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23/03/2019 Eu não sou uma vagabunda, pai

Eu não sou uma vagabunda, pai


Oi pai, eu queria te contar, por escrito, o que não tenho coragem de contar
pessoalmente.

Por Ana Carolina Faria Bortolo - 20 abr 2018

Oi pai, eu queria te contar, por escrito, o que não tenho coragem de contar
pessoalmente.

Eu me lembro de quando eu nasci e você me carregou no colo, tão gentil e carinhoso,


e fez tudo por mim. Dou valor à cada centavo gasto com a minha educação, que foi
acima da média pro meu aprendizado e que requisitou, com certeza, muitos anos do
seu esforço extra para completar as contas.

Eu te agradeço por sempre ajudar a gente (eu e meu irmão) com seu exemplo de
garra, determinação, caráter e honestidade. Contigo aprendemos que é possível
vencer, com muito suor e dedicação, mas também com transparência.

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23/03/2019 Eu não sou uma vagabunda, pai

Mas sabe, pai, seus rótulos me magoam muito. Você se lembra quando eu tinha
quinze anos lá na casa da praia, eu te pedi dinheiro para ir ao Mcdonald’s com meus
amigos, e você gritou na frente de todos eles que eu era gorda demais para ir comer
um lanche? Eu me lembro, pai, eu ainda me lembro. Por causa desse dia, perdi 40
quilos e virei uma das mulheres mais bonitas que existe por ai. Obrigada por ter me
empurrado pra minha maior mudança pessoal e para o descobrimento da minha força
de vontade.

Você se lembra, pai, de quando eu trabalhava de madrugada no aeroporto e a Varig


faliu? Eu fazia horas extras em cima de horas extras tentando re-acomodar todos
aqueles passageiros e, quando chegava em casa depois das 04 da manhã, você me
dizia que aquilo não era hora de mulher decente chegar em casa, mesmo que fosse
do trabalho. Eu pedi as contas daquele emprego pouco depois, porque seu olhar de
reprovação me dizia que eu estava fazendo algo errado. Logo depois, consegui uma
vaga que mudaria minha vida para sempre. Obrigada por ter me feito sair do primeiro
trabalho que amei para encontrar o primeiro emprego que realmente me qualificaria
em minha vida profissional.

E quando eu me separei, pai… Nossa, que dia duro! Eu coloquei minhas malas no
carro e vim bater aqui na porta. O senhor abriu, me viu tirando as roupas do porta-
malas e me perguntou o que eu tinha feito. Eu disse que queria ser feliz e que meu
casamento não respondia aos meus anseios. Dormi no sofá aquela noite, e não no
meu antigo quarto, porque o senhor pediu. No dia seguinte, quando abri a porta da
sala e o cachorro latiu, ouvi o senhor dizer “Você não vai dar certo aqui em casa,
acho melhor procurar outra coisa”. Eu parei um segundo a mais processando aquela
negativa. Eu queria não ter entendido direito, mas quando mais precisei de colo, o
senhor me mandou embora. Eu voltei pro meu marido aquele dia, expliquei a
situação que ele já conhecia, e ele me deixou ficar na nossa casa mais uns dias até
que eu pudesse alugar meu próprio apartamento. No dia da mudança, meu marido
me ajudou a colocar as coisas no carro e ele foi o único que teve o meu novo
endereço, porque o senhor nunca nem me perguntou. Obrigada, pai, por ter me
obrigado a viver a minha independência financeira, da qual nunca mais sai.

Você se lembra quando armaram pra mim e me demitiram do emprego que era a
minha vida? Eu decidi ir pro navio e o senhor não disse nada, ficou feliz por eu ter
saído daquele emprego em festas de madrugada, ou aquele “emprego de
vagabundo”, nas suas palavras. Quando podia ter visita no porto, era sempre a
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mamãe que ia, porque você não precisava nem me ver e nem acompanhá-la. Você foi
apenas no meu último porto brasileiro, mas não chorou ao se despedir de mim. Me
desejou boa sorte e me deu as costas. Obrigada por ter ido, de qualquer forma, fiquei
feliz em vê-lo e em receber seu abraço segundos antes de me despedir do meu país.

E teve aquele dia que eu quis ir no banco, no meio do verão, de camiseta e shorts, e
você me viu saindo pela porta, não sem antes perguntar “Onde você vai vestida
assim?”. Com fúria nos olhos, respondi o nome do banco e tive que ouvir “Isso é jeito
de mulher se vestir, por acaso?”. Eu fui do mesmo jeito, vestida do mesmo jeito, e fui
atendida como todos os outros. Mas obrigada pela sua opinião sobre mim e sobre
todas as mulheres.

Eu vi muita coisa da vida, sabe, pai. Vi muitos lugares, conversei com muitas
pessoas, fui generosa e honesta como o senhor nos ensinou e, graças à Deus,
também recebi muito em troca. Há lugares onde não nos julgam por sermos
divorciadas, desempregadas, gordas, magras, loiras, por estarmos de vestido ou
simplesmente por sairmos para nos divertir. Há pessoas que não nos colocam na
parede por nada disso, porque uma ofensa que vem da boca de alguém que nós
amamos tem um peso muito grande, infelizmente.

Eu não tenho culpa de ter nascido em uma família com um pai machista, que fala o
que quer, e que faz o que quer, sem se importar com os outros. Um pai que lava a
louça e cozinha, mas é incapaz de dar uma carona até o bairro vizinho porque “não
quer pegar trânsito e de metrô é mais rápido”. Sou grata pela educação, pela casa,
pela comida, pelos instantes de felicidade. E sou imensamente feliz por ter uma
personalidade que você chama de forte e durona, mas que eu prefiro chamar de
íntegra.

Eu recebi todas as suas pedras durante a vida. Não sei quais delas eu mereci ou não.
Mas graças a todos os seus desafetos eu sempre fui adiante e comecei a construir o
meu castelo. E sempre pude discernir quais dos seus exemplos eu poderia seguir, e
quais dos seus defeitos eu deveria aprender e superar. Eu queria ter mais coragem de
bater boca contigo e mostrar que existem outras opiniões, mas você não me ouviria.
Ia fazer que nem faz com a mamãe: você fala e ela escuta, mas quando ela vai falar,
você diz que não tem tempo ou não é importante, e sai batendo porta em direção à
tv. Quando chega na sala, ainda grita “Hey, alguém traz a minha cerveja!”.

Partiram meu coração, sabe pai, e tá doendo de verdade. Eu queria ficar em casa um
tempo, dormindo na cama que me pertenceu na infância, e deixar que a cicatrização
começasse antes que eu pudesse seguir adiante. Só que ai você vem até o meu
quarto, me vê chorando e diz que sou burra e estúpida, que eu deveria seguir com a
minha vida e deixar isso pra lá. Tenho 32 anos, pai, eu sei que preciso seguir.
Infelizmente, sei também que terei que me curar e me encontrar bem longe de casa
porque, apesar de ser filha, eu nem sempre senti que tive um pai.

Imagem de capa: Eleonora Grunge/shutterstock


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Ana Carolina Faria Bortolo


Turismóloga e Administradora de Novos Negócios por formação. Escritora, pintora e dançarina por vocação.
Planejadora de eventos, bartender, agente de viagens e vendedora por profissão. Garçonete de navio por
opção. Vi o mundo e voltei, e de todos os rótulos que carrego na bagagem, só um me define bem: sou
uma ótima contadora de histórias.

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