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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

ISIDORO DA SILVA LEITE

DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA.

O MAL É INERENTE AO SER HUMANO.

Pós-graduação em Ciência da Religião


Religião e Literatura
Prof. Dr. Antonio Manzatto

SÃO PAULO
2017
Disciplina: Religião e Literatura
Professor: Prof. Dr. Antonio Manzatto RA: 00190896
Alunos: ISIDORO DA SILVA LEITE Turma: 06602DPA

1. O AUTOR PLÍNIO MARCOS

Plínio Marcos de Barros nasceu em Santos (29 de setembro de 1935) e terminou


apenas o curso primário, pois não gostava de estudar. De família modesta, pretendeu ser
jogador de futebol e chegou a jogar na equipe da Portuguesa Santista, mas acabou
sendo funileiro e prestou serviço militar na Aeronáutica.
Ainda menor de idade (16 ou 17 anos) passou a trabalhar num circo, buscando
por uma artista, por quem havia se apaixonado. Depois, atuou em rádio, ainda em
Santos, antes de se aventurar no teatro, onde começou fazendo pequenos papéis até ser
levado por Patrícia Galvão para substituir um ator na peça Pluf, o Fantasminha.
Por essa época, impressionado pelo caso de um jovem currado na cadeia,
escreveu sua primeira peça, Barrela, que estreou em 1959, mas foi censurada por sua
linguagem direta, nua e crua e ficou proibida por 21 anos. Em seguida, partiu para São
Paulo, onde participou de companhias de teatro e encenou diversas peças.
Como autor, Plínio transpunha para as peças que escrevia sua experiência
humana ligada às classes pobres, tratando de assuntos incômodos – para a época – como
homossexualismo, marginalidade, prostituição e violência bruta. Suas peças não podiam
ser consideradas como “políticas” – de pobres contra ricos, por exemplo – mas
apresentavam a experiência dura, amarga da vida dos desvalidos. Ele foi, sem dúvida,
um dos primeiros a retratar a vida do submundo paulista, com uma linguagem direta,
forte, sem hipocrisia, buscando mostrar o linguajar que seria utilizado por seus
personagens se eles fossem criaturas da vida cotidiana. Ou seja, ele usava o falar próprio
de mendigos, vagabundos, delinquentes, prostitutas, alcaguetes, bandidos de todo naipe,
homossexuais, marginais. Porém, embora seus escritos tivessem se tornado célebres
pela ousadia linguística, ele conseguia combinar a gíria dos malandros com um texto
bem literário.
Autor de inúmeras peças de teatro – algumas foram transpostas para o cinema –
Plínio Marcos foi traduzido, publicado e encenado em várias línguas (francês, espanhol,
inglês e alemão), tendo recebido diversos prêmios aqui no Brasil.
Durante o regime militar, implantado em 1964, suas obras foram muito
censuradas. Os militares entendiam que peças mostrando um mundo nu, cru, sem meios

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termos, direto e convincente, e dando um tratamento dramático à realidade de
prostitutas, gigolôs e bandidos, poderiam servir à subversão. Após o ano de 1968, suas
peças eram sistematicamente censuradas. Nem mesmo Dois Perdidos Numa Noite Suja
e Navalha na Carne, que já haviam sido apresentadas em diversas regiões do país,
escaparam dessa sina e foram proibidas em todo o território nacional. Depois, Barrela e
Abajur Lilás também foram censuradas, assim permanecendo até 1980. Com todas as
suas peças proibidas pelo regime militar, Plínio quase desistiu da carreira de
dramaturgo. O interessante é observar que o teatro que ele fazia não era político
panfletário, de disputa entre pobres e ricos, mas desenvolvia, principalmente, questões
existenciais, embora não renunciasse às questões sociais. Essa perspectiva marginal era
função de sua vivência junto às camadas mais desfavorecidas da população no porto de
Santos. Dessa maneira, seus personagens não são os normalmente encontrados em
outras obras teatrais: eles são bandidos, ladrões, prostitutas, mendigos, enfim, marginais
e marginalizados de toda espécie. E ele levou tudo isso para o teatro!
Após o encerramento do regime militar, suas peças, finalmente, foram liberadas.
Nessa época, Plínio escreveu Jesus Homem e Madame Blavatsky, onde ele demonstra
seu lado espiritualista. Entre suas melhores obras estão: Barrela (1958), Dois Perdidos
Numa Noite Suja (1966), Navalha na Carne (1967), Quando as Máquinas Param
(1972), Madame Blavatsky (1985).
Plínio Marcos de Barros morreu em São Paulo, no dia 29 de novembro de 1999.

2. A PEÇA DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA

Para compor esta peça, Plínio se inspirou no conto O terror de Roma, do italiano
Alberto Moravia. São dois os personagens - Paco e Tonho - que dividem um quarto em
uma hospedaria barata e durante o dia trabalham no mercado, como carregadores. Toda
a trama se desenrola durante as noites, quando os dois voltam para seu quarto após um
dia de trabalho. Tonho é um pobre coitado interiorano que saiu de sua terra natal em
busca de melhores dias na cidade grande – neste caso, Santos, eu suponho – onde
pretende encontrar um trabalho capaz de lhe dar um pouco de dignidade. Seus pais estão
vivos e se preocupam com ele e com seu futuro. Já Paco é um mau caráter, metido a
malandro. Mas se sabe muito pouco sobre sua vida pregressa. A peça, então, é uma
sequência de diálogos – em linguagem crua, dura, refletindo fidedignamente a
empregada pelos habitantes do submundo retratado– entre esses dois marginalizados.

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Os dois, Tonho – imagina que algum dia poderá sair da miséria – e Paco – um
indivíduo maníaco, quase louco e de maldade explícita, sem perspectiva de saída da
miséria – mantém um relacionamento violento, que se demonstra num crescendo desde
o início da peça, evidenciando o lado animal deles.
Por outro lado, ambos depositam suas esperanças de sobrevivência fora do gueto
em objetos: um, num par de sapatos bons e o outro, numa flauta. Tonho vive se
lamuriando por não ter um par de sapatos decente e inveja o seu companheiro de quarto,
Paco. Este, por seu turno, provoca o outro, chamando-o de homossexual.
Em certo momento, Tonho, não conseguindo ver alternativa, incentiva e convida
Paco para efetuarem um assalto a casais de namorados no parque. Após a prática do
delito, na divisão das quinquilharias roubadas acontece uma séria desavença,
culminando com o assassinato de Paco, pelo companheiro Tonho.

3. CONTEXTO HISTÓRICO

O texto foi composto na vigência da ditadura militar (1964 – 1985) quando o


mundo ocidental via os jovens começarem a se manifestar em um movimento de
mobilização e contestação social. Os meios de comunicação começavam a se expandir
(comunicação via satélites artificiais), facilitando a disseminação das ideias do que era
conhecido como contracultura. Aqui no Brasil ocorria um processo de modernização
promovido e fiscalizado pela autoritária administração militar. A sociedade brasileira,
antes predominantemente rural, passava a se urbanizar rapidamente. Graças à vigorosa
expansão dos meios de comunicação de massa, a juventude tupiniquim tornava-se
permeável às transformações que vinham ocorrendo “lá fora” na esfera dos costumes,
dos comportamentos, dos ideários e das crenças. A contracultura sofria repressão dos
meios ditatoriais - por considerá-la “subversiva” – e também sentiu a oposição de
setores políticos e culturais de esquerda – por entender que era um processo alienante.
No Brasil, nessa época, havia um desenvolvimento sustentado por capital
estrangeiro – via empréstimos ou aplicação direta como investimento – bastante
significativo graças às estáveis condições políticas, sociais e econômicas. Tal progresso
econômico, ao tempo que projetava bons empregos para a maioria dos trabalhadores,
cobrava seu preço dos menos escolarizados, lançando-os em ocupações de baixa
remuneração, no mais das vezes em labutas braçais.

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A era da alta tecnologia – tendo em vista o esforço das duas superpotências
mundiais em explorar o espaço sideral - estava em seus primórdios, pressagiando um
futuro digno de ficção.
Nesse meio ambiente, o homem – qualquer um, bem ou mal remunerado –
estava sendo “massacrado” pelo sistema. Alguns tinham alguma compensação, outros
nada tinham.

4. COMENTÁRIOS

a. Interessante observar que nenhum dos dois personagens, embora estejam


numa situação miserável, efetua algum gesto ou demonstra alguma intenção de tentar
algum esforço para sair dessa situação. Eles apenas sonham – talvez imaginando que
alguma fada madrinha os viesse socorrer – em ter uma vida melhor, mas não tomam
nenhuma atitude concreta para mudar sua situação. Um acredita que se tivesse sua flauta
de volta tudo seria diferente. O outro deseja possuir um par de sapatos, acreditando que
com isso poderia ter um emprego melhor. Eles não conseguem enxergar alternativa.
E a situação que os envolve, absorve e limita pode ser sintetizada neste
emblemático diálogo:
TONHO
Vida desgraçada. Tem que ser sempre assim. Cada um por si e se
dane o resto. Ninguém ajuda ninguém. Se um sujeito está na
merda, não encontra um camarada pra lhe dar uma colher de
chá. E ainda aparece uns miseráveis pra pisar na cabeça da gente.
Depois, quando um cara desses se torna um sujeito estrepado,
todo mundo acha ruim. Desgraça de vida!
PACO
Poxa, mas é assim mesmo. Que é que você queria? Que alguém
fosse se virar por você? Se quiser isso, está louco. Vai acabar
batendo a cuca no poste. Poxa, você acha que eu é que vou andar
dizendo por aí que você não é bicha? Quero que você se dane! Se
não é Boneca do Negrão, vai lá e limpa sua barra.
TONHO
É assim mesmo. (Pausa) Paco, uma vez na vida você podia fazer
uma coisa decente. Podia ajudar um cara que está estrepado
mesmo.
PACO
Não dou arreglo. Mesmo que possa, não dou bandeja pra sacana
nenhum. Nunca ninguém me deu nada.
TONHO
Esse cara que te deu o sapato, não te ajudou?
PACO

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Ajudou nada. Ele deu o pisa porque queria que eu andasse
soprando flauta. Se não fosse isso, estava descalço até hoje. Você
acha que alguém dá alguma coisa de graça pra alguém? Só você
mesmo, que foi dar grana pro negrão.
(Pausa)
TONHO
Você deve ter levado uma vida desgraçada pra não acreditar
em ninguém. (os destaques são meus)
Enquanto Tonho se vitimiza, revelando não conseguir enxergar uma saída e, ao
mesmo tempo, implora por ajuda, Paco demonstra saber – e explicita isso - que essa
assistência não virá de fora, principalmente porque mostra um ressentimento enorme
por entender que nunca foi auxiliado por ninguém.

b. Outro aspecto que merece atenção é o relacionado aos símbolos, permeando


toda descrição da trama. Apenas serão citados alguns, sem maiores digressões a respeito
porque esse não é objetivo deste trabalho, com o intuito de mostrar a riqueza subjacente
no texto, seguindo-se por esta vereda.

O sapato remete ao complexo pela luta pelo poder, mas também pode indicar o
genital feminino (já que acolhe, recobre o pé, que é reconhecido como um símbolo
fálico). E, não menos atrativo, pode simbolizar a liberdade: os escravos andavam
descalços e, assim que se viam livres, procuravam logo comprar um par de sapatos! E,
ainda, pode representar nosso contato com a realidade, já que é a parte do vestuário que
encosta no chão.

A flauta é um símbolo fálico além de evocar os poderes do encantamento


hipnótico. E o revólver é um moderno símbolo fálico, podendo representar tanto a
virilidade como a impotência. Representa o poder (pela força).

Dessa forma, estaria aberto o caminho para discutir sobre a liberdade (ou
libertação) do homem. Poder-se-ia, também, discutir sobre a subjacente
homossexualidade presente na relação entre os dois companheiros de padecimento e de
quarto. E, não menos importante, por que e para que o homem nasce? Para viver uma
vida sem sentido? Para sofrer, ser humilhado, para viver isolado?

c. O texto está entremeado pelo tema da marginalidade, revelando tópicos como


a luta pela sobrevivência, a solidão, a decadência humana, a luta pelo poder, o círculo
vicioso da tortura mútua, viver vidas sem qualquer sentido, a sexualidade, o beco sem
saída da miséria, a violência, o individualismo e o narcisismo dos próprios
marginalizados, a contínua alternância entre o “bem” e o “mal”, a busca pela saída mais

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simples do caminho do crime, o desânimo, a crueldade. Enfim, desenvolve uma
temática com aspectos existenciais e sociais.

Neste trabalho, o debate será centralizado na questão da natureza, da essência do


homem: é ele bom ou mal? O que pensam as religiões a esse respeito?

5. O SER HUMANO

a. Na Peça Teatral

“Dois Perdidos numa Noite Suja” apresenta o homem em situação degradante ao


extremo, mostrando-o com seus piores defeitos. Há o orgulho e a prepotência do jovem
que não quer pedir ajuda aos pais, por achar que ele, sozinho, é capaz de conseguir sair
da conjuntura desfavorável em que se encontra. Percebe-se os dois personagens
incapazes de efetuarem uma ação positiva na tentativa de se libertarem dos grilhões aos
quais estão amarrados. A luta pelo poder faz aflorar o imenso ódio arraigado no interior
dos jovens amargurados, jogando-os em um círculo vicioso de tortura mútua,
desconfiança total e evidenciando a absoluta falta de sentido de suas vidas.

Paco encarna o próprio diabo, o mal infinito, importunando Tonho da primeira à


última cena. Tonho, aparentemente menos mal, com menos amargor, numa inversão
súbita, parece incorporar a personalidade insana do outro, assumindo suas
características sádicas. É tal a virulência dos ataques de Paco que a revolta de Tonho
parece justificada: “Se acabou, malandro. Se apagou. Foi pras picas. Por que você não ri
agora, paspalho? Por que não ri? Eu estou estourando de rir! Até danço de alegria! Eu
sou mau! Eu sou o Tonho Maluco, o Perigoso! Mau pacas!”.

O autor mostra pessoas em situação de alta degradação social e moral. São


simples carregadores de mercadorias no mercado – em Santos, o Mercado fica na zona
do cais, usualmente, local de desprovidos -, vivendo na perspectiva de conseguir algum
serviço no dia seguinte, sem qualquer vínculo de trabalho garantido, não permitindo
qualquer planejamento de futuro. Ao lado dessa condição social marginalizada, percebe-
se o baixo nível moral quando os dois se deixam levar pela tentativa de “progredir” à
custa de assaltos contra casais de namorados – “os trôxas” (sic) -, definindo que, para
eles, essa era a única alternativa disponível.

No transcorrer dos eventos mostrados na peça, é possível se perceber o “bem” e


o “mal”: Tonho é alguém criado em uma família estruturada, com conceitos éticos

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melhor definidos em termos positivos enquanto Paco aparenta desconhecer quem é seu
pai e – não necessariamente como consequência disso - seu padrão ético é,
praticamente, inexistente.

A narrativa propõe alguns temas interessantes: o homem é bom, por natureza?


Ou, a maldade é intrínseca a ele? O mal é “algo” (um ente), ou simplesmente é a
negação de “algo”?

b. Nas Religiões

As religiões, como regra geral, entendem que o homem tem uma alma.

O hinduísmo acredita que essa alma (atman) é eterna, indestrutível e faz parte de
Brahma, o Ser Supremo, isto é, tem a mesma essência que o divino. A missão dos
homens nesta terra é alcançar a liberdade (moksha) para poderem voltar para Brahma.
Esta libertação é alcançada por meio do rompimento do ciclo de existências sucessivas
(samsara), que acontece quando o homem atinge o nirvana (estado de plenitude e de
conhecimento de si mesmo e do universo). Detalhando esse processo: o homem a cada
existência, através do conjunto das suas ações (karma), constrói a sua próxima
existência; enquanto não alcançar o nirvana ele permanece nessa “roda da vida”, ou
seja, após a morte retorna para uma nova existência.

Dessa forma, se entende que o que se passa nesta vida é consequência de ações e
omissões praticadas em existências anteriores, não cabendo, portanto qualquer
lamentação sobre isso já que nada poderá mudar. O progresso que deve ser feito é
interior, pouco importando o sucesso exterior1. Essa terrível e pessimista visão da
existência humana é amenizada pela salvação proposta pelas Upanishades2: o
conhecimento da verdadeira natureza do próprio eu.

Para os budistas não há preocupação em saber se existe um Ser Supremo, já que


a vida é uma eterna sequência de eventos, sem início e sem fim. Aceitam a lei do karma,
mas a condicionam a uma doutrina da origem dependente: o karma passado pode ser a
causa da vida presente, mas isso não significa que a vida presente seja absolutamente o
resultado do karma passado. Há condições causais que precisam estar presentes, ou seja,

1
No país mais hinduísta – a Índia-, em função de a sociedade ser dividida em castas (cada pessoa nasce na casta correspondente a
seu estado espiritual), os esforços próprios não levarão o homem a ter qualquer possibilidade de progresso e ascensão social. Dessa
maneira, os miseráveis e desfavorecidos ficam sem esperança de “melhorar de vida”.
Além disso, essa divisão em castas acarreta um grande problema relacionado à solidariedade: também não existe a possibilidade de
que os mais ricos possam ajudar aos mais pobres, por sofrerem intimidação de suas castas com ameaça de expulsão (equivalente à
exclusão da sociedade).
2
Coleção de 123 livros com comentários sobre os Vedas (base das escrituras sagradas do hinduísmo). Significa: ensinamento
esotérico, ensinamento oculto (OSHO, 2014).

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mesmo tendo sido criado muito karma negativo no passado, podem ser alteradas as
condições causais por meio de esforço pessoal, havendo a possibilidade de modificar,
ou até mesmo impedir, os efeitos desse karma passado.

Em aparente contradição com a aceitação da lei do karma, o budismo defende a


não-realidade do ser. Nas palavras de USARSKI (2009, p. 27):

Fazendo parte do , todos os indivíduos são formados por


fatores existenciais temporais, inexistindo qualquer substância que não a
do sujeito do processo contínuo do devir.

Para os islâmicos, a alma não é imortal; ela é a essência da pessoa humana,


habitando e comandando um corpo, que deve ser empregado para ajudá-la a se
desenvolver e a cumprir seus deveres e responsabilidades para com Deus. O corpo não é
o cárcere da alma, mas um instrumento utilizado pela alma para seu crescimento e
evolução.

Os judeus entendem que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus,


significando que nele é inerente a possibilidade de reproduzir os atributos de Deus. E
sua missão é aperfeiçoar suas qualidades espirituais para ficar mais parecido com Deus
para poder colaborar no contínuo aperfeiçoamento e renovação da criação divina. A
alma humana é imortal e pode existir separadamente do corpo físico.

De modo similar, os cristãos creem que o homem foi criado por Deus à sua
imagem e semelhança3, com uma alma imortal e tendo por missão seu aperfeiçoamento
e a promoção de todos os homens e do homem todo4.

Esses são, em apertada síntese e olhados bem a voo de pássaro, os conceitos


básicos sobre o homem desenvolvidos e propagados por algumas das religiões presentes
em nosso meio.

6. O MAL

A questão do mal – sua existência, sua origem e sua essência – está presente há
algum tempo na mente do homem. Dentre os primeiros registros estão os relacionados
com a escola dos pitagóricos, filósofos pré-socráticos, reunidos em torno de Pitágoras.
Para eles, há no homem uma alma divina e há algo semelhante ao “pecado original” dos

3
Gn 1, 26-27
4
Papa PAULO VI, 1967

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cristãos. Assim, eles acreditavam que a alma vivia com os deuses, mas precisava expiar
seu pecado (mal cometido anteriormente) em um corpo físico. Quando este morre, a
alma se separa do corpo e vai se purificar no Hades para voltar, novamente, à Terra em
outro corpo. Dessa forma, as almas vão sendo purificadas enquanto permanecem nesse
ciclo de existências até estarem totalmente purificadas, quando, então, poderão usufruir
uma eterna vida divina. Pitágoras entendia que a purgação deveria ser realizada por
meio do saber.

Também são famosos por afirmarem que a natureza do universo é numérica e,


com base em características e relações entre números, definem que os pares representam
a alteridade e os ímpares são a identidade. A harmonia ocorre ao se achar uma medida
justa de cada um. Dessa forma, o ser humano precisa buscar o divino para, eliminando
conflitos, se salvar, ou seja, encontrar a harmonia.

Para Platão, ontologicamente o ser é impuro: o corpo é pleno de amores,


paixões, temores, imaginações de toda sorte, cheio de coisas irrelevantes. Em sua
postura dualista, ele entende que o corpo é um cárcere para a alma. E ela só se libertará
na morte, quando poderá atingir o conhecimento pleno. O mal, então, está no corpo; e
tudo o que atrapalha ou impede a alma de obter conhecimento é o mal.

Para Aristóteles o mal é a privação do bem e, no plano ético, ele o relaciona com
a ignorância. Desta maneira, o mal se reduz à mistura de imperfeição do universo e
limitação humana oriunda da ignorância e da vontade.

A contribuição de Epicuro é a contestação do divino, que vai ser considerada


paradigmática para a Teodicéia5, com seu famoso dilema: é impossível conseguir
conciliar o mal e a existência de deuses bons e poderosos6. Seu posicionamento terá
forte repercussão no monoteísmo judeu-cristão.

Entre os filósofos cristãos, Santo Agostinho aparece como figura-chave,


afirmando que, sendo o homem imagem e semelhança do Criador, ele é essencialmente
bom e capaz de amar. E sua interpretação é uma resposta à gnose e ao maniqueísmo.
Para ele, o mal é a privação do bem, e defende a importância do mal histórico e a

5
Teodiceia provém do grego θεός - theós, "Deus" e δίκη - díkē, "justiça", que significa, literalmente, "justiça de Deus". Teoria que
busca justificar a existência de Deus a partir da discussão do problema da existência do mal e de sua relação com a bondade de
Deus.
6
Ou Deus quer tirar o mal do mundo, mas não pode; ou pode, mas não o quer tirar; ou não pode nem quer; ou pode e quer. Se quer e
não pode, é impotente; se pode e não quer, não nos ama; se não quer nem pode, não é o Deus bom e, além disso, é impotente; se
pode e quer – e isto é o mais seguro -, então de onde vem o mal real e por que não o elimina?

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desorientação da liberdade humana como produtora do mal. Ele chega a entender que
Deus - o ser onipotente, onisciente, onipresente - havia criado a matéria, e esta havia se
corrompido. Ele ilustra sua tese de que o homem é naturalmente mal, descrevendo uma
situação em que um homem furta peras e demonstrando que isso só ocorreu por simples
astúcia, já que nada havia nas frutas que pudessem justificar tal ato.

Para Agostinho o bem é o único princípio existente, sendo que sua suprema
perfeição está em Deus, o Sumo Bem.

… o mal é a privação ou defecção do bem, das perfeições constitutivas de toda


e qualquer natureza, é a ausência de ser (…) Agostinho instaura o Bem como único
princípio existente – Deus – e o mal como sua simples negação. Em outras palavras, o
mal, na concepção agostiniana, não tem existência ontológica, não é, portanto, um
princípio de força antagonicamente equiparada ao bem… (COUTINHO, 2010)

Na liberdade do homem reside a natureza do mal: ele se corrompe, inclinando-se


para o mal na medida em que se afasta do bem, ou seja, de Deus. O mal, por
conseguinte, não existe por si só; ele está intimamente ligado à liberdade do ser
humano, que cria o mal quando se afasta do bem.

Já para outro filósofo cristão, São Tomás de Aquino, o mal seria apenas e tão
somente a ausência do bem, ou seja, ausência de Deus. Immanuel Kant considera que a
natureza do ser humano tem uma propensão para o mal, apesar de ter uma tendência
original para o bem. Hannah Arendt redefine a tese do mal radical
kantiano, politizando-o. Ela se preocupa com o mal quando este atinge grupos sociais
ou o próprio Estado e, segundo ela, o mal não é uma categoria ontológica, não
é natureza, nem metafísica. O mal é político e histórico: é produzido por homens e se
manifesta apenas onde o sistema oprime.

Segundo Rousseau, o homem nasce bom e a sociedade o vicia. Já para Hobbes, o


homem é, desde o início, mau, perverso e egoísta.

Na filosofia da religião, o problema do mal é uma pendência sobre como


conciliar a existência do mal com o de um Ser Supremo, Divino que é - tanto em termos
absolutos quanto relativos - onipotente, onisciente, onipresente
e benevolente. Relembrando o dilema de Epicuro, um "argumento do mal" procura
mostrar que a coexistência do mal e tal divindade é improvável ou impossível se
colocado em termos absolutos. As tentativas de demonstrar o contrário tradicionalmente
têm sido discutidas sob o título de teodiceia.

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O mal pode ser encarado como problema filosófico ou como problema religioso.
Na filosofia se costuma apresentá-lo como mal metafísico, mal físico, mal moral. A
religião por outro lado, e sem negar a razão, também se envolve com questões
existenciais, buscando atingir outros campos. Na revelação bíblica, a polêmica sobre o
tema do mal envolve a questão soteriológica, a despeito da improvável coexistência do
Deus bíblico com o mal. Entre a filosofia e a religião está a teodiceia com sua dupla
função: conciliar a existência de Deus com a do mal e defender a existência de Deus
contra aqueles que a consideram em contradição com a existência do mal.

Schelling entende que o mal está na liberdade do homem, mas de forma


diferente de Agostinho. Ele assegura que o homem possui duas vontades contraditórias,
mas em equilíbrio: a “própria” (=egoísmo) e a “universal” (=amor). O homem tem o
poder, a capacidade e o livre arbítrio de inverter a relação entre esses princípios. E é
justamente essa efetivação da vontade própria que é a essência do mal, sendo essa a
causa do “pecado original”. Ou seja, o homem, tendo a oportunidade de escolher entre o
bem e o mal, escolheu o mal, provocando uma inversão de princípios em sua natureza.7

Segundo Paul Ricoeur, a natureza do mal está na liberdade do homem. O mal se


torna existente a partir da prática do homem que o cria a partir de atitudes eticamente
corrompidas. Portanto liberdade e mal são dois termos que se implicam mutuamente,
sendo que o mal só passa a existir a partir da ação do homem fundada em sua liberdade.

De fato, o mal é cometido, mas também é sofrido, sentido. Ainda que o ser
humano não esteja na origem do mal, a verdade é que é quem o pratica; o mal se
manifesta nos seus atos existenciais e, por isso mesmo, o mal é obra da sua liberdade;
confessá-lo implica assumir-se como sujeito ou como objeto do mal; consequentemente,
a confissão do mal é um pressuposto fundamental da consciência da liberdade.
(TAVARES, 2006)

Portanto, o mal não existe, nem preexiste, pelo menos por si só. Sua existência
está ligada a ação do homem enquanto ser livre que, na sua liberdade, se afasta do bem,
conforme Agostinho ou age de maneira eticamente corrompida, conforme Ricoeur,
gerando o mal.

Por definição, "bem" e "mal" são absolutos porque qualquer enunciado moral é
válido, independentemente de quem o faz, e independentemente de qualquer objeto ao

7
PUENTE, 1997, pp. 68 - 72

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qual o enunciado se refira. A justiça, o direito, a moral, o bem, são valores absolutos, os
quais deveriam reger a vida de qualquer ser humano.

Muitas religiões e tradições filosóficas concordam que o comportamento


malicioso cheio de perfídia é, em si mesmo, uma anormalidade que resulta da condição
humana imperfeita. Por vezes, o mal é atribuído à existência do livre-arbítrio. Alguns
argumentam que o mal em si baseia-se finalmente na ignorância da verdade.

7. CONCLUSÃO

Como bem se pode observar, não existe consenso – nem entre os filósofos, nem
entre os teólogos e nem entre as religiões - se o bem ou o mal são intrínsecos à natureza
humana. Há argumentos consistentes para suportar as duas hipóteses.

Interessante observar que, caso se adote a tese da intrínseca natureza


antropológica do mal, se está absolvendo Deus de qualquer “culpa”.

Cabe aqui uma rápida referência a dois experimentos conduzidos por psicólogos:

1. O experimento da Prisão de Stanford foi conduzido pelo Prof. Philip


Zimbardo em 1971, envolvendo voluntários – entre alunos da Universidade - que
concordaram em participar nos papéis de “guarda” ou de “prisioneiro”. Como resultado,
o professor verificou um aumento da imposição de castigos, penas, humilhações e
agressões por parte dos “guardas” em seus colegas “prisioneiros”.

2. A experiência de Milgram – realizada em 1961 - tinha por objetivo verificar


como os voluntários respondiam a ordens de uma “autoridade”, mesmo que fossem
causar algum dano a outrem. Os voluntários – homens entre 20 e 50 anos – deveriam
testar um indivíduo – “aluno”, ator contratado pelo psicólogo – e, sempre que o “aluno”
errasse uma questão, deveriam aplicar um choque elétrico, variando entre 15 volts e 450
volts. O “aluno” ficava em uma sala, juntamente com um “pesquisador”. O voluntário
estava em outra sala, separada por vidros. O “aluno” estava ligado a fios elétricos; o
voluntário tinha em sua mesa, além das perguntas, um gerador de choque elétrico. O
“aluno” errava de forma proposital muitas perguntas, e levava choque. Como resultado,
o prof. Milgram verificou que 65% dos voluntários continuou a aplicar choque elétrico
até o valor máximo (450 volts)! E todos (100% !!!!) chegaram até 300 volts.

Esses experimentos, embora tenham sido elaborados, projetados e conduzidos


com objetivos diversos, podem nos ajudar a decifrar a origem e a natureza do mal.

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8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. Nova edição rev. e ampl. 7ª reimpressão.


São Paulo: Paulus, 2011.
CASSIRER, Ernst. Antropologia filosófica. 3a ed. México: Fondo de Cultura
Económica, 2016.
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