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Ficção
Poncio Arrupe
- 13 -
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Teresa
- “Estou a ver o buraco!”, diz Teresa ufana, enquanto aponta os seus binóculos
na mesma direcção.
- “Onde?”, pergunta Miguel.
- “Ali, naquela direcção – João aponta de novo – está o centro da nossa galáxia.
É um buraco negro a vinte e sete mil anos-luz de nós, quatro milhões de vezes
maior que o Sol!”
- “Mas para ali só se vêem estrelas ...?! Muitas!”, exclama Miguel, exigindo
mais explicações.
- “São muitas estrelas e poeiras cósmicas que nos tapam a visão para o que está
atrás”
- “E o buraco negro, onde está?”
- “Mesmo que as estrelas e poeiras não impedissem a visão para o centro da Via
Láctea, não conseguiríamos ver o buraco negro ... É o que se pensa que
acontece em todas as galáxias em espiral, como a nossa. No centro têm um
buraco negro (ou até dois) que, por definição, não é visível - e está bem mais
perto do que a Galáxia da Andrómeda, e de muitas estrelas da nossa galáxia! -,
no entanto está lá, ... os seus efeitos são enormes. Esta galáxia não seria o que é
sem aquele buraco negro, naturalmente.” ...
- “Venham ... A Lua cheia vai nascer dentro de alguns minutos!”, e encaminha-
se para o carro que havia deixado quarenta metros afastado, para que não
interferisse no equilíbrio do cenário.
- “Onde está a Lua?”, perguntam Miguel e Teresa, saindo a correr de dentro do
túnel.
- “Já vos mostro. Subam para cima da anta.”, continuando a caminhar e
esquecendo-se que Teresa não consegue fazê-lo sozinha.
- “Esperem aí!”, ordenou Rita, que aparece em esforço à saída do túnel, seguida
de Margarida, que se sacode das poeiras com as mãos.
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... Estavam já os quatro sentados no cimo, observando o sol que baixava e se tornava
laranja, esperando, quando chega João no carro, janelas completamente abertas, e a
aparelhagem no máximo tocando o primeiro andamento da sétima de Shostakovich. De
entre o que tinha ali à sua disposição, escolheu aquele trecho porque majestoso e, a
pensar especialmente em Teresa e Rita, em simultâneo dançável. Abandona o carro o
mais perto que consegue, com o som ligado, e reúne-se a eles no topo.
- “A Lua vai nascer para ali.”, e aponta para uma zona da crista da Serra lá
longe, diametralmente oposta ao Sol, que se aproxima por sua vez cada vez
mais do ocaso.
- “ ... Ou seja, parece que para aquelas zonas, não se propagando a luz, o tempo
e a distância desaparecem ... Não há antes nem depois, nem aqui e ali ... É algo
que não conseguimos compreender e descrever. É indizível. ... Se é
inexplicável e, no entanto sabemos que ali está, estamos provavelmente
perante algo que afecta na essência tudo. ... Tudo, mesmo... ”
- “Se ali o tempo pára então se calhar um dia as viagens ao passado – e ao
futuro! – serão possíveis ...”, deduziu Miguel, hesitante, na dúvida,
moderadamente entusiástico.
- “Pois ... mandamo-nos para um buraco negro e aparecemos onde quisermos, ...
espalmadinhos e esticadinhos ...”, ironizou Margarida, gargalhando
desafiadora.
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se vai tornando gradualmente maior e assumindo uma cor viva, laranja, cada vez mais
parecida com a do Sol. Teresa exclama “Está ali! Estou a ver!” e, continuando a dançar,
com a mão direita na direcção da Lua de palma para cima, dedos entreabertos erguidos
para o céu, começa a puxar o astro qual feiticeira toda poderosa, retesando em esforço o
braço e o rosto, aquele em movimentos amplos pendulares na vertical, como se o
sucesso daquele parto dela dependesse. João tenta imaginar qual será a sensação de se
possuir todo aquele poder ... o que estará Teresa a sentir naquele momento ... Todos, à
sua vez, exclamam “Lindo!”, “Espectáculo!”, ... A pouco e pouco Sol e Lua vão
assumindo cores quase iguais, um laranja quase vermelho refulgente, embora o Sol mais
brilhante, ainda que já não ofusque. O crepúsculo ia avançando, agora rapidamente. Os
dois astros estão praticamente frente a frente, à mesma altura. A música aproxima-se
num crescendo avassalador do seu auge e
sente uma enorme força de atracção que parece vir do interior da câmara, de debaixo
da laje onde se encontram, que o puxa gentilmente mas com vigor. - “Já venho” - João é
impelido a correr para a entrada do túnel, não se questiona, simplesmente vai ...
Curvando-se, olha para o interior e abarca toda a extensão do corredor e câmara. No
centro desta uma luminosidade esplêndida, um redemoinho em que Sol e Lua
revoluteiam em torno um do outro ... O seu corpo começa a espalmar-se e a alongar-se
para dentro do túnel, planando ... Ainda ouve Teresa: “Pai, olha que lindo!”. Vai
mergulhando suavemente naquele vórtice, deixando de se ver ... Sente-se leve,
incorpóreo, descomprometido e desobrigado ... sem passado e futuro, livre.
Aparentemente pode escolher começar do nada absoluto, sem qualquer tipo de
imposição e de condicionamento, sem identidade, ... para qualquer lado, qualquer
começo que não é recomeço, mas não sente peso nenhum, angustia alguma, perante a
escolha, ... esta não se impõe, oferece-se, sugere-se ... Atinge um estádio que poderia
designar de felicidade, de paz ... Como se nada fosse, e nada tivesse que ser. Como se
participasse do grande e universal nada, que do absolutamente nada proveio, e
absolutamente nada gera. Como se aquele instante fosse a totalidade, inteiramente
autónomo, como se para além dele não houvesse nem antes nem depois, nem aqui e ali.
Não compreende, não sente necessidade de compreender, não sabe que não
compreende, não há nada a compreender ... Volta a ouvir Teresa: “Pai, o Sol está a
começar a esconder-se. Vem!” ... Dá por si subitamente depositado no interior do
corredor, perto da saída, a Lua mais alta, mais amarela ... uns segundos para se situar de
novo, e sai, levanta-se e corre para junto deles, pergunta a Teresa, não sabe bem porquê,
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