aurelianus ao imperador sobre a perigosa situação da província e pedindo autorização
para criar um exército provincial. O documento está incompleto e não é possível dizer o
cargo oficial do autor, mas é óbvio que só um alto dignitário poderia dirigir-se diretamente
ao imperador pedindo licença para levantar tropas na ilha a fim de enfrentar os bárbaros.
Isto seria próprio de um governador provincial, e se havia um na Britannia em 436 não
há como se admitir a partida das legiões antes dessa data. Penso que 451 é a data mais
provável, pois foi quando Átila invadiu a Gália e Aécio reuniu todas as tropas romanas
disponíveis para enfrentá-lo, derrotando-o na batalha de Chalôns, também chamada de
Batalha dos Campos Catalúnicos. Fazer as legiões atravessarem o Canal da Mancha para
enfrentar o rei huno na vizinha Gália seria a atitude lógica de um general em tal situação.

Historiadores continentais relatam que nos anos 460 a Gália sofreu novas invasões e um
general chamado Riotimus veio da Britannia com um exército para expulsar os invasores,
obtendo sucesso e voltando depois ao seu país. Hoje se sabe que Riotimus era a
latinização do título “Riothamos”, que em um dos antigos dialetos celtas significava
“Chefe Supremo”, e não um nome próprio. Como os poucos historiadores da época eram
de cultura romana, certamente ignoravam tal detalhe e escreveram o título com o qual as
pessoas designavam o líder como sendo o seu nome, confundindo o título com o homem,
tal como fazemos ao nos referir a um soberano apenas pelas palavras "rei" ou "rainha".

Nos anos 500 os anglo-saxões começaram a adotar os costumes romanos dos britons e
nos anos 700 se tornaram cristãos. Ilustração de Albert Kretschmer (1882)

Portanto, é crível que o nome celta do herói fosse Arthur, o rei britânico a quem Nennius
se refere. Era usual entre os romanos latinizar nomes nativos e Arthur aparece na obra
com o nome de Arturus, sendo que alguns escritos da época também o chamam Artorius.
A mistura de nomes, títulos e postos deve ter contribuído bastante para o mistério.

As destruições feitas pelos bárbaros nos anos finais do Império causaram a fuga de
populações inteiras e quase fez cessar a atividade cultural, sobretudo na Britannia, de
onde mais da metade da população do civilizado Leste fugiu para o noroeste da Gália,
criando a atual Bretangne francesa, e para o noroeste da Espanha, misturando-se com os
suevos da Galícia. Em consequência, a palavra escrita praticamente desapareceu da Ilha e
a sua história foi substituída pela tradição oral, dando origem aos mitos e lendas.

Por isso não é de admirar que importantes líderes da resistência, como Uther, Merlin,
Arthur, Kay, Percival, Tristan e outros, tenham se tornado lendários; mas certamente
Arthur foi o mais notável e sua lenda adquiriu contornos definitivos quando o bispo
Geoffrey of Monmouth publicou em 1135 sua História dos Reis da Britannia, desde
então a principal fonte de informações sobre o herói e aqueles que lhe eram próximos.

Filme recente com o ator Clive Owen retrata corretamente Arthur como oficial romano do século
V em
luta com os anglo-saxãos, mas erra ao dizer que ele era sármata e não britânico

Penso que o argumento mais forte para a real existência de Arthur é o fato de durante dois
séculos os anglo-saxãos não terem conseguido conquistar o País de Gales e a Península
de Devon, pois nestas regiões, assim com em outras partes do sudoeste da Britannia, são
raríssimos os vestígios da sua presença anteriores ao século VII. Isto significa que, não
obstante as suas incursões e depredações narradas por Gildas, os anglo-saxãos jamais
conseguiram nelas implantar o seu domínio enquanto não se converteram ao cristianismo
no final do século VII, misturando-se definitivamente com os britânicos e criando uma
nova nacionalidade coesa e forte. Se não o conseguiram, apesar de serem muito superiores
numérica e militarmente aos britânicos, foi porque se depararam com a efetiva e eficaz
resistência deles, coisa que somente poderia ocorrer no caso de estarem econômica, social
e politicamente muito organizados. Isto faz pressupor a existência de um reino britânico-
cristão bastante poderoso, requisito essencial para a existência de Arthur e seus cavaleiros
na corte do lendário Reino de Camelot.

As circunstâncias históricas mostram a perfeita possibilidade e até mesmo a necessidade


de que tal Reino existisse e tivesse notáveis líderes como Arthur e seus cavaleiros para
enfrentar a massiva invasão bárbara, pois só assim ter-se-ia uma explicação razoável para
o fracasso dos anglo-saxãos em conquistar nos anos seguintes a vasta região, uma das
mais férteis e belas da Inglaterra.

A tenaz resistência aos invasores anglo-saxãos no século V, aqui retratados no filme com Clive
Owen, deu
fama e glória a Arthur, fazendo-o rei dos britânicos e guerreiro legendário

É até possível pensar que a chegada de Gildas à Britannia, na segunda ou terceira


década do século VI, tenha coincidido com o período de caos que teria se seguido à morte
de Arthur no final do século V e que teria encorajado os invasores a redobrarem seus
esforços de conquista dada a ausência do seu valoroso adversário. Os 30 ou 40 anos de
caos entre a morte de Arthur e a chegada de Gildas teriam presenciado a destruição dos
mosteiros e bibliotecas contendo os registros do brilhante período do rei celta, fazendo
com que Gildas dele não tivesse tido conhecimento, levando-o a concentrar-se apenas na
devastação ocorrida depois do historicamente esquecido reinado de Arthur.

Ruínas da abadia de Glastonbury, onde a lenda diz que Arthur foi enterrado. Embora sua
construção
date do século IX, há sinais de que no local existira antes igreja dos tempos romanos

Mas os supersticiosos acreditam que o "espírito de Arthur" cuidou de preservar a sua


unicidade entre os reis britânicos impedindo que qualquer deles tivesse o seu nome, pois
embora vários herdeiros da coroa tenham sido batizados "Arthur", todos morreram antes
de poderem usá-la. Por via das dúvidas, desde a morte do último há alguns séculos,
nenhum crownprince inglês recebeu o nome do lendário rei celta!
Parece ter havido consenso na Inglaterra de que "Rei Arthur" só deve haver um,
reinando para sempre no mundo da fantasia. Gravura de Gustave Doré

A minha opinião é que Arthur existiu e teve importante papel na guerra de resistência aos
invasores anglo-saxãos no período inicial da invasão, mas a sua luta foi em vão e a
Britannia mergulhou na barbárie testemunhada por Gildas, nela permanecendo durante
os dois séculos seguintes, período conhecido como Alta Idade Média ou “Idade das
Trevas”, até que o rei Alfredo o Grande viesse de novo unificar o país e prepará-lo para
uma nova existência, onde o culto dos heróis desempenharia papel importante na
construção de uma identidade nacional legitimamente britânica.

Por sorte, a história desses heróis sobreviveu na cabeça das pessoas sob a forma de mitos
e lendas, como é próprio da tradição oral, e serviu tanto para forjar a nova nação como
para nos brindar com as belas estórias que têm encantado gerações através dos séculos.
Quem sou eu

Virgilio Campos
Procurador da Fazenda Nacional aposentado e antigo professor da Faculdade de
Direito do Recife (Universidade Federal de Pernambuco). Advogou muitos anos, foi
assessor de desembargador e Diretor Administrativo do Tribunal Regional Federal
da 5ª Região (Recife). Fez cursos de extensão na Harvard University e na University
of Illinois, ambas nos EUA, e no Northeast Surrey College of Technology no UK.
Escreveu dezenas de artigos e ensaios jurídicos, dentre eles destacando-se:
"Considerações Histórico-Críticas Sobre o Direito Comum Anglo-Americano", "A
Natureza do Devido Processo Legal", "Contrato de Trabalho do Diretor de
Empresas", "Tobias Barreto e a Revolução Jurídica Alemã", "Sá Pereira e o Seu
Tempo", etc. Escreveu também artigos sobre literatura, dentre estes destacando-se
"A Melancolia na Moderna Literatura Italiana" e "Em torno de O Mandarim de Eça
de Queiroz". Escreveu ainda dois romances históricos: "Memórias Íntimas de
Flavius Marcellus Aetius" e "O Senhor dos Dragões". Atualmente dedica-se a
estudos de História e mantém um blog sobre o assunto: "Virgilio Campos História
Antiga".
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