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Cultura, cultura popular e mediação: as “lições”

de Raymond Williams e E. P. Thompson acerca


do estudo das práticas culturais

Johnisson Xavier Silva1

Resumo: Este texto intenta criar algumas reflexões sobre o conceito cultura e cultura
popular, mediação e seus métodos de estudos históricos, estabelecido nas obras dos inte-
lectuais E. P. Thompson e Raymond Williams. Tem como base para tais reflexões os textos
Folclore, antropologia e história social, publicado no livro As peculiaridades dos ingleses
e outros artigos do historiador Thompson e Marxismo e literatura e Palavras-Chave: um
vocabulário de cultura e sociedade, de Raymond Willians. Adota ainda como ponto de
partida para tais reflexões, as relações da temática estabelecida pelos referidos autores
com as pesquisas que desenvolvemos. E, essa, busca analisar os sentidos das produções e
práticas culturais dos povos ribeirinhos através das danças e cantos com raízes folclóricas
e religiosas, desenvolvidos na cidade de Januária – MG, na segunda metade do século XX.
Palavras-chave: E. P. Thompson. Raymond Williams. Cultura. Cultura popular. Mediação.

Abstrac: This text aims to create some reflections about concept culture and popular cul-
ture, mediation and its methods of historical studies, established in the works of intellec-
tuals E. P. Thompson and Raymond Williams. Its basis for such reflections texts, Folklore,
anthropology and social history, published in the book, The peculiarities of the English
and other items historian Thompson, Marxism and literature and Keywords: A Vocabu-
lary of Culture and Society, Raymond Williams. Also adopts as a starting point for these
considerations, the relations of the theme established by the authors to the research we
have developed. That seeks to analyze the meanings of cultural productions and practices
of coastal peoples through dances and songs with folk and religious roots, developed in the
city of Januária - MG in the second half of the twentieth century.
keywords: E. P. Thompson. Raymond Williams. Culture. Popular culture. Mediation.

1
Aluno de pós-graduação do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal de
Uberlândia (Mestrado), sob a orientação do Prof. Dr. Florisvaldo Paulo Ribeiro Junior.

Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.26, n.2, jul./dez. 2013 299


Sobre os riscos e dificuldades de se tumes em comum”, ao tratar do costume
estudar a cultura popular alerta para o perigo das generalizações,
pois o termo cultura e os confortáveis
No livro Palavras-chave: um voca- consensos que giram em torno do con-
bulário de cultura e sociedade, Williams ceito podem: “distrair nossa atenção das
diz que “cultura é considerada uma das contradições sociais e culturais, das fra-
duas ou três palavras mais complicadas turas e oposições existentes dentro do
da língua inglesa” . Usado para designar
2
conjunto3.” Thompson diz ainda que a
formas de sentidos, de cultivo (plantio)
de produção intelectual e posteriormente Cultura é um termo emaranhado, que,
material, o conceito de Cultura é por si ao reunir tantas atividades e atributos
em um só feixe, pode na verdade con-
só um conceito de difícil definição, pos-
fundir ou ocultar distinções que preci-
to que abarque em si uma infinidade de sam ser feitas. Será necessário desfazer
possibilidades de estudos. Ao definirmos o feixe e examinar com cuidado os seus
diretrizes para o que chamamos de “cul- componentes: ritos, modos simbólicos,
tura” corremos o risco de “trancafiar- os atributos culturais da hegemonia, a
mos” em uma mesma definição práticas transmissão do costume de geração para
geração e o desenvolvimento do costu-
com sentidos divergentes, ou universali-
me sob formas históricas específicas das
zarmos uma definição que cabe apenas a relações sociais e de trabalho4.
algumas práticas ou a alguns conceitos.
Quando tratamos de Cultura popu- Williams, por sua vez em Marxismo
lar a complexidade do conceito aumenta e literatura, nos alerta:
em progressões geométricas, ora, quem
define o que é popular? Ou ainda, será No centro mesmo de uma importante
que o que definimos como popular cor- área do pensamento e prática moder-
responde ao que as camadas populares nos, que ele habitualmente descreve, há
definem a si mesmas? Essas são pergun- um conceito, “cultura”, que em si mes-
mo, através de variações e complicação,
tas de difícil solução, não pretendemos
incorpora não só as questões, mas tam-
respondê-las aqui, pois não é esse o obje- bém as contradições através das quais se
tivo desse trabalho, elas servem-nos, no desenvolveu. Esse conceito funde e con-
entanto, para percebemos as dificulda- funde as experiências e tendências radi-
des presentes nos estudos históricos que calmente diferentes de sua formação.5
têm como objeto as práticas culturais,
alertando-nos quanto as facilidades do
3
THOMPSON, E. P. Costumes em comum; estudos
senso comum.
sobre a cultura popular tradicional. São Paulo:
Thompson, na introdução de “Cos- Cia. das Letras, 1998, p. 17.
4
THOMPSON, E. P. Costumes em comum; estudos
sobre a cultura popular tradicional. São Paulo:
2
WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um Cia. das Letras, 1998, p. 22.
vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: 5
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura.
Boitempo, 2007, p. 117. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p.16.

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De acordo com Thompsom e Willia- acima. Para não incorrermos nas arma-
ms, o conceito de cultura e os estudos dilhas e generalizações que comumente
referentes à temática são permeados por atraem os estudiosos da cultura, apon-
armadilhas e a constante possibilidade tamos abaixo, de modo sucinto, algumas
de cair em generalizações e erros. Se- propostas teórico-metodológicas dos au-
gundo Williams, é impossível construir tores mencionados.
uma análise cultural séria sem chegar à
consciência do conceito. Sem o amadu- Raymond Williams (1921-1998)
recimento dos sentidos que permeia os
estudos culturais corremos o risco de cair Williams, logo na primeira frase do
em repetições apologéticas. Cultura é um livro “Marxismo e literatura” escreveu:
termo que foi cunhado historicamente e “este livro é escrito numa época de trans-
filosoficamente e é atravessado por con- formação radical. Seu assunto, marxismo
flitos políticos, portanto, tem também e literatura, é parte dessa transformação”6
sua materialidade, sua historicidade. Williams se refere às últimas décadas da
Apesar de todas essas dificulda- primeira metade do século XX, período
des, não há como, no entanto, fugirmos decorrente do fim das grandes guerras e
da utilização dos conceitos, posto que a de mudanças políticas e culturais signi-
cultura permeie quase todos os âmbitos ficativas. Foi através dessas mudanças
das vivências sociais, temos então duas significativas que Williams percebeu a im-
opções: restringirmos nossos estudos à portância de renovar as abordagens dos es-
repetição apologética, ou adquirirmos tudos marxistas e da preponderância que
uma consciência do conceito. as produções culturais passaram a exercer
O conceito, apesar de suas armadi- nas mudanças sociais do período, o dina-
lhas nos permite uma variedade de re- mismo dessa nova sociedade de massa,
cursos para a análise das práticas popu- parecia estar registrado nas mudanças de
lares e sociais, permite a possibilidade de sentidos da palavra cultura.
darmos notoriedade aos agentes sócias, Preocupado principalmente com a
autônomos e criadores de pensamento criação e afirmação de uma teoria literária
e atitudes que foram relegados ao ano- marxista, Williams principiou seus estu-
nimato, nos possibilita ainda pensar os dos a partir dos conceitos da teoria cultural
conflitos sociais, os sentidos das vivên- marxista, analisando como a palavra cultu-
cias permeados por suas manifestações, ra era entendida em sua época. Entretanto,
como por exemplo, as festas religiosas. reelaborou o conceito afirmando ser não
As formas históricas de determina- um marxista, mas sim um teórico do ma-
das relações sociais em que são constru- terialismo cultural que, segundo Williams,
ídas, transformadas e herdadas as práti-
cas culturais e religiosas são, pois, nosso
6
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura.
objeto de estudo, como já apontamos Rio de Janeiro: Zahar, p. 7.

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era “uma teoria das especificidades da pro- Segundo Williams, a mudança im-
dução cultural e literária material, dentro portante no uso do termo cultura foi
do materialismo histórico”7. desenvolvida por Herder: “Argumenta-
Williams percebeu que a palavra va (Herder) que era necessário, no que
cultura, bem como outras palavras, como consistia uma inovação decisiva, falar de
democracia, classe, arte e indústria, “assu- ‘culturas’ no plural: culturas específicas e
miam na língua não apenas uma forma in- variáveis dos grupos sociais e econômi-
telectual, mas histórica” . Williams recons-
8
cos no interior de uma nação.”10
titui em “Palavras-chave” o sentido que as A variedade e complexidade dos
palavras adquiriram ao longo do tempo, no sentidos que adquiriu a palavra cultura
intuito de questionar a noção de que as pa- historicamente ainda não foram apreen-
lavras têm um sentido em si mesmas, para didos. Entretanto, Williams aponta que,
Williams, a construção dos significados ao menos, três categorias ainda são pre-
é feita através dos conflitos sociais, arrai- sentes no uso do conceito:
gados nas vivências e demandas políticas
culturais de cada período histórico. i) o substantivo independente e abstrato
que descreve um processo de desenvol-
De acordo com Williams, o conceito
vimento intelectual, espiritual e estético
de cultura que tem hoje uma variedade
a partir do S18; ii) o substantivo inde-
de sentidos e é usado nas mais diversas pendente, quer seja usado de modo geral
línguas, tem uma origem recente. Mes- ou específico, indicando um modo parti-
mo que a palavra cultura seja usada há cular de vida, quer seja de um povo, um
um período bastante extenso (um dos período, um grupo ou da humanidade
em geral, desde Herder be Klemm; iii)
primeiros usos da palavra cultura remete
o substantivo independente e abstrato
ao cultivo e à agricultura, como já men-
que descreve as obras e as práticas da
cionamos), os seus sentidos foram alte- atividade intelectual e, particularmente
rados ao longo do tempo. As últimas dé- artística. Com freqüência esse parece ser
cadas do século XVII são apontadas por o mais difundido: cultura é música, lite-
Williams como um momento decisivo na ratura, pintura, escultura, teatro e cine-
ma (...) uso relativamente tardio.11
mudança de sentido desse termo: “cultu-
ra como processo abstrato ou produto de
tal processo – só passou a ser importante A noção que temos de cultura nos dias

no final do século XVII e não é comum atuais surgiu, portanto no século XVII, as

antes de meados do século XIX.” 9 derivações, adjetivações e multiplicidade


de sentidos do termo só foram possíveis
7
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura.
Rio de Janeiro: Zahar, p. 11.
8
WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um 10
WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um
vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo:
Boitempo, 2007, p. 30. Boitempo, 2007, p. 120.
9
WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um 11
WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um
vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo:
Boitempo, 2007, p. 119. Boitempo, 2007, p. 121.

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após as mudanças que o termo adquiriu no cultural, ao mesmo tempo propõe a supe-
referido período. A palavra cultura foi ini- ração do marxismo ortodoxo.
cialmente difundida através do movimen- Outra importante contribuição do au-
to romântico, que dava ênfase às culturas tor é a noção de mediação, para Williams:
nacionais e tradicionais, incluindo a noção
de cultura popular. Posteriormente cultu- todas as relações ativas entre diferen-
tes tipos de ser e consciência são antes
ra passou a diferenciar o desenvolvimento
inevitavelmente mediadas, esse pro-
“humano” do “material”. Essas caracteri-
cesso não é uma agência separável- um
zações da palavra foram feitas no interior “meio”- mas intrínseco às propriedades
da ideologia imperialista que distinguia dos tipos correlatos. A mediação está no
cultura de civilização. objeto em si, não em alguma coisa entre
A principal contribuição de Williams o objeto e aquilo que é levado. 13

em relação aos desdobramentos do termo


se dá na medida em que cria uma teoria e As produções culturais são, por-
uma análise prática do conceito calcadas tanto, mediadas. A arte e outros produ-
no pensamento marxista e de um ponto tos culturais não são, nessa perspecti-
de vista de esquerda. Para Williams, in- va, meros reflexos sociais. Para melhor
fluenciado por Gramisc a manutenção de entendermos o conceito de mediação
hegemonia era feita não apenas através do utilizamos aqui um exemplo dado por
poder, mas também era feita por meio das outro autor, Jesús Martin-Barbero. No
produções culturais; livro “Dos meios às mediações: comu-
nicação cultura e hegemonia”, ao tratar
a dominação essencial de determina- da literatura de cordel Martin-Barbero
da classe na sociedade mantém-se não nós dá um exemplo de como as práticas
somente, ainda que certamente se for culturais populares podem ser mediadas:
necessário, pelo poder, e não apenas,
“Mas não é só meio a literatura de cordel
ainda que sempre, pela propriedade. Ela
também se mantém, inevitavelmente é mediação, por sua linguagem que não é
pela cultura do vivido.12 alta nem baixa, mas a mistura das duas.
Mistura de linguagens e religiosidades.
Uma concepção da cultura na qual É nisso que reside a blasfêmia. Estamos
não há separação entre o vivido e os seus diante de outra literatura”14.
aspectos materiais e históricos, é, pois, de A literatura de cordel não é, segundo
suma importância, segundo Williams, para Martin-Barbero, apenas um reflexo da lite-
instituir a cultura como modo de crítica à ratura dita erudita, mas é a criação de uma
vida social. Partindo desses pressupostos nova linguagem. A mediação ocorre do
o autor funda o conceito de materialismo
13
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura.
Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 102.
12
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. 14
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura.
Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 397. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 102.

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mesmo modo como demonstramos com A religiosidade popular, os folguedos
a literatura de cordel, com outras práticas e folias são tratados por Joaquim Ribeiro
culturais populares e se apresenta como como lúdico rústico e simples, de maneira
um meio em que as classes populares pre- quase romântica, como algo folclórico que
enchem o vazio deixado pelos aparelhos difere do oficial e permite a promiscui-
tradicionais na construção do sentido da dade. Se analisarmos as festas populares
vida. Nesse sentido, a oralidade, que não é segundo a ótica de Williams poderíamos
antônimo de alfabetização, a repetição, são dizer que as festas religiosas populares,
um dos vários mecanismos no qual a cultu- não são oficiais, portanto destituídas das
ra popular se expressa, é mediada. ortodoxias dos rituais católicos oficiais,
Tendo apresentado de modo sucinto nem inferiores, nem promíscuas, mas são
as propostas teóricas do autor é necessário a linguagem em que o sentido da fé popu-
relacionarmos com o tema da pesquisa que lar é vinculada, portanto, não está entre
desenvolvemos. A primeira contribuição o oficial e o normativo, nem é promíscua,
de Williams aos estudos das festas religio- mas como argumenta Carlos Rodrigues
sas que podemos destacar é em relação à Brandão: a festa é uma fala, uma memória
dicotomia estabelecida entre religião ofi- e uma mensagem,16dotada de linguagem e
cial e popular, comumente a religiosidade características próprias.
popular foi tida como inferior, lugar onde o Outra possível interpretação das fes-
profano e o sagrado se misturam. O antro- tas populares segundo os pressupostos
pólogo Joaquim Ribeiro, no livro Folclore teóricos desenvolvidos por Williams é que
de Januária, ao registrar as apresentações as práticas populares, assim como as festas
do Terno dos temerosos disse: religiosas foram tidas como não passíveis
de mudanças, folclorizadas, representa-
É sabido que em torno da profunda ma- vam a tradição fixa e imutável, eram apre-
nifestação de misticismo (...) observam- sentadas ainda como símbolo da identi-
-se nesses dois núcleos curiosos e diver-
dade de um povo, como um espelho onde
tidos folguedos. É o que se pode chamar
de misticismo lúdico, tão comum no in-
toda religiosidade popular se expressa.
terior do Brasil. Orações e danças se mis- Williams nos alerta quanto ao fato de que
turam. Hóstia e cachaça se entremeiam. as práticas culturais populares são cons-
Unção religiosa e folguedos se ajustam tituídas e constituidoras do social, por-
sem atritos, (...) a fé dos romeiros não os tanto, são atravessadas por conflitos. São
isenta de bebedeira e estripulias. A pro-
passíveis de mudanças, re-significações,
miscuidade nesses instantes de intensa
aglomeração facilita esse abastardamen-
usadas como mecanismos pedagógicos da
to da religiosidade dos sertanejos.15 hegemonia de algumas classes, ou grupos
políticos. Estão inseridas em demandas

15
RIBEIRO, Joaquim. Folclore de Januária. Belo
Horizonte: Ed. Levínio da Cunha Castilho, 2001, 16
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Cultura na rua.
p. 104. São Paulo: Papirus Editora, 1989, p. 25.

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políticas, sociais e são permeadas e trans- Uma das mais enfáticas críticas de
formadas através de todos esses fatores. Thompson se dá quanto ao uso irrefletido
dos textos marxistas, segundo o autor os
E. P. Thompson (1924-1993) historiadores precisam estabelecer uma
autocrítica, enfatiza que para os historia-
A trajetória intelectual de E. P. dores estabelecerem um diálogo com a an-
Thompson possui convergências bastan- tropologia é preciso entender que
te notáveis com a de Raymond Williams.
Embora partissem de objetos de estudos A idéia de ser possível descrever um modo
de produção em termos econômicos pon-
diferenciados, os dois autores se empe-
do de lado, como secundários, (menos
nharam em repensar o chamado mar-
“reais”), as normas, a cultura, os decisivos
xismo ortodoxo e preocuparam-se em conceitos dos quais se organiza um modo
criar novas abordagens para os estudos de produção. Uma divisão teórica arbitrá-
culturais. Refiro-me, claro, à criação do ria como essa, de uma base econômica e
grupo de intelectuais de diversas áreas uma superestrutura cultural, pode ser
feita na cabeça e bem pode assentar-se no
que na década de sessenta do século XX
papel durante alguns momentos. Mas não
fundaram o que se denominou de nova
passa de uma idéia na cabeça.17
esquerda e de estudos culturais.
Thompson se preocupou em estu-
O historiador, entretanto, aponta
dar a vida, cultura e costumes dos tra-
ressalvas quanto à absorção das metodo-
balhadores, tendo cunhado conceitos de
logias e teorias desenvolvidas pelos antro-
suma importância para a historiografia,
pólogos. O diálogo com a antropologia, de
como por exemplo, o conceito de Expe-
acordo com o autor, deve ser feito não para
riência e Economia moral, dentre outros.
absorver acriticamente “modelos”, mas
Daremos ênfase, nesse trabalho,
deve servir como estímulo para encontrar
ao artigo intitulado Folclore, antropolo-
novos problemas e novas formas de pensar
gia e história social, publicado no livro
a história e as práticas culturais.
As peculiaridades dos ingleses e outros
Outro ponto importante destacado
artigos. O texto nos dá uma relevante
por Thompson é utilização do material
contribuição para a construção de uma
folclórico, relegado a segundo plano pe-
metodologia que relacione a história com
los historiadores, os estudos folclóricos
outras áreas das ciências sociais; o folclo-
muitas vezes partiam da premissa que as
re, a antropologia, a filosofia e a sociolo-
danças, os cantos, as festas, os costumes se
gia. Sintetiza ainda as idéias fundantes
tratavam apenas de sobrevivências, inertes
do autor em relação à cultura e mostra
no passado e desprovidos de dinamismos.
ao mesmo tempo a diversidade da pes-
quisa histórica, com temas referentes à
cultura, realizada principalmente na In- 17
THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses
e outros artigos. Campinas: Ed. Unicamp, 2001,
glaterra, entre 1960 e 1977. p. 255.

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Thompson nos alerta que o mate- dológicos recorremos a modelos pré-es-
rial criado por esses estudos folclóricos tabelecidos de análises, importando-os
é de suma importância para entender as sem a devida crítica e contextualização.
práticas culturais, as normas, os rituais, Thompson nos orienta que é de suma
mas só podem ser interpretados quando importância o diálogo com antropologia,
as fontes deixam de ser vistas como uma mas ela nos deve servir como amparo na
sobrevivência e são inseridas no seu lu- construção de novas perguntas, novas
gar histórico, seu contexto. É, pois, ne- formas de análise, tendo em vista sempre
cessário reexaminar as fontes folclóricas, os processos históricos em que as festas e
fazendo novas perguntas, levantando no- outras práticas culturais se apresentam.
vos problemas. Essas festas são registradas por
Ao levantarmos novos problemas, viajantes, memorialistas, folcloristas,
ao darmos atenção aos novos autores jornais, panfletos etc., esse registros que
sociais, “à medida que alguns autores atentam para o exótico entendem a festa
principais da história- políticos, pensa- como uma tradição, um fragmento fol-
dores, empresários, generais- retiram- clórico. É, em muitas situações, as úni-
-se da nossa atenção, um imenso suporte cas fontes que podemos ter sobre deter-
de, que supúnhamos se compostos de minado terno, ou festa religiosa. O que
simples figurantes, força a entrada em podemos apreender das propostas de
cena.” O atípico, os “agentes ordinários
18
Thompson é que, longe de ser um mate-
da cultura”, nos dão uma gama de ferra- rial descartável, apresenta-se como uma
mentas por onde podemos abrir janelas, rica fonte de estudos, desde que analise-
frestas que possibilitam o estudo de uma mos esse material folclórico com novas
prática, um rito, uma sociedade em de- perguntas, dotado de curiosidades para o
terminados períodos históricos. atípico, para as frestas que podemos en-
Um dos problemas metodológi- contrar nos registros folclóricos.
cos em se construir um estudo histórico Uma prática cultural, uma folia,
das festas populares são as dificuldades a religiosidade popular dificilmente se
que os historiadores têm em analisar os apresenta de forma hermética, fechada
sentidos das variadas formas de expres- em si mesma, mas é sempre construída
sões artísticas. É comum nessas festas a por meio de relações, de maneira plural,
dança, o teatro, a música, isso tudo per- emaranhada em um feixe. Se olharmos
meado por uma rica manifestação da fé, de longe, desatentos aos nós e elos que
pincelado com aspectos da vida social, unem esse feixe facilmente daremos ca-
do trabalho e das vivências. Na ânsia racterizações e definições que cabem har-
de solucionarmos tais problemas meto- monicamente na mente do historiador.
Mas se sairmos da letargia e da repetição
18
THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses apologética, perceberemos que as festas
e outros artigos. Campinas: Ed. Unicamp, 2001,
p. 234. populares, a cultura popular não se cria,

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nem se manifesta sem contradições, sem WILLIAMS, Raymond. Marxismo e lite-
conflitos, sem a riqueza e variedade em ratura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
que na linguagem popular se constrói o
sentido de suas práticas. _____. Palavras-chave: um vocabulá-
Thompson e Williams são enfáticos rio de cultura e sociedade. São Paulo:
em propor o pensamento que foge ao dog- Boitempo, 2007.
mático e aos modelos simples de explica-
ção, suas contribuições teórico-metodoló-
gicas são, portanto, de suma importância
para os estudos que pretendemos desen-
volver, bem como para qualquer historia-
dor que se aventure a estudar a cultura.

Referências bibliográficas

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A cultu-


ra na rua. São Paulo: Papirus Editora,
1989.

MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios


às mediações: comunicação, cultura e
hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.

RIBEIRO, Joaquim. Folclore de Janu-


ária. Belo Horizonte: Ed. Levínio da
Cunha Castilho, 2001.

THOMPSON, Edward P. As peculiarida-


des dos ingleses e outros artigos. Campi-
nas: Ed. Unicamp, 2001.

_____. Costumes em comum; estudos


sobre a cultura popular tradicional. São
Paulo: Cia. das Letras, 1998.

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