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ImidJ~ v. 3
~JfrVL_L~
A moda consiste em imita r o que de início se mos-
trou inimitável. Esse mecanismo, paradoxal à prim eira
vista, é de grand e interesse para a sociologia, uma vez
que esta se volta princ ipalm ente para as sociedades mo-
dernas, tecnológicas, industriais, e a moda é um fenô-
meno historicamente peculiar a essas sociedades. É pre-
ciso salientar que existem povos e sociedades sem moda ,
como por exemplo a antig a sociedade chinesa, em que
o vestuário era estrit amen te codificado,. de um modo
quase imutável. A ausência de moda corre spon dia ao
imob ilism o total da sociedade.
Em relação às civilizações sem escrita, a moda pro-
'[ põe um probl ema muit o interessante, se bem que pou-
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co estudado. Esse problema refere-se à sociologia dos que escapa à sistemática, à regularidade; mito da profu-
contatos interculturais: em países como os da jovem são criativa, espontânea, sem dúvida bem romântico. Por
África, o vestuário tradicional de tipo indígena, vestuá- acaso não se diz que os costureiros fazem tudo com nada?
rio imóvel, alheio à moda, choca-se com o fenômeno Alguns historiadores ou, mais exatamente, etnólo-
da moda, vindo do Ocidente. Daí resultam concilia- gos preocuparam-se com esse aspecto criativo da moda.
ções, sobretudo no vestuário feminino. Os grandes pa- Kroeber, etnólogo americano bem conhecido, fez um
drões, os grandes modelos, as grandes formas do ves- estudo rico e aprofundad o do vestuário feminino para
tuário indígena freqüentemente são mantidos, seja na a noite, no Ocidente, nos últimos três sécufos mais ou
silhueta e na forma do vestuário, seja nos tipos de cor e meno?, a partir de reproduções de gravuras. Ele unifi-
de estampa, mas submetidos a ritmos de moda ociden- cou as dimensões dessas ilustrações, que na origem
tais, ou seja, à difusão anual da moda e à renovação dos eram muito diversas, e pôde assim estudar as constan-
detalhes. O interesse desse fato consiste no encontro de tes dos traços de moda, estudo que não é intuitivo nem
• •
uma civilização indumentária que não se baseava na aproximativo, mas preciso, matematlco e estatlstiCo.
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moda com o fenômeno da moda. Parece possível con- Reduziu o vestuário feminino a certo número de tra-
cluir que a moda não está ligada a esta ou àquela forma ços: comprimen to e largura da saia, largura e profun-
particular de vestuário, mas que é unicamente um pro- didade do decote, altura da cintura76 • Mostrou de modo
blema de ritmo, um problema de cadência no tempo. seguro que a moda é um fenômeno profundame nte re-
gular, que não se situa no nível das variações anuais,
*** mas em escala histórica. Na prática, há 300 anos, o tra-
Para os historiadores, a moda representa um pro-
je feminino vem sendo submetido de maneira precisa
blema mais agudo e paradoxal que para os sociólogos.
a uma oscilação periódica: as formas atingem os termos
A opinião pública, mantida e favorecida pela impren-
extremos de suas variações a cada 50 anos. Se, em dado
sa, pelos cronistas de moda etc., imagina a moda como
momento, as saias estão no seu ponto mais longo, 50
um fenômeno essencialmente caprichoso, decorrente
anos depois estarão no mais curto; assim, as saias vol-
da faculdade de invenção do costureiro. Para essa opinião,
a moda ainda se situa numa mitologia da criação livre, 76. Três séculos de moda feminina, Kroeber e Richardson.
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tarão a ser longas 50 anos depois de terem sido curtas tem como origem a indumentária quaker (paletó abo-
e 100 anos depois de terem sido longas. toado, estrito, de cores neutras). o segundo fator é de
Ktoeber também demonstrou concomitânciaJ re- ordem ideológica. A democratização da sociedade en-
gulares, por ~xemplo entre a variação do compriment o sejou a promoção dos valores do trabalho em detrimen-
da saia e da largura do d~cote, pois certos traços estão to do ócio, e desenvolveu nos homens uma ideologia
interligados no ritmo da moda. do auto-respeito, de origem inglesa. Na anglomania do
O historiador está aí diante de um problema apai- fim do século XVIII, o autocontrole encarnou-se na
xonante, o de um sistema cultural particular que pare- França nesse vestuário masculino de arquétipo austero,
ce escapar ao determinismo da história. Assim, em 300 convencional, fechado. Essa indumentár ia fazia desa-
anos o Ocidente conheceu muitas mudanças de regi- parecer as diferenças de classes.
me, muitas evoluções, transformações ideológicas, afe- Antes, as sociedades tinham um vestuário absolu-
tivas, religiosas etc.; ora, nenhum desses acontecimen- tamente codificado, muito diferente conforme se per-
tos históricos importantes teve efeitos sobre os conteú- tencesse à aristocracia, à burguesia, ou ao mundo cam-
dos ou mesmo sobre os ritmos da moda. A Revolução ponês. A multiplicidade dos trajes masculinos desapare-
Francesa não subverteu de fato esse ritmo. Ninguém ceu em favor de um único vestuário, fator de democra-
no mundo pode estabelecer razoavelmente a mínima tização. Mas, assim como a supressão das classes sociais
relação entre a cintura alta e o Consulado; no máximo, no início do século XIX foi ilusória (pois essas classes
os grandes acontecimentos históricos podem acelerar ou continuaram existindo), também os homens pertencen-
retardar os retornos absolutamente regulares da moda. tes às classes superiores foram obrigados, para distin-
*** guir-se da massa, a variar os detalhes de suas vestes, já
O vestuário masculino tem uma história um pou- que não podiam mudar a forma. Elaboraram a noção
co diferente da história do vestuário feminino. O ves- nova, noção nada democrática, que se chama distinção
tuário masculino atual, de tipo ocidental, constituiu-se - a palavra é felizmente ambígua. O objetivo era dis-
em sua forma geral (basic pattern) no início do século tinguir-se socialmente; e quem se distinguia social-
XIX sob influência de dois fatores. O primeiro é um mente era "distinto". Donde o dandismo: escolha ex-
fator formal vindo da Inglaterra: o vestuário masculino tremamente refinada dos detalhes. Um homem do sé-
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culo XIX, não poden do mais modificar a forma de suas
pode ser concebido como linear e único, porqu e a his-
vestes, distinguia-se do comu m pela maneira de atar a
tória é feita de vários tempo s de duração diferente que
gravata ou de usar as luvas ...
se superpõem. Há acont ecime ntos absol utame nte pon-
A partir daí, o vestuário masculino não passou por
tuais; há situações que duram mais tçmpo , chamadas
verdadeiras mutações. Mas delineia-se um fenômeno
conjunturas; há enfim estruturas que duram um temp o
novo atualmente: a constituição de uma verdadeira mo-
mais longo ainda.
da dos jovens. Antigamente, o jovem e mesmo a criança
O vestuário passa por esses três tempos. O temp o
não usavam trajes específicos: as crianças eram vestidas
mais longo é ocupa do pelas formas arquetípicas do ves-
como os adultos, mas em modelos reduzidos. Primeiro
tuário em dada civilização. Dura nte séculos e numa era
apareceu um traje particular para crianças, depois uma
geográfica determ inada , os home ns orienta,is usaram, e
moda para jovens. Esta se torna muito imperativa, impe-
usam ainda em parte, uma túnica; no Japão, usam qui-
rialista até. Tanto que hoje em dia é preciso estudar a mono , no México, ponch o etc. É o basic pattern, mo-
moda masculina no nível da moda adolescente. delo básico de uma civilização. No interi or aesse perío-
Nesse campo, existem fenômenos de microssocio- do ocorrem variações médias, mas perfe itame nte regu-
logia, micromodas; estas muda m aproximadamente a lares77. O terceiro tempo , em suma , poder ia chamar-se
cada dois anos. Houve o blue Jean, a jaqueta preta, aja- tempo das micromodas. Ele se manifesta sobre tudo em
queta de couro; agora, há a moda dos roqueiros: pale- nossa civilização ocici.ental atual, em que a moda muda
tó muito cinturado, à maneira de Alfred de Musset, ca- em princípio todos os anos. Na realidade, essas varia-
belos muito compridos ... Essa moda masculina só é ob- ções anuais ocupa m muito mais a impre nsa e o comér-
servável entre os jovens, os adolescentes. cio do que afetam o mode lo geral. Estamos sujeitos a
uma espécie de ilusão de óptica que nos faz atribu ir
***
O vestuário - não estou falando da moda - passa grande impo rtânc ia à variação anual das formas, quan-
por três durações, três ritmos, três histórias. do na verdade, do ponto de vista histórico, essas varia-
Uma das descobertas da ciência histórica conte m- ções são absorvidas em grandes ritmo s regulares.
porânea foi a constatação de que o tempo histórico não
77. Variações observadas por Kroeber e Richardson.
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O probl'7ma seria se, algum dia, o ritmo bissecular do conteúdo de uma moda, ou seja, a imitação de deter-
perfeitamente regular da moda se modificasse. O vesti- minada forma ou de dado detalhe que já existem, como
do, normal mente, deveria atingir em 1O ou 20 anos a o cabelo de um ator ou de uma atriz, a maneira de usar
um vestido. Dessa questão das origens decorre a noção
fase de extrema curteza, passando por aparentes retor-
de domínio da moda, mas esse assunto complicadíssimo
nos ao maior compri mento, para depois recomeçar um
é secundário e não interessa diretamente à sociologia.
ciclo em que se encompridasse, com retornos aparen-
Certas pessoas atribuem aos sociólogos a afirmação
tes ao encurtamento. Pode-se imaginar que esse ritmo
de que a moda de cabelos longos para rapazes foi lan-
seja perturbado, e que as saias continu em curtas. Será
çada pelos Beatles; é verdade, mas seria falso criar uma
interessante fazer um estudo desse fenômeno e relacio-
caracterologia do jovem moderno a partir daí e induzir
nar essa perturbação do grande ritmo da moda com al-
traços de caráter como feminização e preguiça, a partir
guma coisa que esteja na história da civilização atual. ..
dos cabelos compridos. Se os cabelos se tornaram lon-
Se o ritmo de Kroeber for perturbado, a causa será,
gos, foi porque antes eram curtos. Resumo assim, de
talvez, um fenômeno de massificação e de globalização
modo um tanto brusco, o meu pensamento porque sou
da cultura, do vestuário, da alimentação, uma espécie
partidário de uma interpretação formalista do fenôme-
de igualamento dos objetos culturais, de mescla tão in-
no de moda. Há um pouco de engodo em preencher
tensa, que o ritmo da moda mudaria. Uma nova histó-
um fato com conteúdos que parecem naturais, mas
ria da moda começará. não o são na realidade. As pessoas que escrevem sobre
*** o tema do vestuário são sempre tentadas por essas cor-
As mudanças de ritmo não dependem de ninguém. relações psicológicas. Fazer variações sobre a feminiza-
A expressão "estamos recebendo uma moda dos Esta- ção do vestuário parece-me ilusório. Não há traço na-
dos Unidos" é muito ambígua, porque verdadeira e fal- turalmente feminino no vestuário; só existem rotações,
sa ao mesmo tempo. A mudança, que se supõe ocorrer rodízios regulares de formas.
pela inrrodução de uma moda, não tem origem; ela está O que está em causa no vestuário é certa significa-
na lei formal que rege o espírito humano e as rotações das ção do corpo, da pessoa. Hegel já dizia que o vestuário
formas no mundo. Outrossim, é possível situar as origens tornava o corpo significante e que, por conseguinte,
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permitia passar do simples sensível à significação. Os presente o que os outros escolheram em lugar dele: a so-
psicanalistas também se preocuparam com o sentido do ciedade fez de Genet um ladrão, e por isso Genet se es-
traje. Flügel fez a análise do vestuário 78 , mostrando, a colheu ladrão. O vestuário está muito próximo desse
partir de pressupostos freudianos, que para o homem o
fenômeno; parece que despertou o interesse dos escri-
traje funciona como uma espécie de neurose, pois ao
tores e dos filósofos em sua relação com a personalida-
mesmo tempo esconde e exibe o corpo, exatamente
de, na qualidade de intercâmbio de constituição; a per-
como a neurose mascara e revela o que a pessoa não quer
sonalidade faz a moda; faz o vestuário; mas, ao inver-
dizer, elaborando sintomas e símbolos. A roupa seria,
so, o vestuário faz a personalidade. Há certamente uma
de algum modo, análoga ao fenômeno que revela nos-
dialética entre esses dois elementos. A resposta profun-
sos sentimentos quando enrubescemos por pudor; nos-
da depende da filosofia praticada por cada um.
so rosto enrubesce, e nós escondemos nosso constran-
gimento no exato momento em que o exibimos. ***
O vestuário concerne a toda a pessoa humana, a No século XVIII, foram escritos numerosos livros
todo o corpo humano, a todas as relaÇões entre o ho- sobre o vestuário. Eram obras descritivas, mas explícita
mem e seu corpo, assim como às relações do corpo com e conscientemente baseadas na codificaç(io da indumen-
a sociedade; isso explica por que os grandes escritores tária,1ou seja, na relação entre certos tipos de traje e cer-
tantas vezes se preocuparam com ( traje em suas obras. tos ofícios, certas classes sociais, certas cidades, certas
Encontramos belíssimas páginas sobre esse assunto em regiões. O vestuário era percebido como uma espécie de
Balzac, Baudelaire, Edgar A. Poe, Michelet, Proust; es- língua, de gramática: o código do vestuário. Assim se
tes pressentiam que o vestuário é um elemento que, de constata que o vestuário participa da atividade muito
algum modo, compromete todo o corpo. viva que consiste em dar sentido aos objetos. Em todos
Do ponto de vista filosófico, Sartre trata dessa ques- os tempos, o vestuário foi objeto de codificação.
tão quando mostra que o vestuário possibilita que o Isso leva a revisar um ponto de vist'a tradicional, à
homem "assuma sua liberdade", se constitua no que es- primeira vista dotado de bom senso, segundo o qual o
colheu ser, mesmo que aquilo que ele escolheu ser re- homem inventou o vestuário por três motivos: prote-
ção contra as intempéries, pudor (para ocultar a nudez),
78. Flügel, Psychology ofClothes. adorno (para se fazer notar). Isso é válido. Mas é preci-
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79. Trata-se de Anna Marie Louise d'Orléans, duquesa de Monpensier, que participou da
Fronda. (N. da T.)
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ções de guerra aos costureiros). Chanel, segundo dizem, talvez mais profundo que a moda, ou pelo menos algo
retém a moda à beira da barbárie e a cumula de todos que a moda só serve para trazer à tona. O quê?
os valores de ordem clássica: razão, naturalidade, per- As criações de Chanel contestam a própria idéia de
manência, prazer de agradar, não de surpreender; gos- moda. A moda (como concebemos hoje) baseia-se num
tam muito de Chanel no Figaro, onde, com Cocteau, sentimento violento do tempo. A cada ano, a moda
ela ocupa as margens da boa cultura mundana. destrói o que acaba de adorar, adora o que acaba de
O que pode ser considerado o extremo oposto do destruir; a moda vencida do ano passado poderia diri-
classicismo, senão o futurismo? Courreges, segundo gir à moda vitoriosa do ano corrente estas palavras ina-
dizem, veste as mulheres do ano 2000 que já são as me- mistosas dos mortos aos vivos, inscritas em alguns tú-
ninas de hoje. Numa mistura, como ocorre em toda mulos: Fui ontem o que és hoje, serds amanhã o que sou
lenda, do caráter da pessoa com o estilo das ohras, hoje. A obra de Chanel não participa -- ou participa
Courreges é gratificado com as qualidades fabulosas pouco- dessa vendetta anual. Chanel trabalha sempre
do inovador absoluto: jovem, tempestuoso, galvânico, o mesmo modelo, que ela "varià', de ano para ano,
virulento, louco por esporte (e o mais rude: rugby), como se "varià' um tema em música; sua obra diz (e ela
amante de ritmo (a apresentação de sua coleção foi mesma confirma) que há uma beleza "eterna" da mu-
feita ao som do jerk), temerário a ponto de ser contra- lher, cuja imagem única nos seria transmitida pela his-
ditório, pois inventa um traje de noite que não é um tória da arte; ela rejeita com indignação o~ materiais
vestido (mas um short); tradição, bom senso e senti- perecíveis, como papel e plástico, com que às vezes se
mento- sem o que não há bom herói na França- nele tenta fazer vestidos nos Estados Unidos. Da própria coi-
estão dominados e só reaparecem discretamente no re- sa que nega a moda, ou seja, a duração, Chanel faz uma
côndito de sua vida pessoal: ele gosta de passear à bei- qualidade preciosa.
ra do rio de sua terra natal, desenha como um artesão Ora, na estética do vestuário há um valor muito
e manda o único vestido preto de sua coleção para a particular, paradoxal até, que reúne sedução e duração:
mãe, em Pau. é o "chique"; o "chique" suporta e até exige, se não o
Tudo isso quer dizer que há em todos a impressão desgaste do vestuário, pelo menos seu uso: o "chique"
de que algo importante separa Chanel e Courreges- algo tem horror à aparência de novo (lembremos que o
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dândi Brummell nunca usava uma roupa sem antes caso por algum detalhe discreto. O estilo de Chanel
fazê-la envelhecer um pouco no corpo de seu criado). reúne, filtrando e feminilizando, essa herança históri-
O "chique", esse tempo sublimado, é o valor-chave do ca, e nisso, aliás, é paradoxalmente datado; correspon-
estilo de Chanel. Os modelos de Courreges não têm de ao momento brevíssimo de nossa história (que é o
essa obsessão: muito frescos, coloridos ou mesmo vis- da juventude de Chanel) em que uma minoria de mu-
tosos, neles predomina o branco, esse novo absoluto; lheres finalmente teve acesso ao trabalho e à indepen-
essa moda voluntariamente muito jovem, com suas re- dência social, precisando tr~nsferir para o vestuário
ferências colegiais às vezes infantis, de primeira infân- algo dos valores masculinos, a começar por essa famo-
sa "distinção", único luxo que resta aos homens unifor-
cia até (meias e sapatos de bebê), para a qual o inverno
mizados pelo trabalho. A mulher de Chanel não é ajo-
também é uma estação clara, é continuamente nova,
vem ociosa, mas a jovem que enfrenta um trabalho dis-
sem complexo, porque veste seres novos. De Chanel a
creto, evasivo, mulher que em seu tailleur versátil, ao
Courreges, a "gramáticà' dos tempos muda: o "chique"
mesmo tempo prático e refinado, não oferece 6 con-
inalterável de Chanel nos diz que a mulher já vivJu (e teúdo do trabalho à leitura (não é um uniforme), mas a
soube viver), o ,"novo" obstinado de Courreges que ela sua compensação, ~ma forma superior de lazer: cruzeiro,
vai viver. iate, carro-leito, enfim viagem, moderna e aristocráti-
O tempo, portanto, que é estilo para uma e moda ca, cantada por Paul Morand e Valery Larbaud. Assim,
para outro, separa Chanel e Courreges. Certa idéia do de todas as modas, o estilo de Chanel talvez seja, para-
corpo também. Não é por acaso que a invenção típica doxalmente, o mais social, pois o que ele combate, o
de Chanel, o tailleur, está bem próxima do vestuário que rejeita, não são -como se acredita- as provoca-
do homem. A indumentária masculina e o tailleur cha- ções futuristas da costura jovem, mas sim as vulgarida-
neliano têm um ideal comum: a "distinção". A "distin- des do vestuário pequeno-burguês: é portanto nas so-
ção", no século XIX, era um valor social; numa socie- ciedades que enfrentam uma necessidade nova de pro-
dade recentemente democratizada, em que se vedava aos moção estética, do tipo Moscou - aonde ela vai -, que
homens das chamadas classes superiores a ostentação Chanel pode vir a ser mais eficaz.
da riqueza- coisa sempre permitida, por procuração, Há, porém, uma contrapartida ao estilo de Chanel:
às esposas -, ela possibilitava "distinguir-se" em todo certo esquecimento do corpo, que parece inteiramente
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refugiado, absorvido na "distinção" social do vestuário.
está nesse condic ional, que põe em jogo o corpo femi-
Não é culpa de Chane l, porqu e, depois que ela come-
nino: condic ional que encon tramo s nos casacos curtís-
çou, surgiu algo novo em nossa sociedade, que os no-
simos (que não desnu dam nada, mas imprim em em
vos costureiros tentam traduzir, codificar: nasceu uma
nós a idéia de uma audácia), na transp arênci a florida
nova classe que não fora prevista pelos sociólogos - a
da bermu da para a noite, nos novos vestidos de baile
juventude. Como o corpo é seu único bem, a juvent u-
de não há de ser vulgar ou "distinta'': ela simple smen- em duas peças, leves como roupas de baixo, nessa
te é. Vejam a mulhe r Chane l: é possível situar seu am- moda sem "laços" (em sentid o própri o e figurado), em
biente, suas ocupações, seus lazeres, suas viagens; vejam que o corpo parece sempr e próxim o, familiar e seduto r,
a mulhe r Courreges: ningu ém pergu nta o que ela faz, fácil e hones to.
quem são seus pais, qual é sua renda; ela é jovem, ne- Assim, de um lado a tradiçã o (com suas renovações
cessária e suficientemente jovem. Ao mesm o tc:mpu interiores) e de outro a inovação (com suas consta ntes
abstrata e material, a moda de Courre ges parece ter as- implícitas); de um lado o classicismo (~inda que sensí-
sumid o uma única função: fazer do vestuário um sig- vel), de outro o moder nismo (ainda que. familiar). Que-
no muito claro de todo o corpo. Signo não é oi;Higato- ro crer que nossa sociedade precisa desse duelo, pois se
riamente exposição (a moda é sempre casta); talvez se empen ha - pelo menos há alguns séculos - em instau -
diga com demasiada freqüência que a saia curta "mos- rá-lo em todos os domín ios da arte e com formas infi-
tra'' os joelhos. As coisas talvez sejam mais compl ica- nitam ente variadas; e se hoje ele explode na moda, com
das. O que deve impor tar a um costureiro como Cour- uma nitidez excepcional, é porqu e a moda també m é
reges não é esse strip tease material com que todos se in- uma arte, tanto quanto a literatura, a pintur a, a música.
dignam , mas sim conferir a todo o vestuário femin ino Bem mais, a compe tição Chane l-Cour reges nos en-
a expressão alusiva que aproxi ma o corpo de nós, mas sina- ou nos confi rma- que hoje, graças ao formid á-
sem nunca o exibir, condu zir-no s a uma relação nova vel impul so dos meios de difusão, como a impren sa, a
com os corpos jovens que nos cercam, sugeri ndo-no s,
televisão, o própri o cinem a, moda não é só o que algu-
por todo um jogo de formas, cores e detalhes - que é
mas mulheres usam, é també m o que todas as mulhe -
justam ente a arte do costureiro -, que poderí amos tra-
res (e todos os homen s) olham e lêem: as invenções de
var relações de amizade com eles. Courreges inteiro
nossos costureiros agradam ou irritam, exatamente como
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80. Systerne de la Mode, Paris, Seuil, 1967. (Trad. bras.: Sistema da moda, trad. Lineide do
Lago S. Mosca, São Paulo, Nacional/Edusp, 1979.)
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nificação. Pode-se dizer que toda a cultura, no sentido Seu estudo, ao que parece, baseia-se em certo paradoxo.
mais amplo, cai no âmbito de uma ciência das signifi- Por que, enquanto a moda põe em jogo sistemas muito va-
cações. Os objetos aparentemente mais utilitários - riados de expressão, em particular a imagem, o senhor op-
culinária, vestuário, moradia- e, com mais razão, os que tou por limitar sua pesquisa à descrição escrita dos vestuá-
têm a linguagem como suporte, como a literatura- boa rios que se encontra em revistas como Ell~ ou Le Jardin des
ou ruim -, as narrativas da imprensa, da publicidade modes? Por que isso? ,
etc., convidam a uma análise semiológica. De início eu tinha pensado em estudar o vestuário
real, que todo o mundo usa na rua. Desisti. Na verda-
É possível distinguir signos totalmente independentes da de, o vestuário de moda é complexo pelo fato de pôr
linguagem? em jogo várias "substâncias": material, fotografia, lin-
Evidentemente, podemos citar sistemas muito ele- guagem ... Ora, não há ainda nenhum trabalho de se-
mentares, como o código viário ou o código de aterris- miologia aplicada. Portanto, era preciso dar primazia aos
sagem de aviões. Mas, pessoalmente, estou convencido problemas de método. Por isso preferi ficar com o ob-
de que o estudo dos signos não-lingüísticos é uma abs- jeto mais "puro" possível para analisar,' ou seja, baseado
tração, uma utopia. A cultura real só propõe objetos numa só "substância'', estudei o vestuário da moda na
impregnados de linguagem humana, seja na forma de maneira como ele é refratado na linguagem escrita das
descrição, comentário, conversação ... A nossa é uma revistas especializadas. Só fiquei com a descrição, ou seja,
civilização do escrito, tanto quanto da imagem. A lin- com a transformação de um objeto em linguagem.
guagem escrita tem funções bem precisas de abstração, Na origem, esse trabalho representava de alguma
conhecimento, escolha dos sentidos. Viver uma civi- maneira o início de um programa geral de semiologia
lização da. imagem pura criaria certa angústia, pois a que teria abrangido todos os sistemas cu}turais de nos-
imagem sempre tem vários sentidos. É por essa razão ~ sa civilização: o vestuário, a culinária, a cidade ... Mas,
que as fotos dos jornais são sempre legendadas: para i sob o impulso das novas pesquisas, esse projeto semio-
diminuir o risco provocado pela multiplicidade de I
t
lógico evolui por si mesmo e chega, especialmente, a
sentidos. formular o problema de seus objetos: tem-se o direito
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de constituir a culinária, por, exemplo, em sistema de estudamos uma linguagem, nós nos chocamos contra
signos? Por mais limitado que seja esse livro sobre a esse obstáculo. Não há outra "prova" da linguagem a
moda, ele formula o problema de saber se existe um não ser sua legibilidade, sua compreensão imediata.
objeto que se chama vestuário de moda. Para pmvar a análise que fazemos de uma linguagem,
sempre somos obrigados a recorrer ao "sentimento lin-
Esse "Sistema da Moda" se decompõe na realidade em dois güístico" de quem fala. De todo modo, minha exterio-
sistemas. ridade em relação à linguagem que analiso é apenas pro-
visória. Minha própria descrição poder~, por sua vez,
De fato. Trata-se de detectar, numa mensagem sim-
passar a ser objeto de outro sistema de explicação mais
ples - a descrição de um vestido da moda-, a sobrepo-
amplo; e mais coerente. Acredito que a semiologia é
sição de vários sistemas de sentidos: por um lado, o que
um procedimento verdadeiro, mas mesmo essa verdade
se poderia chamar de "código indumentária", que regu-
pode tornar-se objeto de outras linguagens. Não tenho
lamenta certo número de usos, e por outro lado a retó-
um sentimento positivista em relação à semiologia, po-
rica, ou seja, o modo como a revista exprime esse códi-
rém histórico.
go, modo este que remete a certa visão do mundo, a uma
ideologia. A análise semiológica permite situar a posição
Seu estudo apresenta-se como uma espécie de sintaxe da se-
da ideologia no sistema geral do sentido, sem, claro, po-
miologia. Esforça-se por criar unidades, regras, categorias.
der ir mais longe, já que a descrição das ideologias par-
O senhor acha que esse método tem valor universal e pode
ticulares é atribuição de outra ciência.
ser aplicado a qualquer objeto?
Qu~ garantia de objetividade tem o semiólogo na andlise Esse procedimento, que, aliás, não é original e vem
que faz dessa retórica? da lingüística, provisoriamente pode ter valor universal
como método de descoberta. Consiste em separar uni-
Evidentemente, a análise da retórica obriga o pes- dades, classificá-las e examinar suas regras de combina-
quisador a apoiar-se em seu próprio sentimento de lei- ção, à maneira de um gramático. É evidente que, se o
tor, o que pode chocar os hábitos positivistas que se ba- objeto muda, o método também deve ser modificado.
seiam na experimentação. A partir do momento em que As classificações serão diferentes.
Qual imagem da moda o senhor extraiu de sua análise? lista. Ela mente. Esconde-se por trás de álibis sociais ou
O título de meu livro, Sistema da moda, não é uma psicológicos.
provocação. Para mim, a moda é, sim, um sistema. Con- Por outro lado, há outra visão da moda, que consis-
trariando o mito da improvisação, do capricho, da fan- te em renunciar a esse sistema de equivalência e em edi-
tasia, da criação livre, percebe-se que a moda é forte- ficar uma função propriamente abstrata ou poética. É
mente codificada. É uma combinação com uma reser- umi moda ociosa, luxuosa, mas'que tem o mérito de se
va finita de elementos e regras de transformação. O declarar como forma pura. Nesse sentido, aproxima-se
conjunto dos traços de moda é extraído todo ano de da literatura. Um exemplo apaixonante dessa junção foi
um conjunto de traços que tem suas injunções e suas re- dado por Mallarmé, que redigiu sozinho uma pequena
gras, como a gramática. São regras puramente formais. revista de moda, La Derniere Mode, ;que se apresenta
Por exemplo, "há associações de elementos de vestuário como uma verdadeira revista de moda, com descrições
que. são permitidas, outras que são vedadas. Se a moda de vestidos, tais como as que se encontram - sem levar
nos parece imprevisível, é porque nos situamos num em conta o talento- na revista Elle. Mas, ao mesmo tem-
plano de memória humana curta. A partir do momen- po, essas descrições são, para o autor, um exercício pro-
to em que ampliamos sua dimensão históri,ca, depara- fundo, quase metafísico, sobre o tema mallarmeano do
mos com uma regularidade profu.1da. nada, do bibelô, da inanidade. É um vazio que não é ab-
A segunda imagem da moda que extraí de minha surdo, um vazio construído como um sentido.
análise é mais ética, mais comprometida com minhas
próprias preocupações. Verifiquei que há duas modas. Em seu prefácio o senhor diz que sua pesquisa é }'á data-
Por um lado, a moda tenta estabelecer uma correspon- da': Como vê isso?
dência entre o vestuário descrito e usos, características, Esse estudo baseia-se em conceitos operacionais -
estações, funções: "Um vestido para a noite, para as com- "signo, significante, significado" -: que, se não foram
pras, para a primavera, para a estudante, para a garota contestados, foram pelo menos co~sideravelmente re-
descontraída ... " Nesse caso, a arbitrariedade da moda é modelados nos últimos anos por pesquisas como as de
evitada, mascarada sob esse léxico racionalista, natura- Lévi-Strauss ou de Lacàn. Esse vocabulário está sendo
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j.
I Inéditos I
LEMONDE
19 de abril de 1967
Entrevista a Frédéric Gaussen por ocasião
da publicação de Systeme de la Mode
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