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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2015

A MODA PELO VIÉS DA MEMÓRIA: DAS PASSARELAS PARA O MUSEU

Fashion by bias of memory: the catwalk to museum

Diêgo Jorge Lobato Ferreira1 (IFMA)


diego.ferreira@ifma.edu.br

Resumo: O presente artigo busca entender a relação da moda com a memória nos museus de
arte e moda bem como seu percurso no ambiente museológico. Ao compreender o estudo da
memória como algo de suma importância nos dias de hoje, entendemos que os artefatos roupas
e acessórios são memórias. Desta forma, o design de moda nos museus vêm complementar os
acervos que falam de um tempo, neste sentido nossa pesquisa se propõe a investigar o encontro
esses espaços produtores de sentido.
Palavras chaves: Design de Moda, Memória e Museu.

Abstract: This article seeks to understand the relationship of fashion with the memory in art
museums and fashion as well as your route in the museum environment. By understanding the
study of memory as something very important these days, we understand that the artifacts clothes
and accessories are memories. Thus, the fashion design in museums will complement the
collections that speak of a time in this sense our research aims to investigate the meeting the
producers of meaning spaces.
Keywords: Fashion Design, Memory and Museum.

1. MODA, MEMÓRIA E MUSEU

Recentemente temos observado um aumento crescente de acervos museológicos da área


de moda, tanto em museus específicos da área quanto nos museus históricos e de arte, além de
institutos, galerias de arte e fundações que preservam a memória de designers e artistas. Fato é
que não se pode negar que a roupa é um indicador de memória.

O estudo da moda nos museus chama a atenção para um ponto importante: o da memória.
Museus são considerados guardiões da memória, espaços para preservar a cultura, história e
objetos. Em 2011 o Conselho Internacional de Museus (ICOM), apresentou o como tema anual "
museu e memória" Em seu site o ICOM apresenta o tema dizendo que: “Os museus guardam
memórias e contam histórias. Eles têm numerosos objetos em suas coleções que são

1
Mestrando em Design pela Universidade Anhembi Morumbi - UAM sob orientação da Prof.ª Dra. Priscila Arantes,
bolsista CAPES.

ISSN: 2358-5269 Ano II - Nº 1 - Maio de 2015


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fundamentais para a memória das comunidades em que vivemos”2 É importante lembrar a


correlação entre guardar memórias e contar histórias. Isso porque a memória a respeito de um
assunto não é a definição desse assunto, mas uma relação de características a serem guardadas
e a serem esquecidas a respeito dele, que constituem significado julgado importante naquela
sociedade/cultura a respeito daquele assunto num determinado momento.

Assim como contar uma história das sociedades nos museus, por exemplo, a da moda
não significa falar de uma memória única, que é verdadeira sobre aquele assunto. Mas sim, eleger
alguns aspectos, trajes e objetos importantes sobre essa história naquele determinado momento
da sociedade. Aspectos e objetos esses, que podem de mudar, conforme o tempo ou o contexto,
modificando nossa memória sobre o tema. Outra característica importante sobre a memória no
museu, é a formação da memória individual. Uma exposição forma a memória de nossa sociedade
em determinado momento, mas ao mesmo tempo, também faz parte da memória individual e da
história de cada um dos visitantes. Na memória de cada visitante a exposição será lembrada de
forma diferente, estando associada com a história individual e a vivência de cada visitante diante
daquela exposição. Deste modo, tomamos o museu como um local de produção de memórias
coletivas e individuais, que vão construindo a identidade cultural de nossa sociedade, tornando-a
um diálogo.

A fala dos museus de moda é construída a partir de narrativas ao longo da exposição.


Levando em consideração sempre o tema e a proposta da exposição, desta forma, entendemos
que o que está sendo construído é a memória da moda na sociedade ao longo dos séculos. Um
exemplo interessante de curadoria de moda que trata justamente da relação Moda e Memória é a
exposição Spectres, de Judith Clark no Victoria and Albert Museum em Londres.Em Spectres
Judith Clark aborda a relação da moda contemporânea com a história, criando uma colagem de
referências visuais que oferecem uma visão sobre as origens, em conta ponto com designers
contemporâneos, abordando temas como: alienação, trauma, e fantasmagoria. A partir de
imagens de designers como Alexander McQueen, Hussein Chalayan, Viktor e Rolf justapostos
com detalhes de vestidos históricos das coleções permanentes, do V & A e do MoMu. A exposição
revela as sombras e as experiências que formaram uma "memória fashion 'no vestir
contemporâneo monstrando conexões ocultas, entre a moda contemporânea e a moda do
passado, usando peças de designers de vanguarda, do V & A e do arquivo em ModeMuseum da

2http://www.museus.gov.br/museu-e-memoria-e-tema-do-dia-internacional-dos-museus-2011/ acessado em
12/01/2015

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Antuérpia. A exposição trouxe à tona a questão da complexidade do vestir hoje em contra ponto
com o passado.

Sendo assim, entendemos que as roupas trazem sensações, lembranças que nos
rementem a momentos importantes de nossas histórias e vivências; elas mesmas contam e
recontam histórias. Para compreendermos a relação da moda com a memória, precisamos
entender como se dá a interação do homem com a memória, e de que maneira se relacionam. A
memória está associada à história social humana e possui um papel norteador cronológico de sua
evolução. " o estudo da memória social é um dos meios fundamentais de abordar os problemas
do tempo e da história. (LE GOFF, 2013 p. 390) Sendo ela peça fundamental para que haja
conhecimento atual relacionado ao passado, bem como a construção da base social e histórica
de um povo. Michael Pollak no ensaio "Memória e Identidade Social" descreve o significado de
memória segundo o sociólogo Maurice Halbwachs:

A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente


intimo, próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwachs, nos anos 20 e 30, já havia
sublinhado que a memória deve ser entendida também, ou sobretudo, como
um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído
coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças
constantes. (POLLAK, 1992 p. 2)

A construção da memória se dá pela reunião de acontecimentos que caracterizam a


vivência de cada ser humano em determinados grupos. Para entendermos mais dessa relação do
homem com a memória em relação ao ambiente que o circunda e os objetos, precisaremos
entender um pouco mais sobre a memória, para isso pontuaremos ao longo do texto alguns
conceitos a respeito do assunto. A memória pode ser entendida por várias esferas, que vão desde
a memória individual, coletiva e social.

A memória individual é aquela fruto das relações vividas pelo ser humano a partir de suas
próprias experiências, sendo assim, entendemos que a esfera pessoal é o principal cenário para
sua delimitação e formação. A relação com a família, amigos e pessoas em geral são alguns dos
fatores que influenciam na estruturação dessa memória. Esses são os acontecimentos "vividos
por tabela" definidos por Michel Pollak: " São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre
participou mas que, no imaginário tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase
impossível que ela consiga saber se participou ou não”. (POLLAK, 1992 p. 2).
Esses campos estão ligados já que o individuo apresenta relações individuais e coletivas
ao mesmo tempo. Deste modo, Helenice Rodrigues da Silva afirma: A memória não é só um
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fenômeno de interiorização individual, ela é também e sobretudo, uma construção social e um


fenômeno coletivo. Sendo uma construção social a memória é em parte modelada pela família e
pelos grupos sociais. Vale dizer, a memória individual se estrutura e se insere na memória coletiva.
A relação entre ambas está ligada à dinâmica social em que o ser humano vive. Por mais
que tenhamos momentos únicos, ainda sim estamos inseridos em uma sociedade movida a
relações interpessoais, que nos levam ao coletivo.
:
[...] a memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva, posto
que todas as lembranças são construídas no interior de um grupo. A origem
de várias ideias, reflexões, sentimentos e paixões que atribuímos a nós são,
na verdade, inspiradas pelo grupo. (CARVALHO, 2007 p.206).

A memória individual vai sendo construída a partir das referências e lembranças próprias
do grupo, referindo-se a um ponto de vista sobre a memória coletiva, sobre essa ligação
Halbwachs pontua: é preciso também que ela não tenha deixado de concordar com suas memórias
e que haja suficientes pontos de contato entre ela e as outras para que a lembrança que os outros
nos trazem possa ser reconstruída sobre uma base comum.

1.2 ROUPA COMO DISPOSITIVO DE MEMÓRIA

A memória excede o campo humano e assume os objetos como parte complementar de


sua existência. Elas são tão importantes quanto os indivíduos que as vivenciam essas
experiências, são ajudantes na dinâmica dos acontecimentos. Elas participam de muitos
acontecimentos da vida humana, os objetos servem como menção para demarcação da memória,
por exemplo, uma determinada peça de roupa da moda, ou objeto utilitário nos remetem a uma
determinada época onde aquele objeto ficou em evidência, seja pela forma ou pelo desejo de tê-
lo. Esses objetos se tornam objetos-documento, pois retratam uma experiência, sendo importantes
resquícios de memória. Com relação aos objetos- documentos Joyce Fagundes esclarece que:

Um objeto se torna documento a partir do momento em que indagamos sua


origem, sua forma, sua funcionalidade, quais são seus autores e sua
importância (CHAGAS, 1994). Desta forma, o objeto se torna um documento
no momento em que há um interesse sobre ele, podendo ser utilizado para
ensinar alguém sobre algum fato. Os documentos, por sua vez, são meios de
aprendizagem para o indivíduo, a partir da agregação de valor que atribuímos
a esses objetos. A constituição de um objeto como documento ocorre a partir
do contexto social em que ele se encontra inserido. (FAGUNDES, 2011 p. 3)

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A partir desse prisma, podemos analisar a roupa como um documento da sociedade, já


que a mesma assume a identidade de seu usuário e caracterizando-se em momentos e histórias.

A roupa não é apenas um objeto de um fenômeno efêmero que é a moda, mas


ela resiste aos corpos, os corpos vem e vão e elas sobrevivem. A roupa veste
o seu próprio “eu”, usando o corpo em sua forma mais pura e por uma espécie
de tautologia remete ao próprio vestuário. (BARTHES, 1979, p. 245).

Ela constrói situações que excedem o campo físico e alcançam o inconsciente. A roupa -
como objeto material de uso cotidiano - é dotada de elementos subjetivos, composta por uma
memória sensitiva e carregando nossa forma física, nosso cheiro, nosso suor. Carrega também
memórias, nomes e o espírito de quem a pertenceu. (FAGUNDES, 2011 p. 1). A memória é
constituída por pessoas, personagens. (POLLAK, 1992 p. 2) A roupa assumiria para o homem
esse papel de personagem diante dessa relação estabelecida entre homem e objeto, uma vez que
são peças chaves e acumulam acontecimentos que elas vivenciam.

A roupa3 para além da moda pode ser descrita como um invólucro, uma segunda pele à
qual aderimos, entendemos que, a roupa é um objeto que pode nos instiga, sobretudo com relação
a memória afetiva, onde determinado objeto nos traz lembranças. Ressalta-se que elementos
materiais tem como papel maior despertarem as lembranças de modo a elaborar uma memória
(LE GOFF, 1984). Sobre a ligação entre memória e objetos que carregam lembranças,
comecemos pelos artefatos que são feitos para lembrar. (BRUNO, 1996) Estão ligadas sobre ao
universo sensorial e despertam nossa sensibilidade Patrícia Sant´Anna esclarece:

Vestuários são objetos que recaem diretamente no universo sensorial: visão,


tato, olfato e mesmo audição (quem não passou por um trecho de literatura
que descrevia o farfalhar de um tecido?). Neste sentido as peças estabelecem-
se como elementos de conservação silenciosa, pois despertam a
sensibilidade, levando-a uma significação a partir do estimulo. Este traço
semântico que a roupa pode portar é apropriado de diversas maneiras pelos
museus. (SANTANNA, 2010, p. 220)

O vestuário-moda é de fato como um artefato privilegiado, que nos permite pensar sobre
a maneira como ele se torna um objeto-documento. De modo geral, quando uma peça adentra o

3Moda - Sentido geral, sendo ela uma construção da modernidade, é uma intencionalidade/ Roupa-preocupação da
sobrevivência.

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museu ela é sempre tratada como documento, e é isso que dá inicio a aventura do processo de
musealização de uma peça de moda (roupa, acessório, calçado). (SANTANNA, 2010 p. 222) O
Os objetos de design possuem memória? Eles podem estar em um museu mesmo sendo
fabricados em escala industrial, pois bem, "lembre-se que o objeto de design é produzido em
escala industrial o que a principio, vai de encontro com o conceito de aura, pois esta só ocorre
junto ao objeto uno, raro, exclusivo e quase inacessível. (DELLARI, 2008 p.160) No caso
específico do design o processo de atribuição de significado ocorre pela fetichização, ou seja, pela
atribuição de valores não essenciais ao uso do objeto, transmitidos pelas exterioridades,
despertando desejos, idealismos, emoções e devaneios. (DELLARI, 2008 p.163) Sobre a relação
do deslocamento do artefato industrial e sua entrada no museu a autora explica que:

Com a museificação, o artefato industrial é deslocado do contexto prático e


cotidiano para o qual foi produzido, ocorrendo uma apropriação erudita do
objeto enquanto obra de interesse estético. O valor de uso passa a valor de
culto, havendo fetichização do design. O museu serve, então, de base técnica
para avaliar e testar aura, no sentido elaborado por Walter Benjamim, ao
objeto. Os espaços de exposição são planejados de maneira a reafirmar uma
dignidade aferida pela instituição às peças que exibe. (DELLARI, 2008 p.158)

Essas peças de roupa em museus nos suscitam questionamentos em torno da memória


afetiva das coisas, como objetos elas não estariam mortas mais sim vivificadas como pontua
Baudelaire em um de seus escritos a respeito da presença da roupa em museus.

Roupas em museus são além de coisas mortas mas, para serem


verdadeiramente apreciadas, as modas não devem ser consideradas como
coisas mortas; seria o mesmo que admirar os trapos pendurados, frouxos e
inertes como a pele de São Bartolomeu, no armário de um vendedor de roupas
usadas. É preciso imaginá-las vitalizadas, vivificadas pelas belas mulheres que
os vestiam, somente assim compreenderemos seu sentido de espírito.
(BAUDELAIRE, 1996 p. 58)

Roupa. Toda emoção suscitada ou conservada pela roupa que o sujeito usava no encontro
amoroso, usa com intenção de seduzir o objeto amado. (BARTHES, 1994 p. 174) Essas emoções
e sensações que a roupa produz evidenciam que ela sobreviveu e sobrevive como um objeto
memorialístico ao longo dos tempos, como um registro evidente e claro da memória coletiva, a
despeito disso:

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A roupa quando vira memória evidencia trajetos propondo reflexões que pode
ser comparadas a reproduções textuais e imagéticas, nos livros, fotografias e
ilustrações podemos observar como a roupa sobreviveu e está de acordo com
o ideal estético proposto." (BERNARUSH, 2010 p.4).

Sobre longevidade e representatividade da roupa como um documento vivo e importante


do ponto de vista cultural e histórico entendemos que:

As roupas são objetos que tem uma circulação social. Sua longevidade,
geralmente maior que a humana possibilita-lhes transitar por diferentes
espaços e tempos. Para pensar as roupas numa perspectiva cultural e histórica
é necessário apreendê-las em, já que contextos específicos, já que sua
condição circulante e suas inerentes propriedades deteriorantes deslocam-se
continuamente para novas situações, para novos estados. (ANDRADE 2008,
p.16)

Objetos incorporam informações exclusivas sobre a natureza do homem na sociedade: a


elucidação de abordagens por meio do qual este pode ser desbloqueado é a nossa tarefa, a única
contribuição que coleções de museus podem fazer para a nossa compreensão de nós mesmos.
(CLARK e HAYE 2014, p. 78 - tradução nossa). A peça de roupa tende a estar associada a
memória, Stallybrass esclarece que: “quando a pessoa está ausente ou morre, a roupa absorve
sua presença ausente” (2008, p.14). Após essa citação o autor cita a artista Nina Payne
descrevendo como ela mexia nas roupas de seu marido falecido e de como este ato lhe trouxe
lembranças:

Tudo que tinha que ser guardado estava armazenado num armário no segundo
andar da casa: jaquetas e calças que Eric ou Adam podiam eventualmente
usar, blusas, gravatas, três camisas feitas de uma pelúcia axadrezada (azul-
cinza vermelho-tijolo e ocre-amarelo). Vi que a camisa cinza tinha sido usada
uma vez, depois de ter sido passada a ferro e, então, recolocada em seu
cabide para ser vestida outra vez. Se eu colocasse minha cabeça no meio das
roupas, eu podia cheirá-lo. (STALLYBRASS, 2012, p.14)

Isto é, a roupa acaba se tornando um objeto de memória e contemplação, perdendo seu


caráter utilitário e efêmero e ganhando caráter afetivo e insubstituível por qualquer outro objeto,
diz ele, “os corpos vêm e vão: as roupas que receberam esses corpos sobrevivem” (Idem, p.11).
Esses novos atributos dados ao objeto são conceituados por Pierre Nora como lugar de memória:
é um lugar duplo: um lugar de excesso fechado sobre si mesmo, fechado sobre sua identidade, e
recolhido sobre seu nome, mas constantemente aberto sobre a extensão de suas significações”

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(1993, p.27). Em 1982, o historiador de arte Jules Prown propões uma metodologia para análise
de objetos com base em três etapas sequenciais. A primeira, é a descrição, que envolve a
articulação das propriedades físicas do objeto. O segundo e o terceiro são culturalmente
determinados. Prown ressaltou que, os objetos, ao contrário de outras evidências históricas
continuam a existir em nosso tempo (CLARK e HAYE 2014, p. 78 - tradução nossa)

A prática do design produz roupas que estabelecem um vínculo com a memória devido a
sua materialidade. Estas roupas como representações da sociedade, nos direcionam ao campo
do design como espaço de relações sociais que são guiadas para a produção destes artefatos.
Assim podemos dizer que as noções de tempo compreendidas nestas relações sociais se dão
através da produção, recepção e circulação das roupas. "A roupa tende a estar poderosamente
associada com a memória, ou para dizer de forma mais forte, é um tipo de memória".
(STALLYBRASS, 2012). Ela tem uma relação muito estreita com a memória. Segundo o autor, a
sociedade moderna se caracteriza como uma "sociedade de roupas" porque os objetos materiais
são carregados de significado simbólico que corporificam as relações sociais. (STALLYBRASS,
2012 p.13-14).

Por esse viés a roupa pode ser entendida não só como um objeto utilitário, passando pelo
status de objeto de memória ativa, pelo qual as pessoas se apegam por se tratar de contar parte
de sua história. Se finalmente por passado adiante, estes queridos que se identifiquem com aquela
memória ou identidade e que queiram mantê-la "viva" poderão herdá-lo; muitas vezes o objeto
atravessa gerações e gerações.

Diante dessa identificação com o objeto o Design Reflexivo atua baseado nessas
emoções. Afinal de que outra maneira o objeto poderia ser criado pelo designer para evocar
lembranças através do emprego de estampas, texturas ou tecido, senão provocando este tipo de
correlação afetiva, em que o consumidor se lembre de algo significativo, de uma época, momento
ou experiências de senso comum? Essa relação com o objeto pode estar intrínseca ou ser
construída ao longo da "vida" do produto:

De modo igual o design reflexivo também pode ser criado com o passar do
tempo pelo usuário do produto, através de seu uso continuado. Desta forma,
pequenos desgastes, puídos, manchas, cheiros, deformação de tecido pela
forma do corpo que surgem através do tempo, e também reforçam a ideia de
lembranças da experiência emocional encaixam-se em um design reflexivo
alterado pelo próprio consumidor. (NORMAN 2008 p.107)

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A memória está presente em tudo e em todos, afinal somos seres da memória. Nós somos
tudo aquilo que lembramos ser. Ela não é só pensamento, imaginação e construção social; ela é
também uma determinada experiência de vida capaz de transformar outras experiências a partir
de resíduos deixados anteriormente. A moda têm adquirido importância nos estudos da história
social e dos estudos culturais; além disso, cabe destacar a função social do traje, como indicativo
de um contexto cultural. “O vestuário constitui uma indicação de como as pessoas em diferentes
épocas, vêm sua posição nas estruturas sociais e negociam as fronteiras do status” (CRANE,
2006, p. 21). Em relação à interface design, moda e arte, a autora AZZI (2010, p.05) esclarece
que:

Tradicionalmente, a crítica de arte questiona o estudo da moda como campo


filosófico. No entanto como afirma a filósofa Marie-José Mondzain, “a moda
não é a primeira vista, o que se pode poderia chamar de objeto de tradição
filosófica, mas na verdade todo objeto pode se tornar filosófico, quando
encontra uma forma de interrogá-lo a partir de sua história e de seus sentidos.

Assim, o vestuário passa a ser visto como documento-memória, pois faz referências a
uma cultura em um período específico, refere-se às tradições, aos hábitos e aos costumes que
caracterizam os grupos sociais em diferentes épocas (SORCINELLI, 2008). Sendo assim “a roupa
fala, e para entendê-la, é preciso reposicioná-la como fonte histórica (GUEDES e TEIXEIRA, 2009,
p.2)”. Contudo, apesar de adquirir espaço nas discussões históricas e culturais, ainda há certas
restrições referentes à presença da moda nos museus. Albuquerque e Delgado dialogam com
nossas proposições:

Apesar do traje e da moda estarem nos museus há muitos anos pela mão dos
grandes mestres da pintura, somente no século XX se assume uma nova
interdisciplinaridade entre a moda e a arte, ao passarem a ser sistematizadas
e enquadradas nas discussões de abordagem artístico-científica. Dentro da
temática agora apresentada, os museus podem-se assumir como locais
privilegiados de desenvolvimento de competências ao nível da interpretação e
análise crítica do Traje e da Moda, proporcionando oportunidades de pesquisa
através das exposições das suas coleções de pintura e material interpretativo
(ALBUQUERQUE E DELGADO, 2009, p. 324).

Vale ainda frisar que, somente na primeira metade do século XIX, alguns museus
mostraram interesse por objetos referentes à moda. O tema design e moda, assim como sua
presença nos museus. (AZZI, 2010). A autora lembra que:

em 1851 é fundado na Inglaterra o Victoria and Albert Museum, o museu


consagrado às artes, com imenso acervo formado por pinturas, esculturas,
objetos de metal e vidro, cerâmicas, desenhos, mobiliário, fotografias, arte

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islâmica e, ainda, tecidos, roupas, joias e acessórios, incluindo bolsas e


sapatos. Atualmente, é o maior museu de arte e design do mundo (AZZI, 2010,
p.41- 42).

Ao compreender a memória como algo que está presente em nossas vidas é possível
entender os artefatos - roupas e acessórios - como memórias que falam de um tempo que já não
existe mais, que caracterizam uma realidade específica. A moda durante muito tempo esteve
distante dos campos de estudo por sua aparente "banalidade" e "futilidade", contudo, nas últimas
décadas tem estado em grande evidência nas universidades. Ver a moda como objeto de
pesquisa, é uma questão que vem se construindo de maneira lenta, mais firme. Pra muitos a roupa
pode ser vista apenas como um mero acessório, porém se questionada ela pode ser vista como
uma força motriz.

No museu nos defrontamos com objetos em suas múltiplas significações e funções,


objetos do nosso cotidiano mais fora do contexto, e portanto capazes de atrair a observação ou
estranhamento à vida corrente capazes de incorporar inúmeras experiências. As roupas em
museus são indicadores de memória, pois revelam fases e épocas distintas cada uma a seu modo.
Sobre o conceito de memória Le Goff pontua:

O conceito de memória é crucial. Embora o presente ensaio seja


exclusivamente dedicado à memória tal como ela surge nas ciências humanas
(fundamentalmente na história e na antropologia), e se ocupe mais da memória
coletiva que das memórias individuais, é importante descrever sumariamente
a nebulosa memória no campo científico global. A memória, como propriedade
de conservar certas informações. (LE GOFF, 2013, p.387)

Entretanto, a roupa, como qualquer objeto de design, materializa um tempo passado, nos
fornece uma noção ideológica e cultural da sociedade que a criou e consumiu.

“A coisa projetada reflete a visão de mundo, a consciência do projetista e,


portanto, da sociedade e da cultura às quais o projetista pertence. Toda
sociedade projeta (investe) na sua cultura material os seus anseios ideológicos
e/ou espirituais e se aceitamos esta premissa, logo é possível conhecer uma
cultura – pelo menos em parte – através do legado de objetos e artefatos que
ela produz ou produziu” (DENIS, 1998, p. 37).

A roupa vista pelo viés histórico nos fala dos momentos das sociedades e de como eram
as relações entre as pessoas, haja vista que a roupa era vista como um signo, certos tecidos,

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padronagens eram específicos para cada grupo da sociedade. Elas nos reportam a sensações e
lembranças, e são objetos que nos remetem a um universo sensorial: tato, visão, olfato.
Estabelecem conosco elementos de conversa, pois despertam nossa sensibilidade. Ao adentrar o
espaço museal a peça de vestuário se torna um objeto de patrimônio cultural do grupo que mantém
a instituição. Transforma-se em um objeto de contemplação, carregado de vários significados. A
peça de vestuário perde o seu sentido original que é a questão prática da peça em si, que serve
para vestir o corpo. Sendo agora um objeto de reflexão e memória, deixando de ser apenas uma
peça de roupa para e se tornar um objeto “sacralizado” já que adquire uma aura que o valoriza o
tornando “intocável”. Sobre a relação do objeto que sai das passarelas da rua para o museu a
pesquisadora Michelle Benarush pontua:

Os museus são, por natureza, instituições que transformam objetos em bens


culturais. São regidos por missões que inspiram diretrizes de gestão do acervo.
A maioria dos museus deseja preservar, pesquisar, e expor seus objetos de
maneira relevante. Quando entram no museu, as roupas mudam de caráter,
deixam de ser objetos utilitários e de adorno pessoal e passam a ser objetos
de admiração. Tornam-se, portanto, testemunho de sua época, uma fonte
primária, viram em si objeto de estudo. (BENARUSH, 2012, p.10)

A moda por sim só já nos faz refletir sobre a questão da admiração, afinal de contas ela
impõe um rito segundo o qual a mercadoria se torna um fetiche, um “objeto de adoração”. E quando
se pensa em objetos de adoração, a primeira coisa que nos vem a cabeça são objetos aureaticos,
objetos de exposição, objetos de culto, objetos de arte. Objetos enfim, que nos provocam e nos
despertam admiração e desejo. O que todos tem em comum é o lugar ideal ao qual ambos se
destinam, espaços consagrados ao saber e ao sagrado, a exemplo dos museus e galerias de arte.
É notável a presença de objetos de design de moda nos museus, onde se busca privilegiar o objeto
em sua forma original, afim de que esses objetos-roupas despertem novos questionamentos sobre
a relação da moda com a memória.

A memória da roupa reside nos sinais, nos desgastes, no suor, no puído da roupa, essas
são evidências de uma história da roupa, sua materialidade e vida. Os museus de história social
têm apreciam estes sinais de desgaste que eles interpretaram como evidência de uma vida vivida.
Essas evidências garantem que o objeto não pereceu no processo, afinal de contas seria uma
pena, por exemplo, para enviar para a lavanderia um vestido do século XIX. Sobre essas conexões
e pertencimentos que a roupa estabelece a pesquisadora esclarece:

Nesse contexto, as roupas são capazes de oferecer um pertencimento a um


lugar de memória, estas criam conexões com espaços e tempos diferentes,

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são objetos ladeados de significações emocionais que afetam seu


usuário/proprietário/observador. São vistas como agentes ativos e hábeis a
revelar lembranças e pertencimentos. Elas são encadeamento de acepções
que produzem afetos e atingem lugares imateriais enriquecidos pela
associação subjetiva proporcionada pela memória. Desse modo, pode-se
aferir à roupa, por contextos sociais e semiológicos, subjetividades coletivas.
(SOUZA, 2014 p. 10)

Contudo tudo isto, podemos dizer a roupa é capaz de despertar no indivíduo sensações
subjetivas, que transitam entre fluxos de signos, sociais e materiais, podendo ser representados
por um objeto, por uma roupa ou por uma associação de vários desses. Nesse sentido a roupa
torna-se recurso da memória coletiva, tal como um vestido de noiva, que provoca ao indivíduo uma
série de associações afetivas pessoais ou mesmo produzidas pela cultura social. É uma produção
da memória coletiva, que acaba tornando os vestidos de noiva brancos referências claras a tudo
aquilo que tange o universo feminino, seja cercado pela áurea de sonho ou em uma posição de
aprisionamento social. A roupa, nesse sentido, associada a memória e sua semiótica tornando-se
uma linguagem simbólica e expressiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por tudo isto, entendemos que a moda/roupa/acessório ao adentrar o espaço museal


perde o seu sentido original de mera peça de vestuário, e passa adquirir novos significados, novas
funções, ao se tornar um objeto exposto na vitrine de um museu, fazendo parte agora de uma
narrativa maior, representando uma época, um contexto ou um estilo, torna-se memória viva de
um tempo. Em outras palavras a moda deixa de lado a sua função utilitária para se tornar um
objeto-comunicação. As roupas em museus são indicadores da memória as exposições de moda
tem estado cada vez mais presente nos museus e esse fenômeno se deve sobretudo a
estruturação do campo de conhecimento que apesar de ser recente vem se consolidando ao longo
dos anos, fato que não se pode negar é que a relação da moda com arte foi importante nesse
processo de saída das passarelas para o museu.

ISSN: 2358-5269 Ano II - Nº 1 - Maio de 2015


Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2015

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