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ROUPAS SEM CORPOS: ESPESSURAS DE SUBJETIVIDADE
HELENA ARA JO RODRIGUES KANAAN
niversidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Artes, harkanaan gmail.com
Resumo: Prop e‐se para este artigo uma reflex o que insere o conceito de orpo sem rg os na Arte e no
Design de Moda, partindo de um olhar interdisciplinar sobre as vestes que trabalha‐se em ateliê de artes
plásticas. essa cole o de indumentárias, investiga‐se o campo processual de cria o e subjetiva o que
opera conceitos da dessemelhan a, do informe e da temporalidade.
Palavras‐chave: arte, design de moda, subjetiva o.
1. Vestes sem forma fixa
A partir de uma produção em ateli de artes plásticas, intenciona‐se pensar a criação de vestes constitu das
de estampas e texturas realizadas em modalidades da gravura. Mais especificamente em litografia, técnica
que utiliza uma pedra calcária como matriz, patenteada em 1798 e a frottage, modo de transferir uma
imagem por atrito, fortemente utilizada pelos surrealistas em meados de 1925, acolhendo em uma mesma
peça modos de estampar de diferentes épocas. Essas vestes recebem como complementos, acessórios in
natura e texturas resultantes de fricç es sobre croch s antigos, num jogo provocativo entre modos
tradicionais e experimentais, tramas visuais e conceituais. O processo se faz entre a rigidez da técnica e a
imprecisão do artesanal amalgamados matéria org nica. Das estampas feitas na litografia, resultam
manchas aguadas sem contornos fixos estabelecidos e as frottages não repetem um mesmo elemento.
Usa‐se além do t nue papel oriental, o látex emborrachado como suporte, uma segunda pele que realça o
informe. Durante o manipular das matérias para confecção das vestes, percebe‐se aspectos técnico
estéticos que afloram nos recursos da modelagem, numa problematização entre desformatar o interno e
conformar no vazio a estrutura de um corpo sujeito. Algo como nossos fluxos de relação com a moda, um
sistema acoplado ao corpo, que permite ao mesmo tempo, expressar pelas sobreposiç es, camadas de
sentido que isoladamente ou em conjunto, são manifestaç es do desejo. (Deleuze & Guattari,1980: 201‐
202).
1.1 Materialidades e temporalidades
Por um tempo chamei essas roupas de corpos, ou melhor, Policorpos, pois feitas de muitas materialidades
e temporalidades, de sensaç es táteis, visuais, olfativas. Elas carregam a imperfeição e a heterogeneidade
o c modo e o inc modo. Observa‐se essa roupa a partir de seu campo imanente, de sua din mica como
sistema produtor de significados, questionando‐a como campo de criação e reinvenção de um movimento
de m ltiplas temporalidades responsáveis pela construção do sujeito, num desejo de experimentar novas
formas de exist ncia. De experimentar a variação. De propor com a arte uma dimensão anterior
mercadoria. De fazer da criação um acontecimento num mundo din mico e variável.
Aproxima‐se o fazer das vestes que aqui comenta‐se, feitas sem a presença corporal, com o fazer do
alfaiate que mantém a estrutura da peça baseando‐se em seus conhecimentos. No ateli , trabalha‐se com
o acontecimento do org nico que se molda na atmosfera do lugar, fundindo o espaço entre sujeito e
matéria. O termo alfaiataria que inclui a costura mão, abarca o conceito da forma que não depende
exclusivamente de medidas exatas de um só corpo (Fischer, 2010: 114), podendo operar apenas com o
tecido que está em mãos e a vestimenta toma forma.
Uma roupa sem corpo evoca, através da aus ncia, temporalidades presentes no vazio dos órgãos, incitando
para um imaginário que inventa seu sujeito e sua relação com o mundo. Nas roupas que prop e‐se, não se
projetam medidas, não se realiza a costura. O látex é o amalgama entre as matérias, elas se fundem, se
grudam se confundem, inventam um corpo na sensualidade dessa pele em metamorfose com a seda, com
a pétala, folhas, espinhos. Um corpo fragmentado, quase dilacerado, que se refaz em pedaços potentes de
expressividade, desejos, frustraç es. Esvaziamentos e potencias de uma veste que narra a passagem do
tempo e a mutação de tudo. É uma proposta que induz ao intimismo, pelas matérias táteis e olfativas com
que são feitas. Mas elas também provocam repulsa pela sua apar ncia crua, uma auto imagem para o
espectador que tem na veste sem corpo, seu próprio corpo devolvido.
Figura 1. Helena Kanaan. Vestido (detalhe). Seda, látex, litografia, flores, fungos, 2015.
2. Pontos invisíveis, pontos cruzados
Delimita‐se nosso objeto de estudo sobre essas roupas sem corpos, como um cont nuo de intensidades que
permitem ao sujeito afirmar seu desejo no devir das materialidades. O fluxo do látex transita desde o
estado viscoso que muda de estado, se faz emborrachado e pesado, resiliente e flex vel, matéria que não
2.1 Tramas e entrelaçamentos
As indumentárias que cria‐se com as matérias org nicas, remetem na superf cie o interior, levando‐nos ao
conceito de encarnado, sangue, matéria. (Didi‐Huberman, 1998:13). O encarnado é um termo que
aproxima o interior ao exterior, pele, que, segundo Paul Valery (1934), é o mais profundo no homem.
Estabelecem‐se v nculos entre um e outro. Cria‐se a trama, um entrelaçamento entre o que recobre e o
que descobre. Uma roupa pele, uma pele sem corpo, um interior na superf cie, um interposto entre
sentidos e subjetivaç es. Insere‐se o fazer das vestes sem corpos na cultura da moda como um sistema
com metamorfoses incessantes Lipovetsky (2009), sendo assim um mecanismo social que influencia os
modos de relacionamento na sociedade. Um novo vestuário, um novo estilo, um novo sujeito.
Com as peças constitu das de manchas litográficas, látex, frottage e folhas secas, reflete‐se o transcender
s fronteiras do pensamento estético hegem nico, acionando diferentes ngulos de visão e percepç es da
realidade. Confronta‐se padr es de gosto no vislumbrar de um campo com quest es que trazem a
discussão da fronteira entre as áreas aqui ressaltadas vigoradas até meados do século . O cruzamento de
linguagens é a grande questão contempor nea. Tivemos por exemplo no desfile de Jum Nakao em 2004,
uma manifestação dessa diluição das fronteiras entre áreas de conhecimento cultural quando, ao final do
desfile, as modelos rasgam suas vestes feitas de papel. Nessa proposta arte e corpo aproxima‐se também o
trabalho dos artistas brasileiros Lygia Clark e Helio Oiticica com seus objetos sensoriais e os vest veis
Parangolés, essas peças vão além da função vestir, oferecem ao olhar, uma experi ncia estética. As vestes
abaixo (fig. 2, 3 e 4) confeccionei‐as compactuando com as temporalidades inerentes a cada matéria e
técnica utilizadas, são todas vest veis, mas são expostas sem manequim, com cabides feitos de arame ou
galhos de árvores.
Figura 2. HKanaan. Vestes. Látex, litografia. 2013. Figura 3. HKanaan. Vestes. Látex, litografias, fungos. 2013.
Figura 4. HKanaan. Veste (detalhe). Frottage, seda, espinhos. 1,23cm x 0,47cm x 0,16cm. 2015.
2.2 Camadas, espessuras, fissuras
Percebe‐se tessituras relacionais entre as áreas de arte, design de moda e filosofia. Uma din mica
interdisciplinar propondo um espaço onde camadas espessas de subjetividade podem ser tensionadas,
criando rupturas materializando‐as nessas vestes, germinando a noção de Corpo sem rgãos, na referencia
em textos de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1980).
Essas camadas acumuladas entre saberes é compartilhada pelos efeitos das matérias que usa‐se para
confecção das vestes, as quais nem sempre permitem enxergar onde acaba uma e onde começa outra. O
papel de kozo onde faz‐se as impress es litográficas e as frottages, amalgama‐se ao látex tornando‐se um
só corpo. As estampas, os tecidos, as plantas secas encontradas, aguçam sensorialmente pelo tato, visão,
olfato. O não acabamento e a falta do corpo se projetam para o exterior numa relação de afecção, gerando
novos elementos a serem considerados: a forma informe da roupa é apresentada ao espaço não como fim
em si mesma, mas torna‐se meio para problematizar condiç es de função, propósito e contexto (Souza,
2006). Essas quest es são visualmente incitadas pelas concepç es morfológicas, convidando a postular o
design como um circuito espacial cont nuo (Saltzman, 2007) instigando a pensar o dentro e o fora, numa
din mica que induz aos limites de ponderar o desconstru do na vestimenta. São peças singulares que
resguardam, transformam, deformam, aquecem, acalantam. Comunicam subjetividades na confecção de
camadas e fissuras que podem estar ali apenas expostas ao olhar, pois possuem funç es prático estéticas
que concentrando significados diversos.
Figura 5. Helena Kanaan. Roupas sem corpos (vista do ateli ), 2015.
As vestes aqui mencionadas, suscitam movimento, preconizam uma imagem aberta. Almejam completude,
mas apontam para essa impossibilidade, devido as matérias org nicas que não cessam de alvidrar novas
formas, cores, aromas. O látex se espicha, se rasga, se encolhe, a litografia imprime uma imagem informe, a
frottage reinventa a cada textura. As plantas como acessórios das vestes, murcham, trocam de cor, de
cheiros. A dessemelhança acompanha o processo num olhar corporal. Há construção e desconstrução
inserindo pensamentos da descontinuidade, do inacabado. Não há planejamento de quantas peças de látex
serão concebidas a partir do l quido viscoso que saiu da árvore, nem de quantas aguadas litográficas serão
transmitidas para o papel. A matéria prima conecta‐se com o meio ambiente, deriva do clima, umidades,
ressecamentos. Partindo de tais interst cios que se apresentam no procedimento, vai‐se confeccionando as
roupas reformulando conceitos, fugindo aos padr es, pois cada matéria possui uma temporalidade
espec fica que interroga e reinventa valendo‐se de suas singularidades. Na imersão do trabalho no ateli ,
sinto que
Estou no meio, no entre, entre vestes e linguagens. Estou no desejo, no intervalo que faz a
passagem da nossa profundidade superf cie. Meu corpo experimenta um movimento circulatório,
constantes trocas, prática e reflex o, semelhan as e dessemelhan as. Estou na borda, visualizo
procedimentos diversos transpassados por significa es, forma es e deslocamentos. Permito a
hibrida o entre corpos. Vivencio uma osmose entre a o e conceito, express o e t cnica,
virtualidades e procedimentos num fluxo refluxo de combina es. (da autora, retirado da tese em
Po ticas Visuais, 2011:14 ).
Essas roupas que vão se fazendo , me apontam o incontornável, operado no conceito do informe . Termo
proposto por Georges Bataille, publicado como verbete no dicionário cr tico da revista Documents 7 (1929).
Para o autor, a matéria dá forma e reforma o pensamento, confundindo, permitindo intelig ncia escapar
da sujeição do idealismo. Retirada sua cabeça, seus órgãos, sua forma, o humano se parece com qualquer
coisa. Essas roupas sem corpos evocam um intervalo no pensamento, conferindo ao espectador, um outro
corpo.
3. Acabamentos: Considerações finais
Trabalha‐se num campo aberto onde os processos de criação e subjetivação do artista‐designer possa se
materializar em peças de vestuário. O informe, presente em temáticas sociais e na própria natureza, como
o campo e florestas onde colhe‐se as plantas e o látex, as texturas dos vegetais secos ou dos guardanapos
antigos de croch , pertencentes memória familiar, remetem a um questionamento sobre a exist ncia em
relação ao corpo, diga‐se, exist ncia do próprio corpo: um corpo que sofre por condiç es sociais, pelo
distanciamento da natureza nas grandes cidades, pelo sublime da finitude e da solidão. Os princ pios
intertextuais dessa correlação se manifestam nas tonalidades das matérias utilizadas. Assim, através da
visualidade expressiva das matérias utilizadas, considera‐se o desejo motor imanente na sua pot ncia
expressiva, o que permite elaborar uma veste sem corpo, ou seja, uma coleção em que as vestes
exprimem descargas das matérias primas promovendo metamorfoses de corpos sem órgãos num plano de
consist ncia liberado pelo processo de criação. A veste sem corpo, aqui, é compreendida como plano de
inscrição e ve culo das forças afectivas e vibratórias que as coloca em movimento de desterritorializaç es.
Roupas‐fluxos que vibram e incitam s subjetivaç es, engendrando variaç es em suas performatividades
matéricas.
As roupas sem corpos comentam o ausente, implicando sentidos, em visualidades que acolhem o informe,
assumindo a roupa sem compromissos com o vestir tradicional. As formas se fazem como transgressão,
emerg ncia de uma dimensão sintomática da diferença, res duo cr tico do mundo homog neo. A moda
amalgamada arte, se reinventa. Um estratagema para provocar mudança, e manter assim a sazonalidade,
transgredir, contrariando a ess ncia comercial. A série Roupa sem corpo pode suspender funcionalidades,
pois evidencia o caráter mágico do vestuário satisfazendo um desejo de representação do ausente,
provocando na falta, o poder afetivo do corpo e a capacidade de alterar os sujeitos que os apreciam por
onde são exibidas.
Referências Bibliográficas
BATAILLE, George. Documents, n 7. BNF: Paris, 1929.
DELEUZE & GUATTARI. "Como criar para si um corpo sem órgãos". In Mil Plat s. Vol. 3. Tradução de Aurélio Guerra
Neto et alli. São Paulo: Ed. 34, 2008.
DIDI‐HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.
FISCHER, Anette. Construção de vestuário. Porto Alegre: Bookman, 2010.
LIPOVETSKY. G. O império do ef mero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. Trad. Maria Lucia Machado.
Companhia das Letras. São Paulo. 2009.
SALTZMAN, Andréa. O design vivo. In: PIRES, Dorotéia Baduy (Org.); et al. Design de moda: olhares diversos. Barueri,
SP: Estação das Letras e Cores, 2008.
VALERY, Paul. L idée fix, o deux hommes a la mer. Paris: Gallimard, 1934.