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Teatros de meméria* Raphael Samuel Tradugao: Maria Therezinha Janine Ribeiro Vera Helena Prada Maluf Revisdo técnica: Dea Ribeiro Fenelon Helotsa de Faria Cruz** “O passado néo estd morto, Ele ainda nem sequer é pasado". William Faulkner A memoria, de acordo com os gregos antigos, era précondigao do pensamento humano. Mnemosine, a deusa da mem6ria, era também a deusa da sabedoria, a mae das musas (concebida nas noites que passara com Zeus no Monte Helicon), e, portanto, em Ultima andlise, a progenitora de todas as artes e ciéncias, entre elas a hist6ria (Clio era uma de suas nove filhas). Pelo mesmo padrao, a mneménica, a ciéncia da recordacao supostamente descoberta pelo poeta Siménides de Ceos, era a base do processo de aprendizagem. Arist6teles deu-Ihe um lugar no menos privilegiado nas disciplinas do pensamento. Ele distinguiu entre a meméria consciente e a inconsciente, chamando a primeira — a meméria que vem espontaneamente para a superficie — mneme; e a segunda, © ato deliberado de rememorar, anamnesis. O que Frances Yates, a primeira historiadora da memoria, chamou A arte da meméria foi recuperado integralmente pelos romanos. Para Santo Agostinho, no fim do Império, assim como antes, para Cicero, a memoria era a mae de todas as pedagogias e a fons et origo do pensamento. Numa bem conhecida * Este texto compée-se da tradugéo de parte do Preféicio e de dois itens da Parte V “Old Photographes” do livro Theatres of Memory. Londres,Verso, 1994. As notas dos respectivos itens, que no original apa- recem separadas, aqui foram dispostas seqiiencialmente ao longo das partes traduzidas. ** Professoras do Departamento de Hist6ria da PUC-SP. Proj. Histéria, Séo Paulo, (14), fev. 1997 41 passagem das Confissdes, cle a compara a um “vasto vestibulo” ou “palécio” no qual “se encontra todo 0 tesouro de nossa percepgao c experiéncia”. A arte da memoria foi revivida pelos escoldsticos medievais (ha uma afirmagao a respeito fundamentada em Santo Tomas de Aquino); ¢ conheceu um tltimo grande florescimento na Renascenca, quando proporcionou um alicerce oculto (afirma Frances Yates) tanto para a arte como para a ciéncia. A “arte da memoria”, como € praticada hoje, seja na psicandlise, seja na hist6ria oral, ou ainda como “tradigio”, sem duvida deve mais ao movimento romantico em poesia © pintura do que A mneménica grega ou a cicncia da Renascenga. Os “pontos do tempo”, em “Lines written above Tintern Abbey” de Wordsworth, ou a paixio co- memorativa de seu ensaio sobre epitafios s4o aqui mais pertinentes que a retrica da ordem Rosa-Cruz, ou a iconografia relativa a Hermes. Minstrelsy or the Scottish Borders, s da fase Waverley, Heart of Midlothian, em especial, travendo discursos e modos do povo (folk) para 0 préprio Amago da narrativa hist6rica, constituiria outro conjunto decisivo de textos. Ainda mais pertinente seria a nogao de “ressurtecionismo”, desenvolvida, nos anos 40 do XIX, pelo historiador francés social- romantico Jules Michelet, com uma histéria que almejava dar voz aos sem vor ¢ a palavra aos mortos. A nogao de histéria de E.P. Thompson, como um gigantesco ato de reparagio que salve os derrotados da “enorme condescendéncia” da posteridade, poderia ser incluida na mesma categoria. Assim também procedem cm alguns muscus as exposigdes “interativas” (hands-on), que usam recursos cletnicos para simular as visées ¢ sons do passado e para transformar artefatos ou reliquias materiais em mostras de Walter Scott, e seus romanc de “hist6ria viva” A arte da memoria, tal como foi praticada no mundo antigo, era uma arte pictérica, enfocando imagens de preferéncia a palavras. Ela watava a visio como priméria. Punha © visual em primeiro plano, Sinais externos cram necessdrios sc as memorias deviam ser retidas ¢ recuperadas: “Pela audio nao se tem scguranga suficiente, mas a vi Ihe garante firmeza”. A primazia do visual foi ainda mais evidente na Idade Média. quando as imagens cram sistematicamente mobilizadas para fixar a narrativa sagrada nas mentes dos iletrados, ¢, quando emblemas, tais como as insignias de peregrinos, ou as divisas herdldicas adotadas como um padrio de ascendéncia genealégica consti- r sobre a memGria medieval, afirma que 6 manuscrito com ifuminuras, o vitral ¢ a gargula da igreja estavam presentes, antes de mais nada, por causa de sua utilidade mnemdnica fam uma espécie de moeda universal. Mary Carruthers, cm seu interessantissimo livro que [oi pela exploragio da “sinestesi: e — 0 apelo a todos os sentidos — que a propa- ganda religiosa se mostrou efica 42 Proj. Historia, Sdo Paulo, (14), fev. 1997 Na mnem@nica de Siménides, o espago cra coevo com a imagem como um foco do trabalho de meméria. Isso nao tinha nada a ver com uma antopomorfizagio da paisagem, como ocorrcria na ecologia romantica; nem mesmo com aquele sentido de pertencimento territorial, que escora uma politica moderna de identidade e a literatura cada vez, mais freqiiente sobre “rafzes”. Sua mneménica implicava de preferéncia uma espécie de cartografia mental na qual o espaco, mais que o tempo, fornecia os marca- dores signiticativos, ¢ as qualidades ideais eram situada: tatamcnte, os lugares da memoria cram representados por sarc6fagos ¢ relicdrios, os sitios das mais primitivas formas de registro histérico. A paisagem mneménica cra imprescindivel para a cristandade ocidental da Idade Média, com sua extensa rede de rotas de peregrinos ¢ de limites — “grutas, nascentes ¢ montanhe nicntemente situados para a veneragio comemorativa. A gcografia sagrada, secularizada a servigo do Estado, deveria desempenhar um papel ainda mais vital na construgao da nagio ¢ na geopolitica da expansiio colonial. No “teatro da memoria” renascentista, maravilhosamente descrito por Frances Yates imbolicamente, Menos abs- = conv em seu livro, a geometria sagrada tomou o lugar da geografia sagrada. Aqui o ato de relembrar foi conceptualizado como uma espécie de ascensdo as estrclas. Na tradigao hermético-cabalistica da ciéncia oculta, © teatro foi construido camada por camada, astrais que vinham de cima para baixo, como uma piramide, para capturar as corrente: a fim de usé-las para a vida ¢ a satide. Isso também pds a nu a oculta harmonia entre as esferas terrestre ¢ transcendental. A torre — quadrada ou redonda — cra fundamental para os rosa-cruzes, como 0 € nas Cartas do tard, dado que aqueles que alcangam a iluminagdo aparecem no papel de visiondrios: quanto mais alto podiam subir, mais a frente poderiam ver. Do mesmo modo, os clevados desenhos de Giulio Camillo — 0 mais célebre dos teatros renascentistas da memoria, ¢ que figuram entre os originais segundo se afirma, em que s¢ inspirou 0 “Globo” de Shakespeare — apresentavam (nas palavras de Frances Yates) “uma visto do mundo ¢ da natureza de coisas percebidas do alto, das préprias estrelas ¢ até mesmo das fontes supercelestiais de sabedoria que esto adiante delas”. O “teauo da memoria” romantico cra muito mais alturas mas scguindo a luz interna. Nao se interessava pclo cosmo, mas se concentrava ho circulo familiar ¢ no proprio individuo. Suas paisagens da mente ou locais da me- moria cram, como os da “Intimations of Immortality” de Wordsworth, a casa da infancia. O romantismo construiu-se sobre as ruinas do tempo. Sua idéia de meméria tinha como: premissa um senso de perda. Separou 0 trabalho de memoria de qualquer apelo a ciéncia, irospectivo, nao escalando as Proj. Histéria, Sdo Paulo, (14), fev. 1997 43

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