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VAGNER CAMILO Apresentação

O alvo da crítica de Raymond Williams (1921-1988) neste im-

portante ensaio é o modelo explicativo da teoria cultural marxista,

assentado na relação determinante entre as forças produtivas e a esfera

das idéias, instituições, cultura e arte. Sem desconsiderar o quanto a

explicação mais simplista e mecânica dessa relação já fora superada

não só pelas noções mais refinadas de mediação e de homologia


Texto indicado para publiucação
pelos programas de Pós-graduação
estrutural, mas sobretudo pela definição lukacsiana de totalidade, em Literatura Brasileira, Teoria
Literária e Literatura Comparada
ele acredita que o emprego correto desta última só se dá quando da FFLCH-USP.

devidamente combinada com o conceito gramsciano de hegemonia,


Edição original: Raymond Williams,
no qual encontra a ferramenta mais valiosa para explicar as forças “Base and Superstructure in Marxist
Cultural Theory”, in Problems in
dominantes em uma cultura. Para evitar que resulte no mesmo uso Materialism and Culture, London,
Verso, 1997.
regressivamente estático e uniforme que marcou a acepção vulgar

de superestrutura, o mentor do materialismo cultural inglês enfati- Além da valiosa revisão da profa
Maria Elisa Cevasco, a quem
agradeço, esta tradução também
za aqui a complexidade dinâmica de sua concepção de hegemonia, contou com a leitura e as sugestões
dos profs. Vagner Camilo e Joaquim
compreendida no sentido de um conjunto de significados e valores Alves de Aguiar, a quem agradeço
a atenção e o apoio (N. T.).
vivido como prática concreta, e pautado por tensões, transformações

e acomodações entre a cultura dominante e o que ele denomina de

formas residuais e emergentes.

Trata-se, sem dúvida, de ensaio bastante polêmico, que chegaria,

inclusive, a ser contestado por aquele que foi seu mais brilhante aluno,

Terry Eagleton (*), para quem o mestre teria se precipitado ao alijar a * Cf. T. Eagleton, “Base and
Superstructure in Raymond
referida relação em favor do conceito de hegemonia, pois no capitalis- Williams”, in T. Eagleton (ed.),
Raymond Williams; Critical Per-
spectives, Oxford, Polite Press,
mo o modo de produção faz da superestrutura uma necessidade para 1989, pp. 165-75.

regular e ratificar uma base construída sobre a exploração. Apesar da

discordância, o próprio Eagleton chega a reconhecer que o presente

ensaio, ao se desviar de certa ortodoxia bastante comprometedora

para a teoria marxista, acabou, paradoxalmente, por recuperar e

revitalizar o que há, nela, de real valor. Daí o interesse em publicá-lo

nesta seção, mesmo trinta anos depois de sua primeira aparição, nas

páginas da prestigiada New Left Review (nov.-dez./1973).


210 REVISTA USP, São Paulo, n.65, p. 210-224, março/maio 2005
e superestrutura

na teoria cultural

RAYMOND WILLIAMS

Tradução de Bianca Ribeiro Manfrini


com revisão de Maria Elisa Cevasco

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terminismo, vem de explicações idealistas
e especialmente teológicas do mundo e do
homem. É significativo o fato de que Marx,
em uma de suas costumeiras inversões e
contradições de conceitos estabelecidos,
utilize a palavra que se torna, na tradução
para o inglês, determines (a palavra alemã
usual mas não invariável é bestimmen). Ele
está se opondo à ideologia que enfatiza o
poder de certas forças exteriores ao homem,
ou, na versão secular, de uma consciência

Q
abstrata determinante. A proposição de
Marx rejeita explicitamente tais idéias, e
coloca a origem da determinação nas pró-
prias atividades humanas. Mesmo assim, a
ualquer abordagem moder- história particular e a permanência do termo
na de uma teoria da cultura servem para relembrar-nos que existem,
marxista tem de principiar no uso corrente – e isto também se dá na
levando em conta o problema maioria das principais línguas européias
da base determinante e da –, sentidos e implicações muito diferentes
superestrutura determinada. para o termo “determinação”. Há, de um
Mas de um ponto de vista teó- lado – o da herança teológica –, a noção
rico mais estrito este não é, de uma causa externa que prefigura e pre-
de fato, o ponto que se pode vê tudo, e de fato controla toda atividade
escolher para começar. Seria futura. Mas há também, da experiência da
em muitos aspectos preferível prática social, uma noção de determinação
se pudéssemos partir de um como algo que estabelece limites e exerce
problema que originalmente é pressões (1).
tão central quanto o primeiro, e Certamente há muita diferença entre o
igualmente autêntico: isto é, a processo de estabelecer limites e de exercer
proposição de que a existência pressões, quer seja por alguma força externa
social determina a consciência. Não é que os ou pelas leis internas de um acontecimento,
dois problemas necessariamente se excluam e aquele outro processo no qual um conteúdo
mutuamente ou estejam em contradição. subseqüente é essencialmente prefigurado,
Mas a questão da base e superestrutura, com previsto e controlado por uma força externa
seu elemento figurativo, com sua sugestão preexistente. No entanto, pode-se dizer,
de uma relação espacial fixa e definida, cons- observando várias aplicações em análises
titui, ao menos em certos casos, uma versão culturais marxistas, que é no segundo sen-
muito especializada e, às vezes, inaceitável tido, na noção de prefiguração, previsão ou
do outro problema. No entanto, no trânsito controle, que tal idéia tem sido explícita ou
de Marx ao marxismo, e na evolução do implicitamente utilizada.
mainstream marxista, o problema da base
determinante e da estrutura determinada tem
sido geralmente considerado a “chave” dos
estudos culturais marxistas. SUPERESTRUTURA: RESTRIÇÕES E
É importante, ao tentarmos analisar essa
questão, estarmos cientes de que o termo REPAROS
1 Para uma discussão mais de relação que está sendo usado, a palavra
aprofundada do alcance das
significações de determines, “determinação”, é de grande complexida- O termo de relação é então a primeira
ver, do mesmo autor: Keywords, de lingüística e teórica. A linguagem da coisa que devemos examinar neste proble-
New York, Oxford University
Press, 1985, pp. 98-102. determinação, e principalmente a do de- ma, mas temos de fazer isto examinando

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também os próprios termos relacionados. coberta por meio de análise. Essa não é a
“Superestrutura” (Überbau) é o que tem mesma noção do termo “mediação”, mas é
recebido mais atenção. No uso comum, o mesmo tipo de reparo na medida em que
depois de Marx, adquiriu o sentido prin- a relação entre a base e a superestrutura não
cipal de uma “área” unitária na qual todas é considerada direta, nem submetida, de
as atividades culturais e ideológicas pode- maneira simples e funcional, a defasagens,
riam ser situadas. Mas já em Marx, e nas dificuldades e interferências, pois por sua
correspondências tardias de Engels e em própria natureza essa relação não inclui a
muitos pontos da tradição marxista subse- reprodução direta.
qüente, foram feitas restrições a respeito do Essas restrições e reparos são importan-
caráter específico de certas atividades su- tes. Mas me parece que o que não tem sido
perestruturais. O primeiro tipo de restrição visto com igual cuidado é a noção estabeleci-
estava relacionado a diferenças temporais, da de “base” (Basis, Grundlage). Considero
a complicações e a certas relações indiretas que a base é o conceito mais importante a ser
ou distanciadas. A noção mais simples de observado se quisermos entender as realida-
superestrutura, que ainda está em uso, é a des do processo cultural. Por uma questão
do reflexo, da imitação ou reprodução, de de hábito verbal, nas várias formulações
modo mais ou menos direto, da realidade da do problema da base e da superestrutura,
base na superestrutura. É claro que critérios “a base” foi considerada quase como um
positivistas de reflexo e reprodução davam objeto ou, em casos menos explícitos, vista
suporte a essa noção. Mas visto que essa de maneiras essencialmente uniformes e,
relação não está dada em muitas atividades no mais das vezes, estáticas. “A base” é a
culturais reais, ou pelo menos não pode ser existência social real do homem. A “base”
encontrada sem forçar ou mesmo violar o são as relações de produção reais que cor-
material ou prática em estudo, foram intro- respondem a fases do desenvolvimento das
duzidas as diferenças temporais, as famosas forças produtivas materiais. “A base” é um
defasagens; as várias complicações técni- modo de produção num estágio particular
cas; e também os modos indiretos. Sendo de seu desenvolvimento. Nós elaboramos
assim, certos tipos de atividade da esfera e repetimos proposições desse tipo, mas na
cultural – a filosofia, por exemplo – pude- prática elas são muito diferentes da ênfase
ram ser colocados a uma grande distância que Marx dedica às atividades produtivas,
das atividades econômicas primárias. Esta em particular nas relações estruturais, que
foi a primeira fase de restrições à noção de constituem o fundamento de todas as outras
superestrutura: de fato, uma restrição opera- atividades. Porque, se um estágio particular
cional. A segunda fase tem parentesco com a de desenvolvimento da produção pode ser
primeira mas é mais fundamental, pois nela descoberto e especificado pela análise, ele
o processo da própria relação foi examinado nunca é, na prática, uniforme ou estático.
mais substancialmente. Dessa abordagem Esta é, de fato, uma das proposições cen-
surgiu a noção moderna de “mediação”, trais do sentido da História para Marx: a
na qual algo mais do que simples reflexo de que existem contradições profundas nas
ou reprodução – de fato algo radicalmente relações de produção e nas conseqüentes
diferente tanto de reflexo quanto de repro- relações sociais. Há por isso a possibilida-
dução – ocorre de forma ativa. Nas últimas de contínua da variação dinâmica de tais
décadas do século XX temos a noção de forças. Além disso, quando essas forças
“estruturas homólogas”, nas quais pode não são consideradas, como Marx sempre as
haver semelhanças diretas ou facilmente considera, como atividades e relações es-
perceptíveis, e certamente nada que possa pecíficas de homens reais, elas significam
ser descrito como reflexo ou reprodução, algo muito mais ativo, mais complicado e
entre o processo superestrutural e a realidade mais contraditório do que a noção metafo-
da base, mas nas quais há uma homologia ricamente desenvolvida de “base” poderia
essencial de estruturas, que pode ser des- nos permitir compreender.

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distribui o piano também é um trabalhador
A BASE E AS FORÇAS PRODUTIVAS produtivo; mas provavelmente o é, uma
vez que contribui para a realização da
Então temos de dizer que ao falarmos da mais-valia. No entanto, quanto ao homem
“base” estamos falando de um processo e que toca o piano, seja para ele mesmo ou
não de um estado. E não podemos atribuir para outros, não há dúvida: ele não é de
a esse processo certas propriedades fixas forma alguma um trabalhador produtivo.
para transposição subseqüente aos proces- Então o construtor de pianos é base, mas o
sos variáveis da superestrutura. Muitos dos pianista é superestrutura. Como um modo
que procuraram transformar a proposição de considerar a atividade cultural, e mais
usual em algo mais razoável se dedicaram especificamente a economia da atividade
a refinar a noção de superestrutura. Mas eu cultural moderna, isto é sem dúvida um
diria que cada termo da questão deve ser beco sem saída. Mas para qualquer escla-
reavaliado em uma direção específica. Nós recimento teórico é crucial reconhecer que
temos que reavaliar “determinação” como Marx estava fazendo a análise de um tipo
o estabelecimento de limites e o exercício particular de produção, que é a produção
de pressões, e não como a fixação de um capitalista de mercadorias. Em sua análise
conteúdo previsto, prefigurado e controlado. desse sistema, ele teve de dar à noção de
Nós temos que reavaliar “superestrutura” “trabalho produtivo” e “forças produtivas”
em relação a um determinado escopo de um sentido específico de trabalho primário
práticas culturais relacionadas, e não como sobre materiais de forma a produzir merca-
um conteúdo refletido, reproduzido ou espe- dorias. Mas essa acepção é muito restrita
cificamente dependente. E, principalmente, e, para efeito de análise cultural, bastante
nós temos de reavaliar “base” não como danosa, pois se afastou da sua noção mais
uma abstração econômica ou tecnológica central de forças produtivas, na qual, para
fixa, mas como as atividades específicas de
homens em relações sociais e econômicas
reais, que contêm contradições e variações
fundamentais, e por isso estão sempre em
estado de processo dinâmico.
Vale a pena observar mais uma im-
plicação que está por trás das definições
costumeiras. A “base” passou a incluir,
especialmente em algumas proposições do
século XX, uma acepção forte e limitada de
indústria de base. A ênfase na indústria pe-
sada chegou até a exercer um papel cultural.
E isso levanta um problema mais geral, pois
nos obriga a reconsiderar a noção vulgar
de “forças produtivas”. É claro que o que
se observa na base são forças produtivas
primárias. No entanto algumas distinções
cruciais têm de ser feitas aqui. É verdade
que na sua análise da produção capitalista
Marx considerou “trabalho produtivo” em
um sentido muito particular e específico
correspondente a esse modo de produção.
Há uma passagem difícil do Grundrisse
na qual ele argumenta que, enquanto o
homem que faz um piano é um trabalhador
produtivo, resta dúvida se o homem que

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relembrar brevemente, a coisa mais im- adicionando somente o fato de que elas
portante que um trabalhador produz é a interagem, relacionam-se e combinam-se
si mesmo, no sentido de alguém fazer um de modos muito complicados, nós estamos
determinado tipo de trabalho ou, numa num nível falando sobre a totalidade de
ênfase histórica mais ampla, os homens maneira muito óbvia, mas em outro nível
produzindo a si mesmos, a si e à sua história. estaremos evitando o fato de que exista
Então, quando falamos da base, e das forças qualquer processo de determinação. E isso
produtivas primárias, importa muito saber eu, por minha parte, teria muita relutância
a que estamos nos referindo (pois a forma em fazer. Assim, a questão-chave a ser co-
degenerada desta proposição se tornou ha- locada sobre qualquer noção de totalidade
bitual): se à produção primária, nos termos na teoria cultural é: essa noção de totalidade
das relações econômicas capitalistas, ou à inclui a noção de intenção?
produção primária da própria sociedade e Se a totalidade é simplesmente concreta,
dos homens, a produção e reprodução ma- se é simplesmente o reconhecimento de uma
terial da vida real. Se compreendermos o grande variedade de práticas contemporâ-
sentido amplo de forças produtivas, olhamos neas, então é uma noção essencialmente
para todo o problema da base de maneira esvaziada de qualquer conteúdo que pode-
diferente, e então somos menos tentados a ríamos chamar marxista. Intenção, a noção
desprezar como superestruturais, e nesse de intenção, recoloca o problema-chave, ou
sentido como meramente secundárias, cer- antes a ênfase-chave. Porque, enquanto é
tas forças sociais e produtivas vitais, que verdadeiro que qualquer sociedade é um
são, no sentido mais abrangente e desde sua todo complexo de tais práticas, é também
origem, de base. verdade que toda sociedade tem uma orga-
nização e uma estrutura específicas, e que
os princípios de sua organização e estrutura
podem ser vistos como diretamente relacio-
USOS DA TOTALIDADE nados a certas intenções sociais, intenções
pelas quais nós definimos a sociedade,
No entanto, por causa das dificuldades da intenções que em toda a nossa experiência
proposição vulgar de base e superestrutura, têm sido do domínio de uma determinada
surgiu uma proposição alternativa e muito classe. Uma das conseqüências inesperadas
relevante, a ênfase em uma “totalidade” do modelo grosseiro base/superestrutura
social, geralmente associada a Lukács. A tem sido a aceitação fácil de modelos apa-
totalidade das práticas sociais era oposta à rentemente menos grosseiros – modelos de
noção estática de base e uma superestrutura totalidade ou de um todo complexo – que
conseqüente. Esse conceito de uma totali- excluem os dados de intenção social, o cará-
dade de práticas é comparável à noção da ter classista de uma determinada sociedade
existência social determinando a consciên- e daí em diante. E isso nos faz lembrar do
cia, mas não interpreta necessariamente esse quanto perdemos se abandonamos total-
processo em termos de base e superestrutura. mente a ênfase na superestrutura. Assim,
Agora o linguajar da totalidade se tornou sinto grande dificuldade em ver processos
comum, e é de fato e de várias maneiras mais de arte e pensamento como superestruturais
aceitável do que a noção de base e superes- no sentido em que a fórmula é vulgarmente
trutura. Mas com uma ressalva importante. utilizada. Mas em muitas áreas do pensa-
É muito fácil que a noção de totalidade mento social e político – certos tipos de
seja esvaziada do conteúdo essencial da teorias ratificadoras, certas espécies de leis
proposição marxista original. Porque, se e de instituição, que nas formulações origi-
dissermos que a sociedade é composta de nais de Marx eram essencialmente partes
um grande número de práticas que formam da superestrutura –, em todo esse conjunto
um todo social concreto, e se dermos a cada do aparato social, e numa área decisiva da
prática um certo reconhecimento específico, atividade e da construção política e ideoló-

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gica, se deixarmos de considerar o elemento e culturais fossem tão-somente o resultado
superestrutural, não podemos reconhecer de manipulação específica, de uma espécie
toda a realidade. Essas leis, constituições, de treinamento público que pudesse ser sim-
teorias, ideologias, que são constantemen- plesmente eliminado ou reprimido, então
te consideradas naturais, ou de validade e seria muito mais fácil do que jamais foi ou
significado universais, simplesmente devem é, na prática, modificar ou transformar a
ser vistas como a expressão e ratificação da sociedade. Essa noção de hegemonia como
dominação de uma determinada classe. De algo no qual a consciência de determinada
fato, a dificuldade de revisar a fórmula de sociedade está profundamente imersa me
base e superestrutura tem muito a ver com parece fundamental. E a hegemonia leva
a percepção de muitos militantes – que vantagem sobre noções genéricas de totali-
têm de combater tais instituições e noções dade, pois ao mesmo tempo enfatiza o fato
além das batalhas econômicas – de que se da dominação.
não enfatizarmos que essas instituições e Contudo, há momentos em que ouço de-
suas ideologias têm esse caráter depen- bates sobre hegemonia e sinto que ela, tam-
dente e ratificador, e se não combatermos bém, como conceito, está regredindo para
e rejeitarmos suas pretensões de validade e uma noção relativamente simples, uniforme
legitimação universais, a característica de e estática do mesmo modo que ocorreu com
classe da sociedade não poderá mais ser o uso vulgar de “superestrutura”. De fato
reconhecida. E esse tem sido o efeito de penso que devemos dar uma explicação
algumas versões da totalidade como des- bastante completa do que é hegemonia ao
crição do processo cultural. Assim, penso nos referirmos a qualquer formação social
que podemos usar corretamente a noção de real. Acima de tudo, temos de fornecer uma
totalidade somente quando a combinamos explicação que leve em conta os elementos
com aquele outro conceito marxista crucial, de mudança reais e constantes. Temos de
o de “hegemonia”. deixar claro que a hegemonia não é algo
unívoco; que, de fato, suas próprias estru-
turas internas são altamente complexas, e
têm de ser renovadas, recriadas e defendidas
A COMPLEXIDADE DA continuamente; e que do mesmo modo elas
podem ser continuamente desafiadas e em
HEGEMONIA certos aspectos modificadas. É por isso
que ao invés de falar simplesmente de “a
Uma das grandes contribuições de hegemonia”, ou em “uma hegemonia”, eu
Gramsci é que ele enfatiza a questão da proporia um modelo que permitisse a va-
hegemonia, e a compreende numa profun- riação e a contradição, com seu conjunto de
didade que considero rara. Pois hegemonia alternativas e processos de mudança.
supõe a existência de algo verdadeiramente Pois é bastante evidente em alguns dos
total, que não é meramente secundário ou melhores estudos marxistas o fato de que
superestrutural, como na acepção fraca de eles se sentem muito mais à vontade no que
ideologia, mas que é vivido numa tal profun- podemos chamar de questões de época do
didade e satura a sociedade de tal maneira que em questões que poderíamos definir
que, como Gramsci coloca, constitui a subs- como históricas. Quer dizer, geralmente
tância e o limite do senso comum para muitas são muito melhores ao distinguirem as
pessoas sob sua influência e corresponde à características gerais de diferentes épocas
realidade da experiência social muito mais da sociedade, como entre o feudalismo e a
claramente do que quaisquer noções deri- era burguesa, do que quando distinguem as
vadas da fórmula de base e superestrutura. diferentes fases da sociedade burguesa, e os
Pois se a ideologia fosse meramente um momentos diferenciados no interior dessas
conjunto imposto e abstrato de noções, se fases: aquele processo histórico real que
nossas idéias, suposições e hábitos políticos exige uma precisão e delicadeza de análise

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muito maior do que a já conhecida análise de significados e valores que, vividos como
épocas, preocupada com as características práticas, parecem se confirmar uns aos
gerais e delineamentos abrangentes. outros, constituindo assim o que a maioria
O modelo teórico com o qual tenho das pessoas na sociedade considera ser o
tentado trabalhar é o seguinte: diria, em sentido da realidade, uma realidade abso-
primeiro lugar, que em qualquer sociedade luta porque vivida, e é muito difícil, para a
e em qualquer período há um sistema cen- maioria das pessoas, ir além dessa realidade
tral de práticas, significados e valores, que em muitos setores de suas vidas. Mas este
podemos definir propriamente como domi- não é (a não ser no caso de um momento
nantes e efetivos. Isso não implica nenhum de análise abstrata) em nenhum sentido
juízo de valor sobre tal sistema. Tudo o que um sistema estático. Pelo contrário, nós só
quero dizer é que ele é central. De fato, eu podemos entender uma cultura dominante
o definiria como um sistema corporativo, o e efetiva se entendermos o processo social
que poderia causar confusão, pois Gramsci do qual ela depende: o processo de incor-
usa “corporação” para definir aquilo que é poração. Os modos de incorporação têm
subordinado em oposição aos elementos grande significado social. As instituições
genéricos e dominantes da hegemonia. De educacionais são geralmente os agentes
qualquer modo, o que tenho em mente é o principais na transmissão de uma cultura
sistema de significados e valores central, efetiva e dominante, e esta é, em nossos
efetivo e dominante, que não é meramente dias, uma atividade de grande importância,
abstrato, mas organizado e vivido. É por isso tanto econômica quanto cultural; de fato,
que a hegemonia não deve ser entendida no é as duas coisas ao mesmo tempo. Além
nível da mera opinião ou manipulação. Ela disso, num nível filosófico, no verdadeiro
é um corpo completo de práticas e expecta- nível da teoria e no nível da história das
tivas; implica nossas demandas de energia, várias práticas, há um processo que chamo
nosso entendimento comum da natureza do de tradição seletiva: aquilo que, no inte-
homem e de seu mundo. É um conjunto de rior dos termos de uma cultura dominante
e efetiva, é sempre transmitido como “a
tradição”, “o passado importante”. Mas o
principal é sempre a seleção, o modo pelo
qual, de um vasto campo de possibilidades
do passado e do presente, certos significados
e práticas são enfatizados e outros negligen-
ciados e excluídos. Ainda mais importante,
alguns desses significados e práticas são
reinterpretados, diluídos, ou colocados
em formas que apóiam ou ao menos não
contradizem outros elementos intrínsecos
à cultura dominante e efetiva. Os processos
educacionais; os processos mais amplos
de treinamento no interior de instituições
como a família; as definições práticas e a
organização do trabalho; a tradição seletiva
no nível intelectual e teórico: todas essas
forças estão envolvidas na elaboração e re-
elaboração contínuas da cultura dominante
efetiva, e sua realidade, como experiência,
como algo construído em nossa vivência,
depende delas. Se o que aprendemos fosse
meramente ideologia imposta, ou tratasse
apenas dos significados e práticas isoláveis

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da classe dominante, ou de um setor da Mas, ao dizermos isso, temos que pensar
classe dominante que se impõe aos outros, novamente sobre as origens do que não é
ocupando somente a superfície de nossas corporativo; aquelas práticas, experiências,
mentes, seria – e isso seria ótimo – algo significados, valores que não são parte da
muito mais fácil de ser derrubado. cultura dominante efetiva. Podemos colocar
Não se trata somente do fato de que isso de dois modos. Há claramente algo que
esse processo alcance as camadas mais chamamos de alternativa à cultura domi-
profundas, selecionando, organizando e nante efetiva, e há algo mais, que podemos
interpretando nossa experiência. Trata-se definir como oposição, num sentido verda-
também do fato de que ele está em contí- deiro. O grau de existência dessas formas
nua atividade e ajuste; ele não é somente alternativas e de oposição é, ele mesmo, uma
o passado, aquelas camadas de ideologia questão de variação histórica constante, em
ultrapassada que podemos descartar mais circunstâncias reais. Em certas sociedades é
facilmente. E isso só poderá acontecer, possível encontrar áreas de vida social nas
numa sociedade complexa, se o processo quais alternativas reais são toleradas. (Se
for algo mais substancial e flexível do que elas estão disponíveis, é claro, são também
qualquer ideologia imposta ou abstrata. parte da organização corporativa.) A exis-
Assim, nós temos de reconhecer os signi- tência da possibilidade de oposição, sua
ficados e valores alternativos, as opiniões e articulação, seu grau de abertura e todo o
atitudes alternativas, e até mesmo algumas resto dependem de forças sociais e políticas
visões de mundo alternativas, que podem ser muito precisas. Temos então que considerar
acomodadas e toleradas no interior de uma que a existência, no interior de uma cultura
determinada cultura efetiva e dominante. dominante e efetiva, de formas de vida
Isso tem sido muito pouco enfatizado em social e cultura alternativa e de oposição
nossas noções de superestrutura, e mesmo está submetida à variação histórica, e suas
em algumas noções de hegemonia. E a falta origens são muito significativas como um
de ênfase abre o caminho do recuo para uma fato da própria cultura dominante.
complexidade indiferente. Na prática políti-
ca, por exemplo, há certas modalidades que
são de fato incorporadas mas que apesar de
tudo, em termos da cultura dominante, são CULTURAS RESIDUAIS E
percebidas e combatidas como oposições
reais. Sua qualidade de incorporadas pode EMERGENTES
ser reconhecida pelo fato de que, seja qual
for o grau de conflito ou variação internos, O próximo passo é introduzir uma
na prática não vão além dos limites das distinção entre formas residuais e emer-
definições centrais, efetivas e dominantes. gentes, tanto da cultura alternativa como
Isso pode ser comprovado, por exemplo, na da de oposição. Por “residual” quero dizer
prática da política parlamentar, embora suas que algumas experiências, significados e
oposições internas sejam reais. Também valores, que não podem ser verificados ou
se aplica a um grande campo de práticas e expressos nos termos da cultura dominante,
argumentos, em qualquer sociedade real, são, apesar de tudo, vividos e praticados
que não podem, de forma alguma, ser re- sobre a base de um resíduo – tanto cultural
duzidos a uma mera cobertura ideológica quanto social – de alguma formação social
mas podem, apesar de tudo, ser considerados prévia. Há um exemplo real disso em certos
como corporativos, no sentido em que eu valores religiosos, por contraste com a in-
estou empregando o termo, se constatar- corporação muito evidente da maioria dos
mos que, seja qual for o grau de variação significados e valores religiosos no sistema
ou controvérsia interna, não excedem, no dominante. O mesmo se dá numa cultura
fim das contas, os limites das definições como a britânica, na qual certas noções
corporativas centrais. derivadas de um passado rural têm uma po-

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pularidade muito significativa. Uma cultura tolerância se expressasse por uma negligên-
residual está normalmente a certa distância cia nefasta. Mas tenho certeza de que, na
da cultura dominante efetiva, mas temos sociedade que emergiu depois da Segunda
de reconhecer que, em atividades culturais Guerra Mundial, esse esforço se ampliou
reais, ela pode ser incorporada. Isso porque e que progressivamente, por causa de mu-
uma parte ou versão dela – especialmente danças em aspectos sociais do trabalho,
se o resíduo for de alguma área importante das comunicações e da decisão, expande-se
do passado – terá de ser, em muitos casos, muito mais amplamente do que em qualquer
incorporada se a cultura dominante efetiva momento anterior da sociedade capitalista
quiser ter significado nessas áreas, pois em para certas áreas da experiência, da prática
certas áreas a cultura dominante não pode e dos significados. Desse modo, decidir se
permitir muitas dessas práticas e experi- uma prática é alternativa ou de oposição,
ências anteriores a ela sem pôr em risco é algo que muitas vezes se faz em âmbito
seu domínio. Assim, as pressões são reais, muito mais restrito. Há uma distinção teórica
mas alguns significados e práticas genuínos simples entre alternativo e de oposição, quer
e residuais sobrevivem em alguns casos dizer, entre alguém que encontra um modo
significativos. de vida diferente e não quer ser perturbado,
Por “emergente” entendo, primeiro, ou alguém que encontra um modo de vida
que novos significados e valores, novas diferente e quer mudar a sociedade a partir
práticas, novas significações e experiências, de sua experiência. Essa é normalmente a
são criadas continuamente. Mas a tentativa diferença entre soluções individuais e de
de incorporá-las é imediata, só porque são pequenos grupos à crise social e aquelas
parte – e ainda assim nem mesmo uma parte soluções que mais propriamente pertencem
definida – da prática contemporânea efetiva. à prática política e revolucionária. Mas,
De fato, é significativo como essa tentativa na realidade, a linha entre alternativo e de
é rápida em nosso tempo, e como a cultura oposição é geralmente muito tênue. Um sig-
dominante está alerta, agora, a qualquer nificado ou prática pode ser tolerado como
coisa que possa ser tida como emergente. um desvio, e ainda assim ser visto somente
Temos de pensar, em primeiro lugar, como como mais um modo de vida diferenciado.
se existisse uma relação temporal entre uma Mas, na medida em que a área necessária à
cultura dominante de um lado, do outro uma dominância efetiva se amplia, os mesmos
residual, e de mais um outro uma cultura significados e práticas podem ser vistos
emergente. Mas só podemos entender tal pela cultura dominante não somente como
fato se pudermos fazer distinções, que ge- algo que a despreza ou é indiferente a ela,
ralmente requerem análises muito precisas, mas como uma ameaça.
entre o residual-incorporado e o residual Então é crucial que qualquer teoria da
não incorporado e entre o emergente-in- cultura marxista possa dar uma explicação
corporado e o emergente não incorporado. adequada da origem dessas práticas e signifi-
Esse esforço de abranger um vasto campo cados. Nós podemos compreender, partindo
de práticas e experiências humanas em seus de uma abordagem histórica corriqueira, ao
processos de incorporação é um fato impor- menos algumas das origens dos significados
tante a respeito de qualquer sociedade. Pode e das práticas residuais. Elas são resultado
ser verdade que em algumas fases primi- de formações sociais precedentes, nas quais
tivas da sociedade burguesa, por exemplo, certos significados e valores foram gerados.
existiam algumas áreas da experiência que Se em um momento subseqüente há uma
poderiam ser deixadas fora desse processo, falha específica de uma cultura dominante,
que a sociedade estivesse preparada para dá-se então um retorno àqueles significados
considerá-las como a esfera da vida privada que foram criados em sociedades reais do
ou artística, e não como assunto da sociedade passado, e que continuam a ter algum sentido
ou do Estado. Isso veio junto com uma certa por representarem áreas da experiência, das
tolerância política, ainda que de fato essa aspirações e das conquistas humanas que a

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cultura dominante subestima ou combate, e conseqüentemente excluam grande parte
ou mesmo nem sequer reconhece. Mas a delas. As dificuldades das práticas que se
nossa tarefa mais difícil, teoricamente, é encontram fora ou contra o modo dominante
achar uma explicação da prática cultural são, é claro, reais, e dependem muito se
emergente que não seja nem metafísica nem ocorrem em uma área na qual a classe e a
subjetiva. E parte de nossa resposta a essa cultura dominantes têm interesses ou na qual
questão reside no processo da persistência investem. Se o interesse e o investimento são
das práticas residuais. explícitos, muitas das novas práticas serão
identificadas e possivelmente incorporadas,
ou, se isso não for possível, extirpadas com
vigor extraordinário. Mas em certas áreas
CLASSE E PRÁTICA HUMANA e em certos períodos existirão práticas e
significados que não serão identificados.
Nós temos, de fato, uma explicação para Há áreas de prática e significado que, quase
a origem de práticas emergentes no corpo que por definição de seu próprio caráter
central da teoria marxista. Temos a formação ou de sua deformação profunda, a cultura
de uma nova classe, a tomada de consciên- dominante será incapaz de reconhecer em
cia de uma nova classe. Isso continua, sem termos reais. Isso nos dá um ponto de vista
dúvida, bastante importante. Claro, visto para observarmos a diferença nítida entre,
em si mesmo, esse processo de formação por exemplo, as práticas de um Estado ca-
complica qualquer esquema simplificado de pitalista e as de um Estado como a União
base e superestrutura. Também torna mais Soviética contemporânea (2) em relação
complexas algumas das versões comuns aos escritores. Uma vez que para a tradição
de hegemonia, embora toda a proposta de marxista a literatura era vista como uma
Gramsci fosse a de ver e criar, por meio atividade importante, até mesmo crucial,
da organização, uma hegemonia proletária o Estado soviético é muito mais arguto na
que seria capaz de ameaçar a hegemonia investigação de áreas nas quais versões
burguesa. Temos então uma explicação da diferentes de prática, significados e valores
origem de práticas novas na emergência são experimentados e expressos. Na prática
de uma nova classe. Mas temos também capitalista, se algo não dá lucro, ou não
de reconhecer outros tipos de origem, e na circula satisfatoriamente, então pode ser
prática cultural algumas delas são muito ignorado por algum tempo, com a condição
importantes. Eu diria que nos é dado reco- de permanecer alternativo. Quando se torna
nhecê-las baseando-nos nesta proposição: explicitamente de oposição, com certeza é
nenhum modo de produção, logo, nenhuma abordado ou atacado.
sociedade ou ordem social, e, portanto, Estou dizendo então que, em relação ao
nenhuma cultura dominante, na realidade âmbito total da prática humana em qualquer
exaure o âmbito total da prática, energia época, o modo dominante é uma seleção e
e intenção humanas (este âmbito não é organização conscientes. Ao menos em sua
o inventário de uma “natureza humana” forma acabada, é consciente. Mas existem
original mas, pelo contrário, refere-se ao sempre fontes de práticas humanas reais
extraordinário campo de variações, na prá- que são negligenciadas ou excluídas. E elas
tica e na imaginação, que os seres humanos podem ser diferentes em essência dos inte-
têm e já demonstraram ter capacidade de resses articulados e em desenvolvimento de
fazer). De fato me parece que essa ênfase uma classe ascendente. Podem incluir, por
não é meramente uma proposição negativa, exemplo, uma forma diferente de perceber
que nos permite dar conta de certas coisas os outros, em relacionamentos pessoais
que acontecem fora do modo dominante imediatos, ou novas percepções de materiais
– pelo contrário, é inerente aos modos de e de meios, na arte e na ciência, e dentro
2 O presente ensaio é anterior à dominação que eles façam uma seleção de certos limites essas novas percepções
dissolução da União Soviética
(N. T.). entre as práticas humanas reais e possíveis podem ser praticadas. As relações entre os

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específicas como práticas, mas não podem
ser separadas do processo social geral. De
fato, um modo de demonstrar isso é dizer
e insistir no fato de que a literatura não se
limita a operar em nenhum dos setores que
tenho buscado descrever neste modelo. Se-
ria fácil dizer, e no fim das contas trata-se de
uma retórica usual, que a literatura opera no
setor cultural emergente, que representa os
novos sentimentos, significados e valores.
Podemos nos convencer disso teoricamente,
por argumentação abstrata, mas quando
lemos bastante literatura, e de modo extensi-
vo, sem o comodismo de chamar Literatura
somente aquilo que já selecionamos e que
incorpora certos significados e valores numa
determinada escala de intensidade, somos
obrigados a reconhecer que o ato de escre-
ver, as práticas do discurso na escrita e na
fala, a composição de romances e poemas
e peças e teorias, toda essa atividade tem
lugar em todas as áreas da cultura.
A literatura não surge, de modo algum,
dois tipos de fonte – a classe emergente, as somente no setor emergente, e tal fato é, na
práticas excluídas pela cultura dominante ou verdade, muito raro. Grande parte do que é
as novas práticas mais genéricas – não são escrito é residual, e isso é profundamente
necessariamente contraditórias. Algumas verdadeiro para muito da literatura inglesa
vezes podem ser muito próximas, e a prática da última metade do século XX. Alguns de
política depende muito das relações entre seus significados e valores fundamentais
elas. Mas culturalmente e como problema pertenceram às conquistas culturais de es-
teórico essas áreas podem ser vistas como tágios sociais de um passado distante. Esse
distintas. fato, e os hábitos mentais que ele sustenta,
Agora, se voltarmos à questão cultural é tão difundido que, para muitos, os termos
em sua forma mais usual – quais são as “literatura” e “o passado” possuem certa
relações entre arte e sociedade, literatura e identidade, o que os leva a dizer que hoje
sociedade? – à luz da questão precedente, em dia não há literatura: toda a glória do
temos de dizer, em primeiro lugar, que não passado se foi. No entanto grande parte do
existem relações entre arte e sociedade num que é escrito, em qualquer período, incluin-
nível abstrato. A literatura como prática está do o nosso, é uma forma de contribuição à
presente desde a origem da sociedade. De cultura dominante efetiva. De fato, muitas
fato, até que ela e todas as outras práticas das qualidades específicas da literatura
estejam presentes, uma sociedade não pode – sua capacidade de incorporar, encenar e
ser considerada completamente formada. desempenhar certos significados e valores,
Uma sociedade não pode ser totalmente ou de criar de maneira única e singular o
analisada sem que se inclua cada uma de suas que seriam em outros casos simplesmente
práticas. Mas se enfatizarmos esse aspecto, verdades gerais – contribuem para que ela
teremos de enfatizar outro correspondente: preencha essa função efetiva com grande
não podemos separar literatura e arte de poder. À literatura, é claro, devemos adicio-
outros tipos de prática social, de modo a nar as artes visuais e a música, e em nossa
submetê-las a leis distintas e especiais. própria sociedade as artes poderosas do
Elas devem possuir certas características filme e da difusão televisiva e radiofônica.

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Mas o ponto teórico geral deve ficar claro.
Se estamos investigando as relações entre
literatura e sociedade, não podemos sepa-
rar essa prática de um conjunto anterior de
outras práticas, e tampouco podemos, ao
identificarmos uma determinada prática,
relacioná-la de forma uniforme, estática
e não-histórica a alguma formação social
abstrata. As artes da escrita, da criação e as
artes performativas, no seu vasto âmbito,
são partes do processo cultural em todas as
formas e nos diferentes setores que estou
procurando descrever. Elas contribuem à
cultura dominante efetiva e são uma arti-
culação central da mesma. Absorvem sig-
nificados e valores residuais, os quais nem
todos são incorporados, apesar de muitos o
serem. Elas também expressam de maneira
significativa algumas práticas e significados
emergentes, ainda que alguns deles sejam
eventualmente incorporados, ao atingir as
pessoas e emocioná-las. Isso foi muito evi-
dente na década de 60, em algumas das artes
performativas emergentes, que a cultura
dominante identificou e buscou transformar.
Nesse processo, é claro, a própria cultura
dominante se modifica, não na sua formação
central, mas em muitas das suas caracte- quase todas as formas contemporâneas
rísticas articuladas. Mas, numa sociedade de teoria crítica são teorias do consumo.
moderna que de fato quer continuar a ser Quer dizer, elas estão preocupadas com o
dominante e ser efetivamente reconhecida entendimento de um objeto de modo que
como central em todas as nossas principais ele possa ser consumido correta e lucrati-
atividades e interesses, as mudanças sempre vamente. O estágio primitivo da teoria de
ocorrem dessa maneira. consumo foi a teoria do “gosto”, na qual a
ligação entre teoria e prática estava explí-
cita na metáfora. Do gosto surgiu a noção
mais elevada de “sensibilidade”, na qual o
TEORIA CRÍTICA COMO CONSUMO consumo pela sensibilidade de trabalhos
elevados ou inspirados era considerado
Quais são, então, as implicações dessa como a atividade essencial da leitura, e a
análise geral para o estudo de determinadas crítica era conseqüentemente vista como
obras de arte? Essa é a questão para a qual a uma função dessa sensibilidade. Surgiram
maioria das discussões sobre teoria cultural então teorias mais elaboradas, na década
parece estar direcionada: a descoberta de de 1920, com I. A. Richards e, mais tarde,
um método, talvez até mesmo uma me- com o new criticism, no qual os efeitos do
todologia, por meio da qual determinadas consumo foram estudados diretamente. A
obras de arte possam ser compreendidas e linguagem da obra de arte como objeto se
descritas. Eu não acho que essa deva ser a tornou então mais explícita. “Que efeito
principal utilidade da teoria cultural, mas esta obra (o poema como era comumente
vamos nos ater a isso por um momento. definido) produz em mim?” Ou, como se
O que me parece muito evidente é que diria futuramente numa área muito mais

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ampla de estudos da comunicação, “que
impacto produz em mim?”. Naturalmente, OBJETOS E PRÁTICAS
a noção da obra de arte como objeto, como
texto, como um artefato isolado, tornou-se Acho que a crise real da teoria cultural,
essencial em todas essas teorias tardias de no nosso tempo, ocorre entre essa visão da
consumo. Com isso não só se deixavam de obra de arte como objeto e a visão alternativa
lado as práticas da produção; também se da obra de arte como prática. É claro que há
reforçava a noção de que a literatura mais o argumento imediato de que a obra de arte
importante, de qualquer modo, pertencia é um objeto: que várias obras sobreviveram
ao passado. As condições sociais reais de ao passado, determinadas esculturas, pin-
produção foram em todos os casos negligen- turas, obras arquitetônicas, todas objetos.
ciadas porque eram tidas como algo, na me- Isso com certeza é verdade, mas o mesmo
lhor das hipóteses, secundário. A verdadeira pensamento é aplicado a trabalhos que não
relação se estabelecia sempre entre o gosto, têm tal existência singular. Não existe Ham-
a sensibilidade ou o treinamento do leitor e let, Os Irmãos Karamázovi, O Morro dos
um trabalho isolado, o objeto “em si, como Ventos Uivantes, no sentido de que existe
realmente é”, como muitos definiram. Mas uma determinada grande pintura. Não há a
a noção de obra de arte como objeto teve Quinta Sinfonia, não há trabalho em toda
em seguida um efeito teórico ainda mais a área da música, dança e atuação, que
amplo. Se fizermos perguntas sobre uma seja um objeto comparável àquelas obras
obra de arte vista como objeto, elas terão das artes visuais que sobreviveram. Ainda
de incluir perguntas sobre os componentes assim, o hábito de tratar todas as obras
de sua produção. Então, aconteceu que uma desse tipo como objeto persistiu porque é
forma de empregar a fórmula da base e da uma pressuposição prática e teórica funda-
superestrutura foi precisamente alinhada mental. Mas na literatura (principalmente
a esse uso. Os componentes de uma obra no drama), na música e numa área muito
de arte eram as atividades reais de base, e ampla das artes cênicas, o que nós vemos
poderíamos estudar o objeto para descobrir permanentemente não são objetos e sim
esses componentes. Às vezes até estudam- notações. Essas notações têm então de ser
se os componentes e então projeta-se o interpretadas de modo ativo, de acordo
objeto. Mas, de qualquer modo, o que se com convenções específicas. Mas de fato
buscava era uma relação entre um objeto o mesmo se dá em um campo ainda mais
e seus componentes. Mas isso não era só amplo. A relação entre a feitura de uma obra
verdadeiro no que diz respeito às noções e sua recepção é sempre ativa, e submetida
marxistas de base a superestrutura. Era a convenções que são, elas mesmas, for-
válido também para vários tipos de teoria mas de organização e relações sociais (em
psicológica, seja na forma de arquétipos, nas constante mudança), e isso é radicalmente
imagens do inconsciente coletivo, ou nos diferente da produção e do consumo de um
mitos e símbolos que eram vistos como os objeto. Trata-se de fato de uma atividade
componentes de determinadas obras de arte. e de uma prática, e suas formas somente
Ou, numa variação disso, havia uma bio- são acessíveis por meio da percepção e da
grafia, psicobiografia ou algo semelhante, interpretação ativas, embora algumas artes
em que tais componentes estavam na vida possam ter a característica de um objeto
do homem e a obra de arte era um objeto no singular. Isso faz com que as notações, em
qual esses componentes eram descobertos. artes como o drama, a literatura e a música,
Mesmo em algumas formas mais rigorosas sejam apenas um exemplo específico de
do new criticism e da crítica estruturalista, uma verdade muito mais abrangente. O que
persistiu esse procedimento essencial de isso demonstra é que devemos, na prática
considerar a obra de arte como um objeto da análise, romper com o procedimento
que tem de ser reduzido a seus componentes, habitual de isolar o objeto e então descobrir
para mais tarde ser reconstituído. seus componentes. Pelo contrário, temos

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que descobrir a natureza de uma prática e Não é esse o modo de procedimento
então suas condições. postulado aqui. O reconhecimento da re-
Com freqüência esses dois procedimen- lação de um sistema coletivo e um projeto
tos podem, em certos pontos, referir-se mu- individual – e estas são as únicas categorias
tuamente, mas em muitos outros casos eles que podemos presumir inicialmente – é
são de naturezas radicalmente diferentes, e um reconhecimento de práticas relacio-
gostaria de concluir com uma observação nadas. Quer dizer, os projetos individuais
sobre o modo pelo qual essa distinção inflete, irredutíveis que determinadas obras são
na tradição marxista, a relação entre práticas devem surgir em experiência e análise que
econômicas e sociais primárias e práticas demonstrem semelhanças que nos permi-
culturais. Se supusermos que na prática cul- tam agrupá-los em sistemas coletivos, que
tural é produzida uma série de objetos, ire- não são de forma alguma sempre gêneros.
mos, como na maioria das formas atuais de Podem aparecer como semelhanças entre
procedimento sociocrítico, nos direcionar à e através dos gêneros. Podem ser a prática
descoberta de seus componentes. No interior de um grupo num período, e não a prática
de uma visão marxista esses componentes de uma fase de um gênero. Mas à medida
serão parte do que é habitualmente denomi- que descobrimos a natureza de uma prática
nado base. Isolamos então certos aspectos determinada, e a natureza da relação entre
que podemos, digamos, reconhecer como um projeto individual e uma modalidade
componentes, ou perguntamos por quais coletiva, vemos que estamos analisando,
processos de transformação ou mediação como duas formas do mesmo processo, tanto
esses componentes passaram antes de atingir sua composição ativa quanto as condições
essa forma que percebemos. dessa composição, e em ambas as direções
Mas estou dizendo que não devemos trata-se de um complexo de relações exten-
olhar para os componentes de um produto, sivas e ativas. Isso significa, é claro, que não
e sim para as condições de uma prática. temos nenhum procedimento preestabeleci-
Quando observamos determinada obra ou do, como quando pensamos em termos do
grupo de obras, muitas vezes imaginando, caráter fixo de um objeto. Temos os princí-
como fazemos, sua comunidade essencial pios das relações entre práticas, no interior
bem como sua individualidade irredutível, de uma organização de intenções a serem
deveríamos primeiro prestar atenção à sua descobertas, e temos a hipótese disponível do
prática e às condições da prática quando foi dominante, residual e emergente. Mas o que
exercida. E partindo disso, penso que elabo- ativamente buscamos é a verdadeira prática
ramos questões essencialmente diferentes. que foi reificada em uma noção de objeto, e
Podemos examinar, por exemplo, o modo as condições verdadeiras da prática – sejam
pelo qual um objeto – “um texto” – está re- elas convenções literárias ou relações sociais
lacionado a um gênero, na crítica ortodoxa. – que foram reificadas na categoria de com-
Nós o identificamos por certas qualidades ponente ou simples panos-de-fundo.
preponderantes, e então o atribuímos a Em termos de uma proposição geral,
uma categoria mais ampla, o gênero, para o que se apresentou aqui é somente uma
daí chegar às características do gênero em ênfase, mas me parece sugerir ao mesmo
uma determinada história social (embora tempo um ponto de rompimento e um ponto
em algumas variantes da crítica nem isso de partida, no trabalho prático e teórico, no
sequer seja feito, e o gênero é tido como interior de uma tradição cultural marxista
uma categoria mental permanente). ativa e em constante renovação.

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