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Enquanto Átila assolava a Gália quase sem encontrar resistência, Aécio tentava coligar as potências
ocidentais para enfrentá-lo numa batalha decisiva (451 DC)
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Quando Átila arrasou Trier em maio, Aécio viu que o momento da verdade
se aproximava e raspou o fundo do tacho, chamando ao continente a última grande
legião ainda aquartelada na Britannia. Dessa forma, aumentou substancialmente o
seu poderio militar, mas deixou a ilha sem qualquer proteção. Ele estava tendo sérios
problemas para concluir as alianças que lhe permitiriam enfrentar Átila em uma
batalha decisiva, pois Teodorico, rei dos visigodos, não havia superado as
divergências que ambos tinham tido no passado, apesar das posteriores
demonstrações em contrário. Assim, Teodorico declarou que só combateria os hunos
se eles atacassem o seu reino no sudoeste da Gália.
O riquíssimo príncipe galo-romano Avitus era amigo pessoal de Aécio e Teodorico e fez este aderir à
aliança contra Átila. Mais tarde seria imperador e acabaria assassinado (457 DC)
Enquanto isso, Átila destruía a corajosa cidade de Metz após ela se recusar
a render-se para ser saqueada e ter suas mulheres violentadas em troca da vida da
população. A recusa da “generosa oferta” e a sua épica resistência provocou em Átila
tal acesso de fúria que ele ordenou não somente o saque da cidade e o estupro das
mulheres, mas também a sua destruição e o extermínio de todos os seus habitantes.
Em junho, após receber polpudo resgate para poupar Paris, Átila marchou
para o sul e cercou a estratégica cidade de Orleans nas margens do rio Loire. A cidade
resistiu bravamente sob o comando espiritual e político do valente bispo Aignan, que
na igreja, nas ruas e nas muralhas encorajava o povo a lutar contra os invasores
pagãos. A igreja onde o heróico bispo discursava eloquentemente aos fiéis ainda
existe e hoje é anexa a um seminário junto aos restos das antigas muralhas.
Meroveu, rei dos francos, era tradicional aliado de Aécio e esteve ao seu lado desde o início da
campanha. Auto relevo em bronze de Jean Dassier (1720)
No início de julho, Aécio concluiu os termos finais da coalizão e o seu
exército juntou-se ao exército visigodo de Teodorico e ao exército franco-burgundo
de Meroveu, assim como também aos muitos batalhões das tribos menores que
somente decidiram lutar ao seu lado depois da adesão de Teodorico à aliança. Tendo
agora um imenso exército e o apoio dos poderosos reis Teodorico e Meroveu, Aécio
marchou sobre Orleans, onde esperava encurralar Átila contra as altas muralhas da
grande cidade cercada que resistia bravamente ao seu assédio. Mas Átila era astuto e
não daria chance a Aécio, que conhecia desde menino e cujo valor militar respeitava:
somente lutaria no momento que desejasse e no campo que escolhesse! Por isso
levantou o cerco de Orleans e retirou-se para o leste.
Notas:
Informado de que o seu temido ex-aliado iria à Gália combatê-lo, Átila lhe
propôs secretamente dividirem o império: o rei huno ficaria com a Germânia, Gália,
Espanha e Britânia; o general romano ficaria com o que restasse: Itália, Sicília, Bálcãs
e Grécia. Mas Aécio recusou o astuto oferecimento porque sabia que tão logo Átila
eliminasse seus aliados germânicos e gauleses no oeste voltar-se-ia para o sul e
esmagá-lo-ia na Itália, onde estaria sozinho e sem os valiosos apoios com os quais
ainda contava no momento.
Post nº 17
Na qualidade de Regente e tendo Aécio como ministro, exceto por alguns intervalos,
Placídia governou o Império quatorze anos na menoridade do seu filho Valentiniano.
Quando este foi coroado em 440 (A maioria dos historiadores diz que foi em 437),
ela ficou mandando por trás do trono e Aécio continuou ministro. Em 450 ela morreu
e Valentiniano assumiu o poder pleno, mas manteve Aécio no cargo até assassiná-lo
em 454. Contado o tempo de jovem oficial, quando era um protegido do imperador-
adjunto Constâncio, podemos dizer que Aécio andou pelo palácio imperial durante
mais de trinta e cinco anos. Curiosamente, esta era a idade de Valentiniano na época
do assassinato!
Placídia, embora muito mais moça que o marido, era um pouco mais velha
que Aécio, mas a sua beleza e elegância fazia-os parecer terem a mesma idade. Não
se sabe o tipo de relação existente entre eles antes da morte de Constâncio, e nem
mesmo se existia alguma, mas quando o secretário João usurpou o trono, pondo de
lado a viúva Placídia e o pequeno Valentiniano, o jovem general Aécio FICOU
NEUTRO, embora alguns digam que apoiou João e só não combateu em seu favor
porque estava entre os hunos buscando formar um exército para apoiá-lo. Todavia
nem a lógica nem o desenrolar dos fatos apoiam a versão do seu "apoio" a João!
Quando João foi morto por seus próprios soldados e Placídia voltou, Aécio
finalmente veio com suas tropas e ocupou a capital, deixando a imperatriz isolada no
palácio com a sua guarda. A superioridade militar de Aécio era enorme e todos
esperavam que ele se proclamasse imperador, mas os dois tiveram uma longa
conversa a sós e Aécio informou seus partidários que estava tudo acertado: a
imperatriz continuaria no trono e ele seria governador da Gália e seu ministro!
Ambos trabalharam juntos durante anos e tiveram brigas homéricas que sempre
acabavam da mesma forma: Aécio se afastava, passado algum tempo voltava à frente
de um grande exército e Placídia ficava isolada no palácio. Depois de longas
conversas a sós ele dizia que o dissídio fora superado e as coisas voltavam a ser como
antes.
Aécio visto aqui na célebre ópera "Attila" de Giuseppe Verdi, foi o grande rival militar do famoso
Rei dos Hunos e o derrotou em 451 na Gália e em 452 na Itália
Aécio era de origem rica e aristocrática, pois seu pai, apesar de cita de
nascimento, era cidadão romano e um dos mais notáveis generais imperiais, tendo
sido governador da Ilíria, conde da África e comandante-em-chefe da cavalaria do
exército. Sua mãe pertencia à alta aristocracia romana de Milão, na época capital do
Império do Ocidente, sendo o seu avô materno importante ministro na corte
imperial. Mas ao contrário dos demais militares nobres, que adoravam sinecuras e
evitavam batalhas, Aécio estava sempre na linha de frente. Quando criança, vivera
entre os visigodos, cujo rei Alarico era seu padrinho, e já adolescente fora refém na
corte dos hunos. Isto o fez aprender-lhes o idioma e conhecer a fundo seus
armamentos e táticas militares, assim como fazer sólidas amizades. Bom diplomata
e poliglota, se tornou amigo do rei dos hunos Roua, do rei dos francos Clodion (era
padrinho do seu filho Meroveu), do rei dos burgundos Godofredo, do rei dos
visigodos Teodorico e de vários outros reis e príncipes de povos chamados “bárbaros”
pelos romanos, mas cujos idiomas e culturas Aécio conhecia e respeitava. Isto lhe deu
estatura de líder europeu, mas lhe causou sérios problemas na Itália. Sobretudo
porque não mostrava muita devoção religiosa. A aristocracia desconfiava da sua
íntima ligação com os bárbaros, o clero suspeitava da sua fé (seus aliados visigodos
eram heréticos arianos e os burgundos, francos e hunos eram pagãos) e o povo
suspeitava dele pelas duas coisas. Ademais, o seu valor militar, bravura pessoal e
índole explosiva criaram-lhe muitos inimigos que o chamavam de “caudilho
ambicioso e turbulento”. Este conceito era partilhado por quase todos, exceto pelo
exército, onde tinha grande apoio devido à lealdade dos seus soldados. Só depois que
eliminou os seus rivais Bonifácio e Félix, generais devotos amados do clero e da
aristocracia, é que ele solidificou-se no poder e Placídia parou de lhe criar problemas.
A partir de 433, governou como bem quis, mas sempre ao lado dela até a sua morte.
Depois disso, governou ao lado de Valentiniano até ser assassinado.
Placídia era uma raposa política e certamente via na má-fama de Aécio e na possível
substituição de Valentiniano por um filho dele no caso de um matrimônio, sérios
obstáculos para que ele acontecesse. Também o seu apego ao poder a impedia de
entregá-lo por inteiro ao general, pois sabia que se o fizesse ele não mais seria
manobrável e poderia pô-la de lado quando bem quisesse. Os favores dela à Igreja e
o seu empenho em construir mosteiros e templos fez o clero considerá-la uma
“santa”, e, como quase todos os historiadores da época eram clérigos, esforçaram-se
ao máximo para preservar a reputação da sua protetora. Sobretudo quando
esta poderia ser manchada por um suposto caso com o caudilho Aécio. O resultado
é que não há registros dos boatos, que certamente existiam, dado o empenho que
empregam na defesa da reputação da imperatriz. Se não existiam os boatos, então
por que o empenho em negá-los? É possível que o raciocínio dos clérigos fosse o de
que historiadores sérios não devem registrar boatos e maledicências. Por isso foi a
versão deles a que prevaleceu: Aécio e Placídia eram inimigos cordiais que
colaboravam por razões estritamente políticas!
Placídia era bonita e muito culta. Enviuvou pela 2ª vez aos 32 anos e é difícil acreditar
que tenha permanecido casta pelo resto da vida
Átila fora a grande ameaça durante o governo de Aécio. Tela de Eugene Delacroix (séc. XIX)
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A História lida com os fatos e as suas versões, e estas são de três tipos: a
versão oficial, a versão alternativa e a versão lógica. Costumamos lidar com as três,
mas devemos sempre dar preferência à versão lógica, sobretudo quando as outras
são insatisfatórias ou mesmo implausíveis.
Verifica-se, portanto, que tanto a versão oficial quanto suas alternativas não
se sustentam no que se refere aos motivos e por isso são IMPLAUSÍVEIS.
Os sólidos indícios de uma relação amorosa entre eles, assim como as razões
de ter sido a relação mantida oculta pelos dois e pelos devotos historiadores da época,
pois Placídia gozava de imenso prestígio religioso e era considerada quase uma
"santa" pela Igreja, são assuntos ainda carentes de investigações mais detalhadas
devido a pobreza historiográfica do século V.
Post n° 15
O ASSASSINATO DE AÉCIO
- ÚLTIMO
DOS GRANDES GENERAIS ROM
ANOS
Aécio protagonizado por Thomas Todd na ópera "Ezio" (nome italiano de Aécio) de Friedrich
Häendel
É bem verdade que enquanto Átila estava vivo ele era indispensável porque
era o único general romano capaz de lidar com o rei dos hunos, seu antigo aliado e
depois adversário. Afinal de contas, Aécio derrotara Átila duas vezes, tanto durante
a invasão da Gália em 451 como da Itália em 452. Ninguém na Europa seria capaz de
tal façanha, mas de acordo com a teoria uma vez morto Átila a ameaça desapareceria
e Aécio tornar-se-ia dispensável.
A morte de Aécio deixou Roma indefesa e Genserico um ano depois a invadiu e saqueou
Ele não atacara antes devido ao imenso respeito que tinha por Aécio, que o
derrotara em 443 quando tentara conquistar a Sicília. Mesmo assim havia fortes
rumores de que Genserico estava terminando seus preparativos e logo atacaria
novamente, pois em sua opinião o império ficara muito enfraquecido pelas invasões
dos hunos e não teria como resistir se fosse alvo de um novo ataque em massa.
Somente a forte presença de Aécio no comando do exército romano estaria
impedindo o rei vândalo de executar o seu projeto.
Aguardemos o futuro!
Post nº 14
No ano 64 DC Roma sofreu enorme incêndio que destruiu metade da cidade e matou milhares de
pessoas. O
povo acusou Nero e ele culpou os cristãos, mandando jogá-los às feras para apaziguar as massas
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Nero foi um dos piores e mais cruéis imperadores romanos e se dissermos que foi um
"monstro moral" não estaremos longe da verdade. Todavia, poucos foram tão
populares e tão amados pelo povo quanto ele, a ponto de não acreditar que tivesse
morrido e surgirem impostores dizendo-se Nero à frente de revoltas populares
buscando ter o trono de volta. Todos foram presos e executados, mas não foi excluído
o fato de que a versão oficial da morte do tirano era duvidosa e difícil de convencer a
quem estudasse o assunto com atenção, pois embora o suicídio fosse forma comum
de briosos líderes romanos escaparem do opróbrio, Nero não era nem brioso nem era
líder. Na verdade, era cafajeste da pior espécie que chegou ao poder com apenas
dezoito anos de idade graças aos sórdidos crimes e intrigas políticas de sua mãe, a
imperatriz Agripina, os quais incluiu o envenenamento do imperador Cláudio, seu
tio e marido.
Ela era a irmã mais nova de Calígula e cresceu vendo todos os tipos de crimes e
loucuras de que era capaz o seu monstruoso irmão, portanto não surpreende que,
com tão exímio professor, ela assimilasse grande parte de suas perversas lições.
Apesar de fria, cruel e assassina, Agripina era mãe extremosa. Além de fazer o filho
imperador, preterindo o jovem príncipe herdeiro Britanicus, seu primo e enteado,
deu a Nero os melhores mestres de Roma, o filósofo Sêneca e o erudito Bhurrus,
possibilitando-lhe ter excelente educação e adquirir boa cultura, sobressaindo-se em
artes e literatura para imensa satisfação dos sábios professores. Todavia, Agripina
era pouquíssimo rigorosa em questões de disciplina e mimava excessivamente o
filho, permitindo-lhe sempre satisfazer as vontades por mais incorretas e
inapropriadas que fossem. Isto agravou a licenciosidade e perversidade de Nero,
fazendo-a arrepender-se amargamente do erro de pô-lo no poder, pois ela logo seria
a mais notória vítima do celerado imperador.
O início do seu reinado no ano 54 DC foi auspicioso, pois não só era gentil com todos
como seguia à risca os conselhos dos seus ex-professores e agora sábios ministros
Sêneca e Burhus. Mas sua ambiciosa mãe queria ser a soberana de fato e
arrogantemente se intrometia nos negócios do Estado, contrariando as próprias
ordens do imperador e dos seus ministros, o que logo a tornou impopular e detestada
pelo filho que tudo devia a ela. Enquanto isso, a fama de Nero crescia como rapaz
culto, atencioso, moderado e governante conscencioso. Porém a arrogância de
Agripina não lhe dava sossego e ela chegou ao ponto de mandar cunhar moedas
tendo não somente a efígie do imperador mas também a sua, como se ambos fossem
co-governantes. Por fim Nero perdeu a paciência e, apoiado pelos ministros e pelo
povo, a exilou em luxuosa mansão fora da cidade, proibindo-a de voltar a Roma.
Nero envenena seu irmão Britanicus em um banquete e manda cremar o
cadáver sem demora. Ilustração de François Chauveau (séc. XVII)
A partir daí Nero desembestou e logo depois mandou matar a sua mãe Agripina a
golpes de espada. Querendo libertar-se de toda e qualquer tutela que pusesse freio
aos seus instintos perversos, livrou-se dos seus dois sábios ministros, mandando
envenenar Burhus e ordenando que o idoso Sêneca se "suicidasse". Nem mesmo o
jovem e brilhante poeta Lucano de apenas vinte e seis anos, maior poeta romano da
época, escapou à sua sanha assassina, alguns dizem que por pura inveja do seu
talento. Para tanto aproveitou a tola conspiração de alguns aristocratas idealistas, de
cujo círculo Lucano fazia parte. Eles logo foram denunciados por sórdidos ex-
escravos, que tinham feito da espionagem e da delação lucrativo meio de vida a
serviço do histriônico imperador, e o resultado é que tanto Sêneca, o maior filósofo,
como Lucano, o maior poeta da época, foram obrigados a cometer suicídio no altar
da monstruosa tirania.
Escultura em corpo inteiro da imperatriz Agripina apresentando Nero ao povo
como sucessor do recém falecido imperador Cláudio (54 DC)
Depois de assassinar o irmão, a mãe, e o que havia de melhor entre seus ministros e
notáveis intelectuais, Nero entregou-se de corpo e alma à mais feroz devassidão e
despotismo. Curiosamente, ao mesmo tempo em que assassinava o que havia de
melhor na intelectualidade de Roma, ele posava como protetor das artes e da cultura,
promovendo festivais de poesia, música, dança, teatro e esportes, dos quais muitas
vezes participava como ator, músico e dançarino. O fato causou enorme escândalo na
aristocracia, que julgava isso indígno de um simples nobre, que dirá de
um imperador. Não satisfeito, passou a participar no hipódromo de corridas de
bigas, como cocheiro, e de cavalos, como jóquei, coisas julgadas ainda mais indignas
pelos cidadãos de respeito. Porém suas extravagâncias só fizeram aumentar sua
popularidade, pois o povo começou a tê-lo como "um dos seus", sobretudo porque
duplicou a ração de "pão e circo" que o governo dava às massas. Mas isso não impediu
a sua popularidade de periclitar quando Roma foi assolada por grande incêndio que
a destruiu pela metade em 64 DC. Para acalmar o povo, revoltado com sua
incapacidade em lidar com a catástrofe e suspeitando ter sido ele o culpado, acusou
os cristãos de serem os autores do incêndio e prendeu centenas deles, jogando-os aos
leões no circo para divertir a populaça. Outros foram untados com óleo e queimados
à noite em cruzes espalhadas pelas ruas para iluminá-las com tochas humanas.
Para aplacar as massas enfurecidas Nero culpou os cristãos pelo incêndio de Roma e mandou atirá-
los
aos leões no circo. Quadro de Jean-León Gerôme (séc. XIX)
Diz a lenda que durante essa brutal perseguição foram executados São Pedro e São
Paulo, mas não há evidências históricas disso, e nem mesmo de que ambos
estivessem em Roma na ocasião, embora fosse bastante provável. Fato é que Nero
continuou sua sinistra trajetória política de crime em crime e a devassidão da sua
vida privada chegou ao auge quando repudiou a sua virtuosa esposa Otávia e a exilou
em uma ilha, onde poucas semanas depois mandou seus guardas matá-la e trazer-
lhe a sua cabeça para presenteá-la à sua ciumenta amante Popeia. Nem bem o corpo
de Otávia esfriara, ele casou com a sua linda e depravada amante, mas o casamento
não durou muito: algum tempo depois, estando ela grávida, matou-a a ponta-pés
dentro do palácio imperial após voltar de uma orgia completamente
bêbado! Enquanto assim agia na esfera privada, matando o irmão, a mãe e duas
esposas, na esfera pública ele se comportava com total despudor e
irresponsabilidade, esvaziando o tesouro com gastos absurdos e não dando a mínima
importância às contínuas guerras que o Império era obrigado a sustentar em seu
imenso território e ao longo das suas extensas fronteiras.
Nero dava ao povo grandes espetáculos. Entre os mais populares estavam as corridas e às vezes
ele atuava como cocheiro
A história diz que ele fugiu com os libertos para uma chácara que possuía nos
arredores de Roma, encontrando-a deserta. Depois um dos libertos o teria ajudado a
suicidar-se enquanto ele dizia: que grande artista perde o mundo! Mas é difícil
acreditar que no geral panorama de covardia e omissão ex-escravos tenham se
portado tão nobremente, arriscando-se a ficar com ele até o fim, quando os seus
próprios ministros e familiares já lhe tinham virado as costas. A hipótese mais
provável é que ele fugiu só com Áctea e o escravo para a casa de campo. Vendo-a
deserta, o seu caráter covarde o pôs de novo em pânico e Áctea, prevendo que ele logo
seria preso e ultrajado antes da inevitável execução, certamente o aconselhou a fazer
algo inteligente.
A versão oficial é que ele se suicidou e seus fiéis servidores fizeram uma pira funerária
onde o cremaram, de sorte que os guardas acovardados, que haviam se colocado à
disposição do Senado tão logo o tirano fugira, saíram à sua procura e ao chegarem à
chácara só acharam cinzas e restos humanos irreconhecíveis. Indagados por que
haviam feito a cremação com tanta rapidez, os autores e testemunhas do fato
disseram que apenas cumpriram as ordens do amo, pois ele temia que seu cadáver
fosse vilipendiado e arrastado pelas ruas de Roma. Os oportunistas guardas e
senadores tinham sido leais a Nero até poucos dias atrás e por isso não investigaram
o assunto mais a fundo, preferindo dá-lo logo por encerrado. O rápido inquérito
concluiu que os depoimentos eram convincentes e que os anéis calcinados
encontrados nos despojos, inclusive o que continha o sinete imperial, eliminavam
quaisquer dúvidas. Assim, confirmaram o suicídio do déspota e aclamaram Galba
novo imperador. Mas outra versão diz que os guardas chegaram antes da cremação e
puderam testemunhar que o cadáver era mesmo de Nero, por isso o Senado
promoveu-lhe discreto funeral e depositou suas pretensas cinzas no túmulo da
família. Porém é lícito pensar que isso foi inventado e o funeral foi encenado apenas
para tirar as dúvidas dos recalcitrantes que se negavam a acreditar no suicídio do
sórdido imperador após a aclamação de Galba.
Lutas de gladiadores eram o espetáculo preferido dos romanos e Nero as proporcionava em
abundância
às massas, por isso elas o adoravam. Quadro de Jean-León Gerôme (séc. XIX)
A verdade é que o povão idolatrava Nero pela fartura de pão e circo que ele lhe
dava e recusou-se a acreditar na sua morte. Para completar, algum tempo depois
Áctea e o escravo sumiram e os boatos eram de que eles tinham ido se juntar ao
saudoso imperador em seu esconderijo. Isto fez impostores dizerem-se Nero e
reivindicarem o trono à frente de multidões rebeladas, mas foram presos e
executados. Alguns meses depois o novo imperador foi assassinado em um motim
militar e mais dois imperadores o seguiram em rápida sucessão, o que piorou as
coisas ainda mais. Seguiu-se um ano de anarquia até que o enérgico e hábil general
Vespasiano tomou o poder e restaurou a ordem abalada, quase que
imediatamente dando início à construção do Coliseu, o maior e mais suntuoso circo
que já existira (70 DC). Isto deu emprego à turba ociosa da capital e fez com que os
arruaceiros logo esquecessem o seu pranteado ídolo.
Para dar vazão ao seu "gosto artístico", Nero mandou martirizar uma jovem cristã amarrando-a ao
dorso
de um touro para reencenar o mito de Dirce. Quadro de Henryk Siemiradzki (séc.
XIX)
Todavia, por incrível que pareça, o mito de Nero como "ótimo imperador" persistiu
durante anos no meio do povo e vez por outra apareceram impostores dizendo-se
Nero e arrebanhando centenas de seguidores, os quais eram logo dispersos pelas
autoridades e quase sempre presos e executados. Isto originou debates entre
historiadores, alguns, como Flavius Josefus, defendendo Nero, e outros, como
Suetonius e Dion Cassius, atacando o monstruoso tirano. Porém, por mais boa
vontade que se tenha, impossível é não concluir que ele foi um desastre como homem
e como governante. Uma fria análise do seu caráter e das suas ações privadas mostra
que ele foi um degenerado moral dotado da mais extrema perversidade, e um
cuidadoso exame do seu governo e das suas ações públicas mostra que ele foi um dos
piores e mais torpes imperadores que Roma teve em toda sua história.
Porém, pondo de lado a história oficial e as críticas pró e contra para focar apenas
na sua morte, há bons indícios de que o povão estava certo e que o suicídio de Nero
foi uma farsa. As evidências mostram que ele seria o último sujeito do mundo a
suicidar-se, pois gozava a vida a todo vapor. Apesar de ser covarde e monstruoso, ele
tinha apenas trinta e dois anos, era boa pinta, culto, educado e muito simpático. Era
também farrista inveterado e se lixava para as tarefas de governo, deixando-as aos
cuidados de corruptos e incompetentes cupinchas, geralmente ex-escravos e gente
da mais baixa extração social. A sua paixão era o teatro, pois tocava vários
instrumentos musicais, cantava, recitava, dançava e representava! Também adorava
competições esportivas, das quais às vezes participava e vencia por absurdas decisões
de juízes aduladores. Em resumo: sendo um maníaco assassino destituído de
qualquer tipo de sensibilidade humana e de mínimos freios morais capazes de levar
o homem normal à autocrítica e ao arrependimento, Nero era o típico indivíduo
monstruoso que jamais se suicidaria!
Guiando o seu próprio carro, o monstruoso imperador passeia por avenida de Roma
iluminada por cristãos transformados em tochas humanas
É só uma hipótese, mas é bem possível que Nero tenha vivido feliz como ator o resto
da vida tendo sempre ao seu lado a dedicada Áctea e morreu velho de causas naturais.
Talvez em pleno palco, como aconteceu ao famoso Molière muitos séculos depois!
Post nº 11
NIBELUNGOS - A
VERDADE HISTÓRICA
POR TRÁS DO MITO GERMÂNI
CO
A "Cavalgada das Valquírias" é um dos episódios mais famosos das magníficas óperas
de Wagner. Tela do pintor americano William Maud (séc. XIX)
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Tudo indica que foi após a final celebração da paz com os romanos que ocorreram os
fatos inspiradores dos Cantos dos Nibelungos, pois não falam dos romanos, mas
falam muito dos hunos e do seu rei Átila a quem os germânicos chamavam Wetzel. A
epopéia termina com a morte dos líderes burgundos e de Kriemhilde, esposa de
Siegfried que ao enviuvar casa com Átila, por isso podemos situar a ação dos poemas
entre os anos 430, quando foi celebrada a paz com o Império, e os anos 450, quando
o famoso rei dos hunos morre e o seu império desaparece. Os burgundos não
conheciam a escrita e não fizeram registros relativos ao período, mas existem relatos
romanos dizendo que na época os seus líderes mais importantes eram Gundefredus
e o seu cunhado Sigefredus, sendo que o primeiro era famoso pela astúcia e o segundo
pela bravura. A terminação fried era bastante usada pelos germânicos nos nomes
próprios masculinos, e estes, quando latinizados, adquiriam a terminação fredus. É
possível que um deles se chamasse Guntherfried e o outro Siegfried, e os romanos
lhes tenham latinizado os nomes para Gundefredus e Sigefredus. Assim, é razoável
supor que os referidos líderes burgundos fossem os Gunther e Siegfried dos Cantos.
Os dois teriam rompido devido a um escândalo familiar, pois se dizia que o segundo
seduzira a esposa do primeiro, além de se recusar à vassalagem que Gundefredus,
com o apoio da grande maioria dos chefes de clãs, se obrigara a prestar aos romanos
em troca da paz e dos territórios que ocupavam. Por isso Sigefredus retirara-se para
o alto Reno, onde criara um principado e travara sangrentas guerras com tribos
rivais; no processo, adquirira fama legendária por sua extraordinária bravura e
aliara-se aos hunos, ao contrário do seu cunhado Gundefredus, que se mantivera fiel
à aliança com Roma. Quando Sigefredus foi morto, Átila tomou a bela viúva sob sua
proteção e exterminou os inimigos do antigo aliado.
No poema, os burgundos do rei Gunther que escapam do incêndio no castelo de Átila são executados
por ordem da rainha Kriemhild. Cena do filme de Fritz Lang "Die Niebelungen" (1924)
Post nº 10
"Nibelungos" é inspirado nas sagas nórdicas que têm nas Valquírias os seus mais marcantes seres
mitológicos
O nobre objetivo de Herder era tentar curar os alemães de sua baixa autoestima
devido à miséria causada por séculos de lutas fratricidas, fanatismo religioso e
disputas entre príncipes feudais ambiciosos, ocupados apenas em oprimir e explorar
o povo. Achava ele que se os alemães voltassem a se orgulhar de suas raízes culturais
e de sua história adquiririam sólido sentimento de pátria, expulsariam os crueis
senhores feudais e construiriam uma nação unificada capaz de satisfazer os anseios
de todos por liberdade e justiça. Herder alcançou em parte o seu objetivo um século
depois quando a Alemanha foi unificada em poderoso Império, mas no processo
despertou exarcerbado sentimento étnico e cultural que viria mais tarde a
desembocar no mais enlouquecido nacionalismo racista, coisa que jamais esteve nos
seus planos e ele nem de longe poderia prever nem muito menos querer.
Na revolução cultural por ele desencadeada, o poema foi redescoberto e muito
comentado, mas o seu prestígio máximo só foi alcançado no século
seguinte quando Richard Wagner compôs a sua obra-prima musical O Anel dos
Nibelungos, dividida em quatro óperas: O Ouro do Reno, A Walkyria, Sigfried e
o Crepúsculo dos Deuses, as quais lhe deram fama imorredoura. No século XX ele
adquiriu notoriedade macabra quando Hitler e o regime nazista
proclamaram Nibelungos "Saga Nacional Alemã" e endeusaram a música de Wagner
por tê-lo transformado em belíssima epopeia musical. Todavia, devemos ressaltar
que as óperas de Wagner têm pouco a ver com o poema propriamente dito, baseando-
se nas coletâneas de lendas nórdicas sobre heróis mitológicos que são também
personagens de Nibelungos e não no enredo deste.
Disposto a apoderar-se do tesouro dos anões feiticeiros, Siegfried invade a caverna onde ele
é ciosamente
guardado pelo feroz dragão Fafner. Cena do filme "Die Niebelungen" de Fritz Lang
(1924)
Siegfried mata o dragão e após banhar-se no seu sangue fica invulnerável, exceto em
local das
costas onde uma folha caída se grudara e impedira de ser banhado pelo sangue da
fera
Depois dessa extraordinária façanha, o seu clan adota o nome de "Nibelungos" por
ter a posse do Tesouro e ele vai à Worms, capital da Burgundia, pedir ao rei Gunther a
mão de sua irmã Kriemhild, cuja beleza é celebrada por todos. Este não a
apresenta de logo ao herói, pois resolve primeiro testar a sua bravura encarregando-
o de liderar uma guerra contra os dinamarqueses. Quando ele volta vitorioso após
realizar novos prodígios, é apresentado a Kriemhild e fica ainda mais apaixonado,
porém Gunther diz que só lhe concederá a mão da irmã se o príncipe ajudá-lo a
conquistar a virgem valquíria Brunhild, rainha do "país das névoas" (identificada no
poema como a Islândia, mas provavelmente uma tribo da Escandinávia). Ela é
famosa por sua extraordinária força e poderes mágicos, tendo declarado que só se
casará com o homem que a vencer numa série de desafios por ela própria criados.
Não consta do poema, mas consta das sagas nórdicas que ambos já se conheciam,
pois anos antes Siegfried, utilizando-se dos talismães enfeitiçados que roubara de
Nibelungo, não só a acordara de um sono mágico como a libertara do círculo de fogo
onde o deus Wotan seu pai a aprisionara após grave desentendimento. Siegfried e a
valquíria teriam se apaixonado, mas ela recusara-se a dar-lhe sua virgindade
temendo perder seus super-poderes e ele a abandonara profundamente frustrado.
Depois disso ela jurara que só se entregaria ao homem que lhe fosse superior em
força e bravura, o que era praticamente impossível acontecer. Ocorre que ao
apoderar-se do tesouro Siegfried também se apoderara dos talismães enfeitiçados de
Fafner com os quais, segundo as sagas escandinavas, salvara Brunhild e poderia tê-
la ganho com eles, porém não o fez por querer que a conquista se devesse aos seus
méritos e não à artes mágicas. Por isso desistira dela e se apaixonara por Kriemhild,
sendo ardentemente correspondido.
Brunhild é filha do deus Wotan, mas ele a prende em um círculo de fogo e
Siegfried a liberta. Gravura de Ferdinand Leek (séc. XIX)
No poema ele não se importa com Brunhild e quer ganhar Kriemhild a qualquer
custo, por isso veste o capuz mágico roubado dos anões feiticeiros e com os seus
super-poderes assume as feições de Gunther para vencer em seu lugar os testes de
força exigidos pela indômita valquíria. Porém ela fica desconfiada de ter sido
enganada por Gunther e se apaixona por Siegfried, mas tem de cumprir sua palavra
e casa-se com Gunther na mesma cerimônia em que Siegfried também se casa com
Kriemhild. Contudo, ela o faz contrariada por estar enciumada de Kriemhild
e suspeitosa de ter sido vencida nos testes mediante engodo. Por isso nega-se ao
marido na noite de núpcias, amarrando-o e pendurado-o no teto de forma
ridícula para que ele não a moleste durante o sono.
No poema Brunhild é poderosa guerreira que reina no País das Névoas e por amor vira mulher
comum,
mas nas nas sagas nórdicas é divindade que galopa nas nuvens. Tela de Peter Arbo (séc.
XIX)
Desesperado, Gunther novamente recorre ao cunhado para que com os seus poderes
convença Brunhild a aceitar a consumação do casamento, mas Siegfried resolve
divertir-se aproveitando a situação para deflorar Brunhild e não para convencê-la a
se entregar a Gunther. Assim, usa o capuz mágico para ficar invisível e entrar
no quarto da valquíria, dominando-a e deflorando-a. Não satisfeito, rouba-lhe os
mágicos cinto de seda e anel de ouro, que são os símbolos da sua pureza e fontes do
seu poder. Após também usar o capuz mágico para fazê-la esquecer o estupro, oculta
sua torpeza e diz a Gunther que a encantou e ela não mais lhe resistirá. Ignorante do
que o cunhado fizera, coisa que a própria Brunhild ignora, Gunther consuma o
casamento por ter ela ficado fraca ao perder a virgindade e os poderes mágicos.
Enquanto isso Siegfried, sentindo-se orgulhoso da sua façanha, conta-a
à Kriemhild e a presenteia com os troféus roubados da valquíria.
Sigfried apaixona-se ao conhecer a doce Kriemhild, mas a concepção de amor do poema difere
daquela
da Idade Média e da atual, pois é moralmente inaceitável o que ocorre em
Nibelungos
Não sabendo da fraude do marido, ela fica enciumada por achar que ele
apenas cedera aos encantamentos de Brunhild, mas o perdoa e aceita as jóias da
outra. Na verdade ela está não somente enciumada, mas também enraivecida por
achar que as jóias foram dadas por Brunhild a Siegfried como suborno para seduzi-
lo. Porém ela guarda segredo e as coisas parecem calmas até o dia em que o casal vai
a Worms visitar os soberanos. As duas mulheres então brigam por vaidade na
entrada da catedral e Kriemhild, com ciúmes de Brunhild, chama-a de prostituta e
acusa-a de seduzir Siegfried, trazendo a trama à superfície.
Kriemhild volta-se contra o seu irmão Gunther e seus demais familiares, sobretudo
o assassino Hagen, e assume a liderança da família do marido morto, mostrando a
todos valentia e determinação até então desconhecidas. É quando o poema mostra
que no litígio estão também envolvidos o roubo e a cobiça, pois a principal
reivindicação de Kriemhild e seus partidários não é apenas a vingança, mas a
devolução do valioso tesouro dos Nibelungos roubado pelos assassinos.
Com o seu ódio à flor da pele por terem eles durante as festas vangloriado-se do
covarde assassinato de Siegfried, julgando erroneamente que de há muito estivesse
tudo esquecido e perdoado, Kriemhild os humilha com escárnio e manda executar
todos os prisioneiros, inclusive o seu irmão Gunther, mas poupa Hagen porque não
acredita que ele tenha entregue o Tesouro às ninfas do Reno e o quer de volta. Assim,
ela lhe exibe a cabeça de Gunther dizendo que o mesmo lhe acontecerá caso não
revele onde escondeu o tesouro, mas ele se nega e ela pessoalmente lhe corta a cabeça
com a mesma famosa espada que ele roubara de Siegfried. Na ocasião o cavaleiro
Hildebrand fica indignado com o procedimento traiçoeiro, vingativo e cobiçoso de
Kriemhild e mata-a sem que Átila o impeça, pois a essa altura ele também a reprova
pelos males causados. O poema termina com o poderoso rei dos hunos lamentando
a morte de tantos heróis e manifestando a esperança de que a sua história não seja
esquecida.
A luta no palácio de Átila é feroz e no final os burgundos são exterminados. Cena do filme "Die
Nibelungen"
Fritz Lang, o famoso diretor alemão que fez o magnífico filme Die Niebelungen em
1924, era ativo anti-nazista e sempre repudiou as insinuações de que a sua
obra contribuíra para a "mitologia hitlerista", afirmando que Nibelungos era tão
somente uma obra-prima da poesia germânica medieval celebrando as lendas e os
mitos de um povo em seus estágios primitivos de civilização, tendo ele para os
alemães o mesmo significado que a Ilíada tinha para os gregos. Mas eu creio que
Lang somente estaria certo caso Nibelungos tivesse sido escrito em plena Era Pagã,
como foi o caso da Ilíada, e não em plena Era Cristã.
Há que se levar em conta também que na época os livros eram manuscritos e não
impressos, o que fazia com que raramente dois exemplares fossem rigorosamente
idênticos. Alguns copistas eram criativos e gostavam de modificar ou inovar sem
alterar de modo flagrante a forma ou o conteúdo da obra. Se fossem talentosos para
não só criar, mas também assimilar e reproduzir o estilo do autor, versos e até
estrofes inteiras podiam ser acrescentadas a um poema sem que se visse a mão alheia.
Porém o mais provável é que as mudanças tenham sido feitas pelo próprio autor entre
uma edição e outra.
Post nº 09
O inexplicável recuo de Átila em 452, após conferenciar com o Papa Leão I no norte da Itália, é
um dos grandes mistérios da história. Afresco de Rafael (séc. XVI)
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Em 452 Átila cruzou os Alpes Orientais com o seu enorme exército de cavaleiros
hunos e devastou o norte da Itália. Sem condições de enfrentá-lo em batalha campal,
pois o exército romano era muito inferior ao exército huno, o general Aécio foi para
as montanhas com os seus poucos batalhões e lhe moveu incansável guerra de
guerrilhas. Porém Átila continuou a saquear e destruir, até que resolveu marchar
para o sul e apoderar-se da mais rica presa de todas: Roma!
O grande adversário de Átila era o general romano Aécio, mas ele não dispunha
de exército capaz de enfrentar os hunos. Ilustração gráfica do autor
Não havendo obstáculos entre os terríveis invasores e a capital do mundo, Átila pôs-
se em marcha com suas centenas de batalhões bárbaros e foi aí que aconteceu um
dos fatos mais surpreendentes e misteriosos da história: à sua frente surgiu o Papa
Leão I montado em uma mula, acompanhado de uma centena de padres e de alguns
altos dignitários romanos, todos eles em trajes simples e completamente
desarmados. O que se passou de verdade ninguém sabe, pois tudo que temos é o
relato da própria Igreja, mas o fato é que Átila fez meia-volta e desistiu de destruir
Roma após conversar longamente com o Papa. Em seguida retirou-se da Itália
acossado pelos batalhões guerrilheiros de Aécio e regressou ao seu reino. No ano
seguinte morreu de causas naturais enquanto dormia ao lado da esposa em seu
palácio de madeira na Hungria atual.
Quando ele desistira de atacar Roma todos gritaram “Milagre!”, pois a Igreja
dizia que Átila obedecera a ordem de Leão para recuar depois que vira São Pedro e
São Paulo pairando no ar sobre a cabeça do Papa, tendo atrás deles uma coorte de
anjos com ameaçadoras espadas de fogo; Átila e os seus guerreiros tinham ficado tão
apavorados que preferiram não insistir e decidiram fazer o longo caminho de
volta. Por incrível que pareça, esta versão predominou durante mais de mil anos e
inspirou artistas como Rafael a retratarem o fantástico evento em esculturas
e quadros famosos. Somente a partir do século XVIII, com o advento do Iluminismo
e da chamada “Era da Razão”, é que surgiram dúvidas e a versão da Igreja foi
contestada. Vários historiadores apresentaram versões alternativas, mas nenhuma
teve comprovação histórica e elas continuam a ser hoje o que eram no início: apenas
hipóteses!
Escultura em mármore no Vaticano sobre o encontro de Átila e Leão I
em 452 no norte da Itália. Alessandro Algardi (séc. XVII)
O TENEBROSO JULGAMENTO
DOS CAVALEIROS TEMPLÁRIO
S
O Papa tenta salvar sua cambaleante autoridade mudando-se com sua corte
para território fora da jurisdição real e em agosto de 1308 convoca Concílio para
resolver o caso na cidade de Vienne, sudeste da França, mas independente da
autoridade de Felipe. O rei contra-ataca e convoca assembleia de príncipes e bispos
franceses na cidade de Lion, muito mais populosa e importante que a pequena
Vienne, para examinar a conduta infame do falecido Papa Bonifácio VIII, antecessor
de Clemente V. Este se amedronta e adia o início do Concílio, que só se reunirá três
anos mais tarde. No interregno Felipe finge negociar, mas não entrega ao Papa
nenhum dos prisioneiros. Sadicamente tortura-os nas masmorras e de vez em
quando queima alguns em praça pública.
Para mostrar que não está brincando, em 1310 manda queimar em Paris cinquenta e
dois cavaleiros de uma só vez, no que foi a maior execução por esse tipo de suplício
da história. Os executados não ocupam posições importantes e são de categoria
social inferior, pois ou pertencem à pequena nobreza sem influência política ou
provêm das classes baixas, tendo sido nobilitados pela própria Ordem ao serem
sagrados cavaleiros. Isto faz com que a alta aristocracia se abstenha de manifestar
insatisfações ou protestos e fortalece ainda mais a autoridade de Felipe, que há
tempos é também chamado pelo povo de "O Rei de Ferro". Por enquanto ele poupa
o estado-maior templário, não só porque é constituído por cavaleiros bem
conectados na alta nobreza, mas também porque tem esperanças de que lhe revelem
o paradeiro do Tesouro da Ordem, pois é voz geral que ele não foi encontrado
quando o Templo foi invadido na manhã do golpe.
Em 1310 Felipe manda mensagem de advertência ao Papa queimando
templários em massa. Iluminura medieval
Felipe periodicamente queima templários em praça pública para manter submissa toda a alta
cúpula da Igreja através do terror de Estado. Iluminura medieval
Em 1311 o Concílio enfim se reúne depois que Felipe consegue impor a sua agenda e
impedir a presença de prelados notoriamente favoráveis aos Templários. Como se já
dando por certa a extinção da Ordem, o assunto a ser debatido será o que fazer com
os seus bens! O tópico é absurdo porque o estatuto da Ordem diz claramente que o
papado é o seu herdeiro e portanto não há o que discutir, mas é precisamente o que
o acovardado Papa permite discutir, pois o interesse de Felipe e dos seus associados
é não só despojar a Ordem, mas também a Igreja dos bens que legitimamente lhe
pertencem. Apesar de ser uma assembléia manipulada, os escrúpulos jurídicos da
maioria dos seus membros os faz decidir que não é possível condenar os réus sem
que eles sejam ouvidos; por isso ordena que Felipe os apresente para que sejam
corretamente julgados. Porém, temendo que os cavaleiros sejam absolvidos e
escapem das suas garras, Felipe capciosamente argumenta que é desnecessário
apresentá-los in corpore, pois uma comissão nomeada pelo Concílio poderá muito
bem fazê-lo na prisão onde os réus se encontram. Mais uma vez o Papa se curva e os
templários presos ainda vivos, exatamente a cúpula da Ordem, jamais comparecerão
diante de um verdadeiro tribunal antes do Juízo Final. É uma luta política feroz e
indecente onde todos os meios são válidos, até mesmo a vil chantagem praticada
sem qualquer pudor pelas autoridades mais altas da Terra.
Controlando o Concílio do começo ao fim, Felipe dele se utiliza para roubar ainda
mais e astutamente sugere uma "nova cruzada" para reconquistar Jerusalém. Claro
que tanto ele quanto Clemente V sabem que isso é inviável, mas o que ambos de fato
pretendem é arrecadar o famoso dízimo dos cruzados, imposto que é lançado sempre
que se organiza uma nova Cruzada e que tem por fim financiá-la. A "cruzada" é
convocada, o dízimo é cobrado e Felipe e Clemente esquecem o assunto logo que
enchem os bolsos.
Há uma versão que diz terem os cardeais lhes aplicado a pena de prisão perpétua,
mas a teriam agravado para pena de morte em virtude dos réus terem
veementemente protestado inocência. O fato é verdadeiro, mas os cardeais
modificam o veredito não por serem os réus "impenitentes", mas porque Felipe fica
furioso e os manda modificá-lo sob pena de irem todos juntos para a fogueira. Não é
por acaso que Felipe é também chamado de "O Rei Falsário" e "O Rei de Ferro".
Outra lenda diz que quando o dia 13 de outubro coincide com uma sexta-feira e há
lua cheia, aparece nas ruínas dos antigos castelos templários o fantasma de cavaleiro
armado dos pés à cabeça portando o manto branco e o escudo com a cruz. Olhando
em volta ele grita: Quem defende o Santo Sepulcro de Nosso Senhor Jesus Cristo?
Post nº 07
A REAÇÃO DE PORTUGAL AO
GOLPE MILITAR EM FRANÇA C
ONTRA OS
CAVALEIROS TEMPLÁRIOS
Os Cavaleiros Templários foram fundamentais para a expulsão dos mouros de Portugal e todas as
famílias
nobres tinham membros na Ordem. Por isso o rei Diniz e o povo português ficaram do seu lado
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Aos humildes nada é mais prazeroso do que a escandalosa queda e desgraça dos
poderosos! Por isso os reis europeus limitam-se a pedir a Felipe tímidas explicações
e ele responde mentindo, dizendo que tem o apoio do Papa e lhes mandando a lista
das atrozes acusações forjadas contra os cavaleiros. Na verdade, o Papa está tão
perplexo quanto os demais e permanece calado tentando negociar nos bastidores,
mas isto é visto como consentimento e os príncipes concluem que o melhor é seguir
o colega francês, perseguindo a Ordem e tomando-lhe os bens. Como urubus,
lançam-se à carniça e com documentos falsos alegam serem seus “credores”, pois
nela “depositaram grandesquantias”!
Porém enquanto a Ordem existir os seus bens são inalienáveis. Caso seja extinta,
serão incorporados a uma outra escolhida pelo Papa, mas no interregno ficarão sob
a guarda das autoridades eclesiásticas. Os reis contornam a árdua questão jurídica
através dos seus bispos, que embora nomeados pelo Papa são indicados por eles.
Assim, fazem altos prelados de sua confiança “fiéis depositários” do acervo e
apoderam-se dele. É importante realçar que embora o povo seja fanaticamente
religioso a Igreja Católica, como instituição terrena, passa por enorme crise moral e
política, estando o Sumo Pontífice refugiado em um castelo na cidade de Avignon
no sul da França devido aos cismas e revoltas que sacodem Roma e a Itália. Assim,
embora conserve sua enorme autoridade religiosa sobre massas ignorantes e
fanáticas, o Papa carece da boa vontade do poderoso rei francês para manter sua
autoridade política e debelar as rebeliões que ameaçam desembocar em avassalador
movimento de Reforma Religiosa 200 anos antes que ele realmente ocorra, como de
fato virá a ocorrer no século XVI. O resultado é que o Papa pouco ou nada pode fazer
pelos seus fiéis cavaleiros, pois além de estar politicamente fraco Felipe o chantageia
ameaçando revelar ao público segredos que possui sobre fatos gravíssimos que
acabariam por desmoralizar a Igreja completamente.
Castelo de Tomar, sede da Ordem dos Cavaleiros Templários em Portugal. Diniz muda-lhe o nome
para "Ordem dos Cavaleiros de Cristo" e tudo continua na mesma
Os cavaleiros templários tiveram grande atuação na Península Ibérica e foram essenciais para a
reconquista de Lisboa aos muçulmanos. Quadro de Alfredo Roque Gameiro (1917)
Passando das palavras aos atos, oferece integral proteção à Ordem. Em Portugal ela
continuará atuando e todos os cavaleiros fugitivos serão bem recebidos! Centenas
deles chegam de toda a Europa trazendo apenas a roupa do corpo, mas trazendo
também os grandes conhecimentos que possuem, não só das artes marciais, mas
também das artes do comércio e da navegação.
Em Portugal existem dezenas de castelos e ruínas de castelos templários. O castelo do Almourol em
ilha do rio Tejo é um dos mais belos e importantes
Oito navios templários que fogem de um porto francês atracam no pequeno porto de
Lisboa. Logo chegam mais navios e com eles experientes tripulações, mapas secretos,
valiosos instrumentos náuticos, livros contendo elaboradas técnicas contábeis,
preciosas informações geográficas e astronômicas, e listas de importantes contatos
comerciais no Mar Mediterrâneo, Mar Negro, Mar do Norte e Mar Báltico.
Maior tesouro que os Templários levam para Portugal são seus navios e
seus conhecimentos náuticos.
No ano da sua chegada Diniz funda a Universidade de Coimbra e a marinha portuguesa
Não se sabe se com os navios também chegou a Portugal o lendário Tesouro dos
Cavaleiros Templários, mas é certo que com eles chegou um outro valiosíssimo: o
tesouro do conhecimento comercial e naval! Graças ao rei Diniz e aos Cavaleiros da
Ordem do Templo, Portugal vai entrar no rol das grandes potências europeias e isto
terá relevante importância no mundo muitos anos depois, inclusive no Brasil. Mas
antes disso teremos de nos debruçar sobre outras questões do rumoroso caso e o
longo e sinistro processo judicial que se desenrola na França contra a legendária
Ordem guerr
Post nº 06
O GOLPE MILITAR QUE DESTR
UIU A ORDEM DOS CAVALEIR
OS TEMPLÁRIOS
Rei Felipe IV de França apelidado "O Belo". Ele destruirá a Ordem dos Cavaleiros Templários
com um golpe militar fulminante. Tela de autor anônimo do século XIX
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Porém nesta manhã, onde luto é apenas pretexto para exibição de poder e vaidade,
nada nos rostos dos dois homens denota a batalha diplomática secreta que travam
junto ao papado em torno da poderosa e riquíssima Ordem dos Cavaleiros do Templo
de Jerusalém, pois somente o Sumo Pontífice tem jurisdição sobre ela. Jacques de
Molay está tranqüilo e confiante no apoio do Papa, que o mantém a par das manobras
diplomáticas de Felipe, mas ignora totalmente sua secreta preparação para uma
eventual solução militar caso a diplomacia não lhe permita alcançar os seus perversos
objetivos.
O Rei parece conformado, pois há semanas não toca no assunto, mas é tudo um
disfarce, pois Felipe não é homem de aturar desafios à sua autoridade nem deixar
que tecnicalidades legais se interponham entre ele e os seus objetivos. Cansado das
delongas papais, há um mês reuniu em sigilo o seu conselho privado e decidiu pela
radical supressão da Ordem, lavrando-se o rol de terríveis acusações e o mandado de
prisão dos seus membros. Ele sabe que somente agindo disfarçado nas trevas poderá
apanhar de surpresa os aguerridos e experientes Cavaleiros com chances de vitória,
por isso todo o seu sinistro plano é mantido em rigoroso segredo e medidas
preliminares são tomadas. O Capelão da Corte, seu servo obediente, é o Grande
Inquisidor da França e o seu aval é obtido sem dificuldades. O exército fica de
prontidão nos quartéis, restaurando a disciplina e treinando para enfrentar “futuros
inimigos externos”. Peça chave da conspiração oficial, o exército é posto de prontidão
e os comandantes nada dirão aos soldados, mas devem ficar no aguardo de
importantes ordens reais cujo teor eles ignoram e que podem chegar a qualquer
momento.
Quando o dia amanhece as fortalezas templárias estão em poder das tropas reais, os
Cavaleiros estão presos ou mortos e a população está atônita. O segredo da
assombrosa operação militar foi mantido e Felipe o Belo triunfa de ponta a ponta,
criando no século XIV uma técnica de Golpe de Estado que no século XX vai ser
estudada e aplicada por todos que almejam conquistar ou manter o poder por meios
violentos, livrando-se de adversários poderosos com um Golpe Militar devastador
e fulminante. Se do ponto de vista administrativo e ético ele se mostrou e se mostrará
cruel e corrupto, de agora em diante ele também se mostrará competente e
implacável líder militar e político, com toda a frieza e cinismo que isto implica.
O imenso tesouro desaparecido, posto fora do alcance das mãos ávidas do ganancioso
rei, será apenas uma das questões discutidas nos anos seguintes. Por enquanto
o longo e tenebroso processo judicial dos Cavaleiros Templários e a secular polêmica
histórica sobre os mistérios que os cercam estão somente começando.
Post nº 05
Nos séculos XII e XIII várias Ordens religiosas-militares aparecem na Europa em razão
das Cruzadas, mas nenhuma é tão rica e poderosa quanto a Ordem dos Cavaleiros Templários
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Por volta de 1200 a Ordem dos Cavaleiros Templários está no auge: é a mais rica e
poderosa da Europa, poucos reinos da época têm o seu mesmo poder econômico,
político e militar, e o seu Grão-Mestre fala de igual para igual com príncipes, reis e
imperadores. Acima dele e dos seus cavaleiros estão somente Deus e o Papa!
O seu poder militar na Europa é tão grande quanto na Ásia e se faz sentir de forma
marcante na Península Ibérica, onde ela desempenha papel tão importante quanto
na Palestina, pois é essencial na reconquista de Lisboa em 1147 e na posterior
expulsão dos muçulmanos do território português, permitindo a unificação do país
tal como o conhecemos hoje. Isto talvez explique porque Portugal é o país europeu
com maior número de castelos templários proporcionalmente à sua população.
Os cavaleiros templários tiveram forte participação na reconquista de Lisboa pelo rei Afonso
Henriques. Quadro de Joaquim Rodrigues Braga (1840)
A situação piora com a mudança da sede da Ordem para a capital francesa, onde, não
tendo muçulmanos com que se preocupar, os cavaleiros passam a tratar os locais
como seus inferiores e a imiscuírem-se nos seus negócios como se fossem um poder
paralelo ao poder real e eclesiástico. Exceto na península ibérica, onde existe um
poderoso reino muçulmano com o qual os cristãos estão sempre em luta e têm muito
com que se ocupar, no restante da Europa os templários dedicam-se aos negócios
econômicos como se fossem uma empresa comercial e não uma guarda de elite
destinada à proteção dos lugares santos e à expansão da fé católica fora do
Continente. Seu grande poder econômico logo é acompanhado de grande poder
político dentro da própria Europa, e os seus rivais passam a ser cristãos ao invés de
muçulmanos. Príncipes e bispos, embora economicamente se beneficiem de
empréstimos e doações dos cavaleiros, ficam cada vez mais ressentidos com o
enorme poder que eles exercem dentro de suas próprias jurisdições, muitas vezes
suplantando ou simplesmente ignorando a sua autoridade.
Felipe é enérgico e unifica quase todo o reino. Eduardo I da Inglaterra lhe presta vassalagem
pelos poucos feudos que ainda tem na França. Iluminura medieval (séc. XIV)
Seja por esta ou por outra razão, príncipes e grandes mercadores interessados na
solidificação do Poder Real começam a murmurar contra o enorme poder
da Ordem e o descontentamento se espalha pela sociedade, gerando um ambiente de
geral hostilidade aos Templários. Com a hostilidade surgem histórias escandalosas
sobre as suas atividades públicas e privadas, muitas delas mentirosas, mas algumas
respaldadas aos olhos do público pelo comportamento descuidado, arrogante e
impróprio assumido por muitos cavaleiros no meio da supersticiosa e
fanática sociedade onde vivem.
Passando a viver em contato com as populações locais, os templários revelam-se brutais, arrogantes
e pouco virtuosos, tornando-se odiados. Cena do filme "Arn o Cavaleiro Templário"
Como em todo agrupamento humano, é provável que entre eles sempre tenha havido
cavaleiros inclinados aos pecados da gula, da intemperança e da luxúria, mas a sua
fervorosa religiosidade certamente os fazia julgá-las tentações do diabo e as
sufocavam sob grossas camadas de fanatismo e bravura. Porém agora fé e valentia
não são mais essenciais e as suas perversas inclinações se tornam visíveis, ainda que
disfarçadas pela hipocrisia. Embora sejam exceções, sua má conduta danifica a
reputação de todos, tal como a maçã podre contamina as saudáveis dentro do
cesto. Todavia isso em nada diminui o poder econômico e político da Ordem: reis,
príncipes e ricos mercadores lhe devem altas somas e dela dependem para suas
despesas e grandes transações; por isso lhe são sabujamente submissos.
Entre os que mais devem favores à Ordem está o rei Felipe o Belo, que a faz seu
banqueiro e depositária do Tesouro Real. Quando por mais de uma vez os seus
desmandos levam a França à beira do desastre, ele é salvo pelo dinheiro dos
Templários. Sempre carente de recursos, ele confisca os bens dos judeus e depois
manda diminuir o percentual de prata nas moedas cunhadas pelo Erário Real, o que
faz o povo lhe dar o apelido de "O Rei Falsário". Em 1306 ocorre um levante popular
em Paris contra o seu governo incompetente, e as tropas reais, que não recebem seus
soldos há meses, ficam inativas nos quartéis enquanto ele refugia-se no Templo,
nome que tinha a sede da Ordem em Paris e se tornara seu sinônimo. Felipe fica sob
a proteção dos Cavaleiros até a calma ser restaurada após árduas negociações do
Grão Mestre Jacques de Molay com os amotinados, mas durante sua hospedagem
forçada entre os Templários ele vê os seus enormes tesouros e toma ciência do seu
vasto patrimônio comercial e imobiliário espalhado por toda a Europa, o que lhe
aumenta ainda mais a cobiça e faz o despeito sobrepor-se à gratidão que deveria ter
aos Cavaleiros por o terem salvo da fúria popular. Ardilosamente, contrai novo
grande empréstimo com a Ordem, põe em dia o pagamento das tropas e dos
servidores civis, lhes dá um substancial aumento e lhes ganha o apoio e a gratidão.
A Ordem dos Templários era riquíssima, possuindo feudos e castelos em toda a Europa,
sobretudo na França e na Península Ibérica
Felipe é um patife astuto que percebe estar o Templo deixando de ser uma sociedade
de monges guerreiros para se tornar uma sociedade de mercadores banqueiros, a
maior e mais rica que já se viu e cujo poder político é enorme. Mas ele vê também
que, em um mundo onde a espada é a lei, o poder econômico e político dissociado do
poder militar é um convite certo ao desastre. Depois de várias décadas sem combater,
o poder militar dos Templários é só uma lembrança de um passado distante.
Corretamente, ele avalia que a Ordem é um gigante de pés de barro: um golpe
certeiro a jogará por terra! Ademais, ela tem a antipatia do alto clero, muito
incomodado por sua independência da autoridade dos bispos e pelo prestigioso
diálogo direto que tem com o Papa e o Colégio de Cardeais. Muitos bispos não se
conformam com o fato de ser o comendador diocesano da Ordem muito mais rico e
poderoso do que ele dentro da sua própria Diocese. Também nobres e comerciantes,
que têm os seus débitos judicialmente executados ou em vias de execução, gostariam
de se ver livres de sua implacável credora e assim salvarem suas propriedades.
Poderosas muralhas do castelo templário de Tomar, sede da Ordem em Portugal que abrigará
cavaleiros fugitivos vindos de toda a Europa após a derrota na França
Já sabendo que o Templo é uma mina de ouro e tem muitos inimigos, Felipe tenta
tornar-se seu membro e apoderar-se dele, mas o Grão-Mestre Jacques de Molay se
nega a admiti-lo sob o argumento de que não poderia se tornar monge um homem
casado e rei; para tanto teria que renunciar ao trono e à esposa. Felipe fica furioso e
começa a arquitetar a destruição da Ordem com o seu ministro Guilherme de
Nogaret, o qual, por razões pessoais idênticas a de muitos outros, também odeia os
Cavaleiros. Portanto, coleciona vasto rol de denúncias sobre o mau procedimento de
vários membros da Ordem e pleiteia secretamente junto ao Papa a sua dissolução
alegando não ser ela mais necessária porque o seu principal objetivo, a proteção dos
lugares santos na Palestina, desapareceu desde que ela de lá foi expulsa. Alega
também que a má reputação dos cavaleiros faz do Templo um ônus para a Igreja, mas
o Papa está ciente que o despeito e a cobiça são os verdadeiros motivos de Felipe e se
nega a atendê-lo. Muito pressionado, tenta negociar e previne Jacques de Molay dos
sinistros desígnios reais, dando início a um longo e incrível jogo de gato e rato que se
travará nos bastidores e terá um desfecho terrível.
O Grande Mestre Templário ainda não sabe, mas ele e a sagrada Ordem dos
Cavaleiros do Templo de Jerusalém já estão mortos!
Post nº 04
OS CAVALEIROS TEMPLÁRIOS
- UMA SAGA DE HEROÍSMO MI
LITAR E TRAGÉDIA POLÍTICA
Poucos assuntos têm sido tão explorados pelos modernos fabricantes de mitos
quanto a Ordem dos Cavaleiros do Templo de Jerusalém, extinta há setecentos anos
por um feroz processo ordenado pelo Rei de França e sancionado pelo Papa. Os seus
líderes morreram na fogueira por práticas diabólicas e as riquezas imobiliárias da
Ordem foram parar nas mãos do rei francês e dos reis europeus que o apoiaram.
Digo riquezas imobiliárias porque as riquezas monetárias (ouro, prata, jóias, pedras
preciosas e moedas de todos os tipos), cujo montante se sabia ser enorme, jamais
foram encontradas, nem na sede da Ordem em Paris nem nas suas fortalezas
espalhadas por toda a Europa. Quando as tropas reais as ocuparam e prenderam os
cavaleiros que lá estavam os tesouros tinham sumido!
O fragor do longo e escandaloso processo ressoa até hoje, e o mistério do Tesouro dos
Templários tem sido fonte para as estórias mais mirabolantes. Tudo quanto é de seita
obscura, real ou imaginária, tem sido relacionado à Ordem, a qual, segundo os
produtores de mistério, existe secretamente até hoje e os seus membros guardam
terríveis segredos que envolvem intrincadas tramas e conspirações.
Todos esses imaginosos enredos constituem ótimo divertimento, mas não têm nada
a ver com a verdade da história real. A Ordem dos Cavaleiros Templários nasceu em
1118 quando dois jovens cruzados franceses da alta nobreza, Hugo de Payen e
Godofredo de Saint-Omer, decidiram adotar a vida de monges sem abandonar o
mundo secular, continuando a guerrear os infiéis na Terra Santa e a proteger os
peregrinos que seguiam por suas perigosas estradas e desfiladeiros. O número de
monges-soldados aumentou e a sua bravura, fé e desprendimento logo espalharam a
sua fama por toda parte.
Em 1128 o Concílio de Troyes aprovou a Ordem dos
Templários. Gravura de autor anônimo (séc. XIX
O rei Balduíno II de Jerusalém lhes deu para alojamento um prédio anexo às ruínas
do Templo judeu, em cujo topo está a célebre mesquita Al-Aksa, e eles o
transformaram em grande fortaleza que se expandiu pelos subterrâneos do Templo,
criando a lenda de que os cavaleiros os escavavam em busca do Tesouro do rei
Salomão. Mais tarde a lenda foi acrescida do mito de que eles o teriam achado e por
isso teriam se tornado imensamente ricos. Por controlarem as ruínas do Templo e
nelas terem o seu quartel principal, eles passaram a ser chamados de Os Pobres
Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão, nome este que adotaram para a sua
Ordem quando alguns anos mais tarde ela veio a ser oficializada por bula papal que
lhe aprovou os estatutos.
O Templo de Jerusalém foi destruído pelos romanos no século I DC e os
cavaleiros ocuparam suas ruínas ganhando o nome de "Templários"
A Ordem fortaleceu-se ainda mais quando em 1146 São Bernardo de Claraval pregou
por toda a Europa a II Cruzada e convocou os jovens nobres a juntarem-se aos
Templários. Ela novamente recebeu uma torrente de novos membros e tornou-se um
verdadeiro exército com milhares de homens treinados dia e noite para o combate.
Eram todos rapazes ricos dos mais diversos níveis da nobreza e alguns tinham status
de príncipes por pertecerem a casas reinantes, mas uma vez cavaleiros templários os
privilégios desapareciam e tudo era concentrado nos esforços para deter o avanço
islâmico que havia retomado várias cidades e agora ameaçava retomar Jerusalém.
Porém o mais significativo de tudo é que com os novos cavaleiros veio não só nova
onda de entusiasmo, mas também nova onda de doações que tornaram a Ordem
ainda mais rica do que já era.
Hugo de Payen criou a Ordem, mas quem lhe deu poder foi São
Bernardo. Quadro de Georg Andreas Wasshuber (séc. XVIII)
Ela agora possuía terras, castelos, fortalezas, exércitos, esquadras e lojas nos
principais portos da Europa e do Oriente Médio, o que a fez criar as cartas de crédito
para transferência de dinheiro: comprava-se uma carta na loja da Ordem em
Londres, que cobrava uma taxa pelo serviço, e se a sacava na loja de destino. Isto, que
hoje é trivial, era novidade no século XII e deu início à economia globalizada.
O seu último grão-mestre Jacques de Molay tentou organizar nova cruzada e chegou
a assolar o litoral da Palestina e do Egito com uma grande esquadra que montara com
os vastos recursos da Ordem, mas o empreendimento se mostrou irrealizável quando
o império mogol da Pérsia, seu provável aliado militar contra os sultanatos árabes do
Cairo e de Damasco, desistiu de uma guerra a Oeste e investiu sobre à Índia no Leste,
fazendo com que a chegada do século XIV encontrasse a Ordem quase que
militarmente inativa. Os tempos de ociosidade militar que se seguiram minaram
ainda mais a sua capacidade guerreira, mas não lhe diminuíu a arrogância nem o
hábito de ganhar dinheiro e amealhar riquezas, adquirido ao longo de cento e oitenta
anos de incrível sucesso político-militar e imensa prosperidade econômica.
Post nº 03
A CAVALARIA MEDIEVAL E A
LENDA
DO SANTO GRAAL
Cavaleiro Templário guardião do Santo Graal. Cena do filme "Indiana Jones e a Última Cruzada"
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Uma das estórias mais interessantes produzidas pelo chamado Ciclo de Lendas
Arturianas é a do Santo Graal. Segundo a Bíblia, José de Arimateia, um nobre judeu
membro do Sinédrio e com acesso a Pilatos, dele conseguiu autorização para sepultar
Jesus, de quem secretamente era seguidor, e o fez em uma gruta próxima ao local da
crucificação, fechando-a depois com uma grande pedra.
Analisemos a questão com base nas escassas fontes que possuímos sobre o Rei Arthur
porque a estória do Santo Graal está intimamente ligada à sua. O poema Gododdin,
composto oralmente nos anos 500 e publicado em linguagem escrita nos anos 600,
é a fonte mais antiga conhecida sobre Arthur, mas ela não fala do Santo Graal. O
historiador Nennius, escrevendo século e meio depois a sua Historia Britonnum, se
refere longamente a Arthur, citando suas grandes vitórias contra os invasores
bárbaros, porém é omisso sobre o Graal. As menções ao cálice sagrado somente
surgem em poemas celtas produzidos em torno do ano 1000, dentre eles destacando-
se um dos poucos que chegaram até nós, intitulado Lives of Welsh Saints, escrito
originalmente em latim e no qual o Rei Arthur é convertido ao cristianismo por um
milagre.
A explosão artística da 1ª Renascença incorporou o maravilhoso à vida
das pessoas e as fez substituir as dúvidas pelas certezas
A maestria da arte religiosa medieval da 1ª Renascença tornou real para as pessoas o que de
outro modo seria mistério ou pura fantasia
Penso que as duas primeiras versões não merecem credibilidade porque se o cálice
fosse levado para Glastonbury, situada no próprio reino de Arthur, não haveria razão
para os seus cavaleiros Percival, Galahad e Bors irem procurá-lo em lugares
distantes, a ponto dos dois primeiros desaparecerem na perigosa jornada e somente
Bors regressar. Por outro lado, os Atos dos Apóstolos, que relatam suas viagens para
converterem os pagãos, não falam em viagem de Tiago à Espanha.
O imaginário medieval sobre o Graal tem sido tema na atualidade de muitos livros e filmes
Na minha opinião a única versão que possui plausibilidade é a terceira, pois sendo
José de Arimatéia secretamente cristão, a ponto de opor-se ao Sinédrio na decisão de
condenar Jesus à morte, teria sido possível que obtivesse o cálice para tê-lo como
objeto de culto e em sua devoção o utilizasse para colher um pouco do sangue que
julgava sagrado. Dessa forma, o santo cálice continuaria na Palestina escondido em
algum mosteiro no deserto ou lugar secreto nas montanhas, como sugere o filme
"Indiana Jones e a Última Cruzada".
Ruínas do Templo de Jerusalém. Alguns dizem que os Cavaleiros Templários teriam escondido o
Graal
em seus subterrâneos antes da tomada da cidade pelo sultão Saladino no ano de 1187
Pessoalmente, acho que o Santo Graal é apenas uma lenda criada por poetas
talentosos, com base em relatos orais memorizados e repetidos pelo povo numa
época em que a religião reinava suprema, lenda que em nossos dias é uma mina de
ouro para cineastas e escritores criativos, sobretudo os cultores dos gêneros "policial"
e "fantasia
Post nº 2
É razoável supor que Arthur era um alto oficial que ficara na Ilha sob as ordens de
Ambrosius Aurelianus, importante cidadão romano-britânico que parece ter governado a
Britannia nos anos 30-50 do século V, pois há parte de uma carta sua ao imperador datada
de 436. O bispo Gildas fala muito nele em sua obra De Excidio Britanniae (A Destruição
da Britannia) publicada em 540, e tudo indica que estava no controle da província quando
as legiões foram combater Átila na Gália em 451. Todavia Gildas não fala em Arthur, o
que é compreensível se nos anos 30-50 do século V, quando Ambrosius Aurelianus era
o último governador romano da Britannia, Arthur fosse apenas um seu subordinado.
Devemos notar que após a provável partida das legiões em 451 o contato entre a
Britannia e Roma cessou e os historiadores, todos eles do continente, não tiveram mais
notícias da ilha e nada escreveram sobre o período que vai dos anos 450 aos anos 520,
década em que Gildas provavelmente chegou de Roma e desembarcou na ilha. Embora
de origem britânica, é provável que Gildas tivesse saído do país ainda criança ou nascido
no continente, pois a atual região francesa da Bretanha era povoada na época por
britânicos fugitivos das invasões anglo-saxônicas. Tendo sido educado em Roma e lá
vivido até a maturidade, é possível que ele soubesse a história do seu país apenas pelos
historiadores continentais, e estes nada tinham escrito sobre a época posterior a
Ambrosius Aurelianus.
No século XIX o romantismo trouxe de volta o "Ciclo Arturiano" com o poema "Os
Idílios do Rei" de lord Tennyson, ilustrado por Gustave Doré
Sendo um scholar, Gildas certamente não deu importância aos poemas orais em língua
local, recitados ao redor das fogueiras nas noites frias ou nas festas populares. Isto talvez
explique a sua ignorância sobre Arthur, pois nos anos 500 já circulavam oralmente no
sudoeste da Britannia, terra do herói, muitos poemas sobre as lutas que os locais travavam
para manter os invasores afastados da sua região. Desses poemas o único que chegou até
nós foi o épico Gododdin, onde Arthur e outros herois são celebrados, mas ele só adquiriu
forma escrita por mão anônima nos anos 600, bem depois da morte de Gildas. Creio que
a oralidade da história britânica em poemas populares na sua época, cheios de fantasias
como é próprio do gênero, certamente motivou a sua ignorância sobre os fatos e
os homens que desde a morte de Ambrosius Aurelianus no século anterior sustentavam a
independência da região contra os bárbaros invasores pagãos.
O século V, período em que Arthur teria vivido, é um dos mais obscuros da história
britânica, pois nem sequer se sabe ao certo o ano da partida das legiões. Historiadores
apontam diferentes datas, sendo 407 a mais comum, mas acho falso, pois é certo que em
436 ainda havia um governo romano na Britannia, como atesta carta de Ambrosius
Aurelianus ao imperador sobre a perigosa situação da província e pedindo autorização
para criar um exército provincial. O documento está incompleto e não é possível dizer o
cargo oficial do autor, mas é óbvio que só um alto dignitário poderia dirigir-se diretamente
ao imperador pedindo licença para levantar tropas na ilha a fim de enfrentar os bárbaros.
Isto seria próprio de um governador provincial, e se havia um na Britannia em 436 não
há como se admitir a partida das legiões antes dessa data. Penso que 451 é a data mais
provável, pois foi quando Átila invadiu a Gália e Aécio reuniu todas as tropas romanas
disponíveis para enfrentá-lo, derrotando-o na batalha de Chalôns, também chamada de
Batalha dos Campos Catalúnicos. Fazer as legiões atravessarem o Canal da Mancha para
enfrentar o rei huno na vizinha Gália seria a atitude lógica de um general em tal situação.
Historiadores continentais relatam que nos anos 460 a Gália sofreu novas invasões e um
general chamado Riotimus veio da Britannia com um exército para expulsar os invasores,
obtendo sucesso e voltando depois ao seu país. Hoje se sabe que Riotimus era a
latinização do título “Riothamos”, que em um dos antigos dialetos celtas significava
“Chefe Supremo”, e não um nome próprio. Como os poucos historiadores da época eram
de cultura romana, certamente ignoravam tal detalhe e escreveram o título com o qual as
pessoas designavam o líder como sendo o seu nome, confundindo o título com o homem,
tal como fazemos ao nos referir a um soberano apenas pelas palavras "rei" ou "rainha".
Nos anos 500 os anglo-saxões começaram a adotar os costumes romanos dos britons e
nos anos 700 se tornaram cristãos. Ilustração de Albert Kretschmer (1882)
Portanto, é crível que o nome celta do herói fosse Arthur, o rei britânico a quem Nennius
se refere. Era usual entre os romanos latinizar nomes nativos e Arthur aparece na obra
com o nome de Arturus, sendo que alguns escritos da época também o chamam Artorius.
A mistura de nomes, títulos e postos deve ter contribuído bastante para o mistério.
As destruições feitas pelos bárbaros nos anos finais do Império causaram a fuga de
populações inteiras e quase fez cessar a atividade cultural, sobretudo na Britannia, de
onde mais da metade da população do civilizado Leste fugiu para o noroeste da Gália,
criando a atual Bretangne francesa, e para o noroeste da Espanha, misturando-se com os
suevos da Galícia. Em consequência, a palavra escrita praticamente desapareceu da Ilha e
a sua história foi substituída pela tradição oral, dando origem aos mitos e lendas.
Por isso não é de admirar que importantes líderes da resistência, como Uther, Merlin,
Arthur, Kay, Percival, Tristan e outros, tenham se tornado lendários; mas certamente
Arthur foi o mais notável e sua lenda adquiriu contornos definitivos quando o bispo
Geoffrey of Monmouth publicou em 1135 sua História dos Reis da Britannia, desde
então a principal fonte de informações sobre o herói e aqueles que lhe eram próximos.
Filme recente com o ator Clive Owen retrata corretamente Arthur como oficial romano do século
V em
luta com os anglo-saxãos, mas erra ao dizer que ele era sármata e não britânico
Penso que o argumento mais forte para a real existência de Arthur é o fato de durante dois
séculos os anglo-saxãos não terem conseguido conquistar o País de Gales e a Península
de Devon, pois nestas regiões, assim com em outras partes do sudoeste da Britannia, são
raríssimos os vestígios da sua presença anteriores ao século VII. Isto significa que, não
obstante as suas incursões e depredações narradas por Gildas, os anglo-saxãos jamais
conseguiram nelas implantar o seu domínio enquanto não se converteram ao cristianismo
no final do século VII, misturando-se definitivamente com os britânicos e criando uma
nova nacionalidade coesa e forte. Se não o conseguiram, apesar de serem muito superiores
numérica e militarmente aos britânicos, foi porque se depararam com a efetiva e eficaz
resistência deles, coisa que somente poderia ocorrer no caso de estarem econômica, social
e politicamente muito organizados. Isto faz pressupor a existência de um reino britânico-
cristão bastante poderoso, requisito essencial para a existência de Arthur e seus cavaleiros
na corte do lendário Reino de Camelot.
A tenaz resistência aos invasores anglo-saxãos no século V, aqui retratados no filme com Clive
Owen, deu
fama e glória a Arthur, fazendo-o rei dos britânicos e guerreiro legendário
Ruínas da abadia de Glastonbury, onde a lenda diz que Arthur foi enterrado. Embora sua
construção
date do século IX, há sinais de que no local existira antes igreja dos tempos romanos
A minha opinião é que Arthur existiu e teve importante papel na guerra de resistência aos
invasores anglo-saxãos no período inicial da invasão, mas a sua luta foi em vão e a
Britannia mergulhou na barbárie testemunhada por Gildas, nela permanecendo durante
os dois séculos seguintes, período conhecido como Alta Idade Média ou “Idade das
Trevas”, até que o rei Alfredo o Grande viesse de novo unificar o país e prepará-lo para
uma nova existência, onde o culto dos heróis desempenharia papel importante na
construção de uma identidade nacional legitimamente britânica.
Por sorte, a história desses heróis sobreviveu na cabeça das pessoas sob a forma de mitos
e lendas, como é próprio da tradição oral, e serviu tanto para forjar a nova nação como
para nos brindar com as belas estórias que têm encantado gerações através dos séculos.
Quem sou eu
Virgilio Campos
Procurador da Fazenda Nacional aposentado e antigo professor da Faculdade de
Direito do Recife (Universidade Federal de Pernambuco). Advogou muitos anos, foi
assessor de desembargador e Diretor Administrativo do Tribunal Regional Federal
da 5ª Região (Recife). Fez cursos de extensão na Harvard University e na University
of Illinois, ambas nos EUA, e no Northeast Surrey College of Technology no UK.
Escreveu dezenas de artigos e ensaios jurídicos, dentre eles destacando-se:
"Considerações Histórico-Críticas Sobre o Direito Comum Anglo-Americano", "A
Natureza do Devido Processo Legal", "Contrato de Trabalho do Diretor de
Empresas", "Tobias Barreto e a Revolução Jurídica Alemã", "Sá Pereira e o Seu
Tempo", etc. Escreveu também artigos sobre literatura, dentre estes destacando-se
"A Melancolia na Moderna Literatura Italiana" e "Em torno de O Mandarim de Eça
de Queiroz". Escreveu ainda dois romances históricos: "Memórias Íntimas de
Flavius Marcellus Aetius" e "O Senhor dos Dragões". Atualmente dedica-se a
estudos de História e mantém um blog sobre o assunto: "Virgilio Campos História
Antiga".
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