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RESISTÊNCIA, ENGAJAMENTO E FEMINISMO EM


CASAMENTO, DE ADÉLIA PRADO, E EM UM ÚTERO É
DO TAMANHO DE UM PUNHO, DE ANGÉLICA FREITAS

Mateus Antenor Gomes (UFMS)

RESUMO: Na tradição literária brasileira, constata-se que a escrita de autoria


feminina não ocupa um lugar em igualdade à de autoria masculina. Tal fato resulta
da influência exercida pela estrutura social sobre a literatura, visto que literatura e
sociedade mantêm uma relação dialética de troca de influxos. A literatura das
mulheres, portanto, ocupa uma posição de oprimida no cânone. Desta posição
oprimida, sustentada pelo discurso dominante, surge uma literatura de resistência,
fundada como discurso artístico de oposição a esta ideologia dominante. Esta poesia
de resistência feminina, nos termos aqui estipulados, surge a partir de uma
concepção existencialista (SARTRE, 1978) da liberdade do ser humano, na qual o
sujeito se constitui a partir das suas escolhas e seus projetos e, escolhendo-se, o
sujeito se faz engajado socialmente. Ademais, nessa poesia de resistência e engajada
a partir da concepção da liberdade de escolher, a mulher, enquanto eu-lírico,
assume-se como um vir-a-ser, fazendo-se autônomo e responsável pela imagem
refletida socialmente pelas suas escolhas. Nessa perspectiva, o objetivo do presente
estudo consiste em observar duas manifestações poéticas de autoria feminina – o
primeiro poema, não intitulado, do livro Um útero é do tamanho de um punho, de
Angélica Freitas, e o poema Casamento, de Adélia Prado –, desvelando como cada
um dos poemas manifesta um discurso de resistência, distinto e talvez até paradoxal,
à estrutura social patriarcal e machista. Deste modo, revela-se a autonomia e a
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liberdade destes eu-líricos para construírem seus próprios projetos. Para tanto foi
utilizado um percurso analítico-crítico, observando como os eu-líricos,
assumidamente femininos, constituem, a partir de suas escolhas, diferentes formas
de materialização de uma poesia de resistência, tornando-se engajados em uma
práxis feminista, visto que, em literatura, palavra e ação mantêm estreita relação.
PALAVRAS-CHAVES: Adélia Prado; Angélica Freitas; Poesia de resistência;
Engajamento; Feminismo.

ABSTRACT: In the Brazilian literary tradition, it is noted the the writing of female
authorship does not occupy a place in equal to male authorship. This fact results
from the influence exerted by the social structure on the literature, since the
literature and society maintain a dialectic relationship of exchange of inflows.
Women's literature, therefore, occupies a position of being oppressed in the canon.
This position has been oppressed, sustained by the dominant discourse, a literature
of resistance is founded as an artistic discourse of opposition to this dominant
ideology. This poetry of female resistance, under the terms herein, arises from an
existentialist conception (SARTRE, 1978) of the freedom of the human being, in
which the subject is constituted on the basis of their choices and their projects, and
choosing, the subject is socially engaged. Furthermore, this poetry of resistance and
engaged from the conception of freedom of choice, the woman, while I-lyrical, it
assumes as a come-to-be, becoming autonomous and responsible for the reflected
image socially by their choices. In this perspective, the aim of this study is to observe
two poetic manifestations of female authorship – the first poem, not a book entitled,
The uterus is about size of a fist - Angélica Freitas, and the poem Wedding -Adelia
Prado revealing how each one of the poems expresses a discourse of resistance,
distinct and perhaps even paradoxical, the patriarchal social structure and sexist. In
this way, it is the autonomy and freedom of this I-lyrical to build their own projects.
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For both it was used an analytical-critical path, watching as the I-female lyrical,
admittedly, constitute the basis of their choices, different forms of materialization
of a poetry of resistance, becoming engaged in a feminist praxis, since, in literature,
word and action keep close relationship.
KEY-WORDS: : Adélia Prado; Angélica Freitas; of Resistance; Commtment;
Feminism.

INTRODUÇÃO

Na historiografia da literatura brasileira, observa-se que a


escrita de autoria feminina não detém a posição sólida, dentre o
cânone de grandes escritores, que deveras. Desta mesma forma, a
representação do gênero feminino nas obras de autoria masculina é
sempre dirigida por uma perspectiva de Outro, sendo o feminino
constituído aos moldes de uma sociedade machista e sexista. Assim,
tanto a escrita feminina quanto a representação da mulher na escrita
masculina indicam a existência de opressão de gênero na literatura.
Nesta mesma linha de opressão e desigualdade entre gêneros,
subjacente à produção literária, circulam um conjunto de influências
sociais, econômicas e culturais que interferem direta e indiretamente
na produção da obra, sua difusão e consagração. Pensando, doravante,
a relação existente entre a literatura e a sociedade, sabe-se que há uma
troca de influências, de caráter dialético, entre as artes e as estruturas
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históricas, sociais e econômicas (CANDIDO, 1976). Sendo assim, a
opressão ao gênero feminino ocorre na esfera social e se estende à
literária; da mesma forma, da literária retorna à social em forma de
silenciamento, de não representação e subalternidade.
Na sociedade, por outro lado, crescem os movimentos de
militância que lutam pelo estabelecimento de um lugar de igualdade
para a mulher na sociedade, resistindo à opressão, à discriminação e
à desigualdade de gêneros. Isto resulta, em última instância, na luta
pela liberdade, ou seja, uma busca pela autonomia de todos os seres
humanos, independente de gênero, para se constituírem enquanto
sujeitos. Dada à relação sociedade-literatura, esta tendência de
militância é transfigurada, nas obras de autoria feminina, em formas
artísticas de resistência. A luta pela liberdade e autonomia do gênero
feminino aparece na literatura ora como temáticas, ora como
estruturas e ora como união das duas anteriores. Assim, o discurso
artístico se sustenta uma oposição – humanizada, intelectualizada,
ética e estética – aos discursos marcados pela ideologia machista e
sexista.
Nessa perspectiva, o objetivo do presente artigo consiste em
observar no primeiro poema, não intitulado, do livro Um útero é do
tamanho de um punho, de Angélica Freitas, e no poema Casamento,
de Adélia Prado, as diferentes formas de resistência ao discurso
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dominante que permeiam o discurso literário. Assim, é possível
observar a postura engajada socialmente, a partir dos preceitos
teóricos do feminismo, que defende a liberdade e autonomia feminina,
ponderando para a impossibilidade de se “afirmar a primazia de um
dos sexos quanto ao papel que desempenha na perpetuação da
espécie.” (BEAUVOIR, 1960, p. 56).
Diante dessas pretensões, foi utilizado um método crítico-
analítico que observou como a estrutura dos poemas e seus
respectivos temas se desenvolvem, fundando um discurso de
resistência. Deste modo, foi possível compreender a construção de
imagens poéticas referentes à força de resistir, ser livre e autônoma
das mulheres. Ou seja, trata-se de um estudo poético que versa para
poesia de resistência, observando o jogo imagético que cria a
resistência.
Este estudo, tendo os apontamentos anteriores em vista, divide-
se em três etapas: 1- Resistência, engajamento e feminismo; 2- A
autonomia feminina nas relações conjugais e sociais: Casamento, de
Adélia Prado; e 3- A militância feminista em Um útero é do tamanho
de um punho, Angélica Freitas. A primeira etapa, por sua vez, destina-
se à descrição dos conceitos – advindos dos estudos do gênero poético,
do existencialismo e da teoria feminista – que instrumentalizam a
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análise – desenvolvida nas duas outras etapas – da resistência
feminina nos poemas.

RESISTÊNCIA, ENGAJAMENTO E FEMINISMO

O desenvolvimento da literatura, ao longo de toda a tradição


remonta, ora mais e ora menos, para uma forma poética que, de algum
modo, opõe-se e resiste à estrutura dominante. Trata-se, portanto, de
uma poesia de resistência. Todavia, resistir, enquanto verbo transitivo
indireto, exige complemento: quem resiste, resiste a algo. Surge, então,
a pergunta: a que ou a quem a poesia resiste?. A existência dessa
poesia que se constitui enquanto discurso de resistência (dado que os
significados se constituem a partir da diferença) pressupõe,
consequentemente, a existência de um discurso – oposto àquele –
ideologicamente conservador e opressor. Assim, compreende-se que a
poesia de resistência se opõe à ideologia dominante, isto é, contra-
ataca, visto que o poema é uma palavra-ação, os mecanismos
discursivos e ideológicos de opressão.
As estruturas opressoras, nessa segmentação, são legitimadas
via produções discursivas que a difundem e, ao mesmo tempo,
escondem seus efeitos e suas funções burocratizantes. Ou seja, funda-
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se um mecanismo de garantia da manutenção de um sistema desigual
e desumano. Em última instância, o discurso burguês e opressor – ao
qual cumpre a poesia o dever de resistência – é materializado,
prioritariamente, a partir de um eixo ideológico, que:

Não aclara a realidade: mascara-a, desfocando a


visão para certos ângulos mediante termos
abstratos, clichês, slogans, ideias recebidas de outros
contextos e legitimadas pelas forças em presença. O
papel mais saliente da ideologia é o de cristalizar as
divisões da sociedade, fazendo-as passar por
naturais; depois, encobrir, pela escola e pela
propaganda, o caráter opressivo das barreiras; por
último, justificá-las sob nomes vinculantes como
Progresso, Ordem, Nação, Desenvolvimento,
Segurança, Planificação e até mesmo (por que não?)
Revolução. A ideologia procura compor a imagem de
uma pseudototalidade, que tem partes, justapostas
ou simétricas ("cada coisa em seu lugar", "cada
macaco no seu galho"), mas que não admite nunca
as contradições reais. (BOSI, 1983, p.144-5)

Destarte, a função da poesia de resistência – engajada,


consciente e libertadora – é, a priori, criar formas de expressão capazes
de desvelar as falsas verdades criadas pela ideologia. E, a posteriori,
proporcionar, por meio do efeito estético, uma transgressão de
situações-limites na experiência do leitor, ou seja, ser um instrumento
que nomeia e cria possibilidades de transformação subjetiva e social.
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Assim, “resistir é subsistir no eixo negativo que corre do passado para
o presente; e é persistir no eixo instável que do presente se abre para
o futuro.” (BOSI, 1983, p. 191). Isto é, a poesia de resistência nega a
estrutura cristalizada, a ideologia dominante (passado-presente) e,
portanto, afirma a transgressão e a transformação possíveis: a
liberdade (o eixo presente-futuro).
O que se entende por resistência em poesia é a produção de um
discurso (artístico) que se constitui esteticamente, mas que, na medida
em que nomeia esse tema, cria a própria resistência. Ou seja, poesia
de resistência é uma forma irreproduzível e única encontrada pelo
poeta para nomear aquilo que não se pode expressar por conceitos
advindos da ideologia dominante e da indústria cultural. Essa contra
ideologia, transgressora e libertadora, exige a criação de uma forma,
uma estrutura única e original, sendo as imagens poéticas o
mecanismo encontrado para se ser essa matéria inominável, isto é,
“essa imagem é uma criação, algo que não estava no sentimento
original, algo que criamos para nomear o que não tem nome e o que é
indizível” (PAZ, 1982, p. 204). Desta forma, irreproduzível, dizendo o
indizível por meio das imagens poéticas e inteiramente original:

A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie


e caos, "esta coleção de objetos de não amor"
(Drummond). Resiste ao contínuo "harmonioso"
pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo
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gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste
aferrando-se à memória viva do passado; e resiste
imaginando uma nova ordem que se recorta no
horizonte da utopia. (BOSI, 1983, p. 145)

Sons, ritmos, rimas, assonâncias, aliterações, metáforas,


metonímias, comparações e outras figuras de linguagem são
utilizadas e trabalhadas esteticamente para desconstruir o discurso
dominante cristalizado. Trata-se de produzir um efeito estético para
causar uma transformação ética: desmascarar a opressão subjacente
e desconstruir o discurso dominante para construir um discurso
poético de oposição, em qualidade libertador. A poesia de resistência
constrói imagens poéticas que desvelam as amarras sociais, levando o
leitor à transgressão. Isto significa que a poesia possibilita o leitor dar
um “salto” rumo à liberdade que está na “outra margem” (PAZ, 1982,
p. 148).
Ainda, na poesia de resistência coexiste, além do sentido e essa
função de oposição, um sentido utópico e esperançoso perante a
vivência e a experiência do ser humano. Ou seja, a poesia de
resistência acredita, acima de tudo, na capacidade do ser humano de
projetar o seu destino e de constituir, a partir de suas escolhas,
enquanto sujeito livre. Isto porque:
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A resistência tem muitas faces. Ora propõe a
recuperação do sentido comunitário perdido (poesia
mítica, poesia da natureza); ora a melodia dos afetos
em plena defensiva (lirismo de confissão, que data,
pelo menos, da prosa ardente de Rousseau); ora a
crítica direta ou velada da desordem estabelecida
(vertente da sátira, da paródia, do epos
revolucionário, da utopia). (BOSI, 1983, p. 143-4).

Portanto, segmentando este conceito de poesia de resistência,


percebe-se que subjaz uma perspectiva de engajamento social. A
resistência pressupõe o engajamento, visto que não se resiste sem
assunção histórica-social e responsabilidade. Deste modo, pensar
engajamento no presente estudo, passa por uma perspectiva
existencialista: para haver engajamento é preciso compreender a
fundo a liberdade do ser humano e como as escolhas significam para
o sujeito e para sociedade.
O existencialismo, em suas proposições teóricas mais
desenvolvidas, concebe que o ser o humano não possui uma natureza
humana pré-estabelecida, isto é, não existe uma essência definida a
priori: “a existência precede à essência, [...] [sendo] necessário partir
da subjetividade” (SARTRE, 1978, p. 5). Assim, cumpre ao ser humano,
projetar-se a ser: no início todo ser é nada, mas, existindo, vai se
construindo por suas escolhas.
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Nessa perspectiva, as escolhas cabem inteiramente e
unicamente a cada sujeito, destacando-se a liberdade e a
responsabilidade individual. Todos os seres da espécie humana estão
sujeitos à liberdade: cada um é responsável por escolher, por tomar
decisões, por assumir e, em última instância, por criar o próprio
destino. Assim, ao escolher, o ser humano é responsável por si e por
toda humanidade, pois:

“ao afirmarmos que homem se escolhe a si mesmo,


queremos dizer que cada um de nós se escolhe, mas
queremos dizer também que, escolhendo-se, ele
escolhe a todos os homens. De fato, não há um único
de nossos atos, que, criando o homem que queremos
ser, não esteja criando, simultaneamente, a imagem
do homem tal como julgamos que ele deva ser.
Escolher ser isto ou aquilo é afirmar,
concomitantemente, o valor do que estamos
escolhendo” (SARTRE, 1978, p. 6-7).

Então, da responsabilidade humana de se escolher, surge a


projeção dos valores avaliados como corretos, ou seja, a escolha é uma
forma de engajamento e, assim, engajar-se pressupõe a escolha.
Engajamento e escolha são fatores complementares e dependentes:
não há escolha sem engajamento tampouco há engajamento sem
escolha. Portanto, compreende-se que todo cidadão, ao escolher e se
engajar, é responsável por si e por todos os outros, visto que “existe
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sempre, para o covarde, uma possibilidade de não mais ser covarde, e,
para o herói, de deixar de o ser. O que conta é o engajamento total, e
não é com um caso particular, uma ação particular, que alguém se
engaja totalmente.” (SARTRE, 1978, p.14-15). Assim, a poesia de
resistência, aqui compreendida, pressupõe uma perspectiva engajada:
para resistir a poesia traz, em si, uma escolha engajada, que apresenta,
através da estética, uma imagem do que se considera uma forma de
pensar correta e ética.
Então, para resistir e se engajar, a poesia de autoria feminina
aponta para autonomia e liberdade, independente de gênero, de todos
os sujeitos. Deste modo, para a poesia se opor à ideologia – machista
e sexista – dominante, é imprescindível uma postura engajada
(pensando a responsabilidade de se escolher pela resistência),
objetivando afirmar a igualdade entre todos os seres humanos e a,
consequente, autonomia.
Nessa perspectiva, na literatura e na sociedade, a mulher foi
travestida em “senão a escrava do homem ao menos sua vassala; os
dois sexos nunca partilharam o mundo em igualdade de condições; e
ainda hoje, embora sua condição esteja evoluindo, a mulher arca com
um pesado handicap.” (BEAUVOIR, 1960, p. 14). Nessa relação Um-
Outro, materializaram-se discursos verticais, como uma via de mão
única, já que o homem se elegeu como Um e impôs a mulher o papel
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de outro, esquecendo-se que nas relações humanas cada sujeito
desfruta de plena liberdade para construir seus projetos: cada ente faz
sua escolha. Deste modo, os projetos de organização de uma sociedade
bipartida por gêneros não são cabíveis para humanidade, visto que
“para que o Outro não se transforme no Um é preciso que se sujeite a
esse ponto de vista alheio.” (BEAUVOIR, 1960, p. 12).
Deste modo, a poesia de resistência, considerando os conceitos
históricos e biológicos de divisão de gênero apenas operações
discursivas, afirma que a definição do papel e do lugar do gênero
feminino cabe tão somente as mulheres. Ou seja, por meio desta
vertente de escrita, constitui-se um “vir-a-ser” mulher, pois “é
escolhendo-se através do mundo que o indivíduo se define; é para o
mundo que nos devemos voltar a fim de responder às questões que
nos preocupam.” (BEAUVOIR, 1960, p. 69).
Nessa questão feminista, portanto, coexiste uma postura de
engajamento: diante da liberdade, as mulheres se fazem angustiadas
pela responsabilidade de assumir/escolher um papel transcendente,
reafirmando a sua autonomia, a igualdade de possibilidades e a
consequente reciprocidade entre gêneros. Isto porque, como aponta
Simone Beauvoir (1960, p. 22-3):

Todo sujeito coloca-se concretamente através de


projetos como uma transcendência; só alcança sua
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liberdade pela sua constante superação em vista de
outras liberdades; não há outra justificação da
existência presente senão sua expansão para um
futuro indefinidamente aberto. Cada vez que a
transcendência cai na imanência, há degradação da
existência em "em si", da liberdade em facticidade;
essa queda é uma falha moral, se consentida pelo
sujeito. Se lhe é inflingida, assume o aspecto de
frustração ou opressão. Em ambos os casos, é um
mal absoluto. Todo indivíduo que se preocupa em
justificar sua existência, sente-a como uma
necessidade indefinida de se transcender. Ora, o que
define de maneira singular a situação da mulher é
que, sendo, como todo ser humano, uma liberdade
autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em
que os homens lhe impõem a condição do Outro.
Pretende-se torná-la objeto, votá-la à imanência,
porquanto sua transcendência será perpetuamente
transcendida por outra consciência essencial e
soberana. O drama da mulher é esse conflito entre a
reivindicação fundamental de todo sujeito que se
põe sempre como o essencial e as exigências de uma
situação que a constitui como inessencial.

Ser mulher constitui, então, fazer-se engajada de acordo com


cada situação, pois escolhendo todo sujeito se projeta a ser, projeta a
sua liberdade em comunhão com a liberdade do outro, fundando-se
uma perspectiva humanizada e pautada na reciprocidade. Deste
modo, “a mulher não é uma realidade imóvel, e sim um vir-a-ser; é no
seu vir-a-ser que se deveria confrontá-la com o homem, isto é, que
deveria definir suas possibilidades.” (BEAUVOIR, 1960, p. 54). Assim,
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poesia de resistência, engajada com questão feminina, funda oposição
ao discurso machista, sendo a autoria feminina e, por conseguinte, a
representação de feminino resultados de uma tomada de postura em
favor da liberdade de gêneros.

A AUTONOMIA FEMININA NAS RELAÇÕES CONJUGAIS E


SOCIAIS: CASAMENTO, DE ADÉLIA PRADO

Adélia Prado é uma poetisa mineira que estreou na carreira


literária aos quarenta anos, tendo uma vida marcada pela simplicidade
do cotidiano de uma esposa e dona de casa. Nessa linha, os temas
cotidianos, afetivos e comuns são predominantes em toda sua obra. A
questão da representação feminina toma rumos polêmicos, visto que
a imagem da mulher muitas vezes é atrelada às experiências do
ambiente familiar, no entanto, “embora haja certo espelhamento entre
a mulher mineira e a voz feminina da maioria dos poemas, o papel
vivido ficcionalmente não equivale ao da realidade” (GOMES, 2012, p.
12). Aqui, observa-se, no poema Casamento, como este espaço familiar
e cotidiano é ocupado por um eu-lírico feminino que, embora inserido
em um lócus normalmente opressor e machista, afirma a sua
liberdade:
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Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva. (PRADO, 1991, p. 252)

O poema, em um nível superficial de análise, aborda como


temática as relações afetivas e o cotidiano de um casal, tendo a
simplicidade como eixo distintivo tanto no conteúdo quanto no estilo.
O ritmo – dada a organização sintática um tanto objetiva, a pontuação
demarcando bem o tom de leitura e o caráter narrativo – revela uma
construção estilística baseada na dinamicidade e na leveza. O plano
semântico, também, aponta ao simples: a atividade cotidiana de um
casal. Assim, aviva-se, por intermédio da leitura, um emaranhado de
afetividade, criando uma atmosfera romântica. Por fim, a simplicidade
do amor do casal é adjetivada com a sinestesia do silêncio (plano
auditivo) se movimentando (transcendendo ao plano visual), com a
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comparação (silêncio e rio profundo) e a metáfora ( “coisas prateadas
espocam”). Assim, com figuras de linguagem e simplicidade rítmica,
somadas ao plano temático, cria-se um jogo de imagens poéticas que
dão uma atmosfera de amor, afetividade e reciprocidade entre
amantes.
Pensando em pormenores: no início do poema, o eu-lírico
utiliza-se de um discurso direto para apresentar um ponto de vista
acerca das relações conjugais (“há mulheres que dizem:/ Meu marido,
se quiser pescar, pesque,/ mas que limpe os peixes.”), porém não
partilha desta perspectiva nem, tampouco, a julga. Tal discurso traz,
em si, uma perspectiva afirmante da liberdade e autonomia
conquistadas, em partes, pelas mulheres (liberdade para dizer não). O
eu-lírico, por sua vez, apresenta uma perspectiva distinta – “Eu não. A
qualquer hora da noite me levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e
salgar.” (PRADO, p. 252), trabalhando, portanto, com pensamentos
opostos, lado a lado, sem julgamento ou juízo de valor, apenas
escolhendo a forma que, subjetivamente, parece-lhe mais adequada.
Nesta linha, a concepção acerca do feminino é de um ser
constitutivo, fundando um vir-a-ser a partir das suas escolhas e,
escolhendo-se, constrói a imagem de mulher que orienta suas ações.
Destarte, o eu-lírico se assume como mulher livre, engajada e
autônoma. Isto ocorre por que o sujeito, diante da sua liberdade,
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escolhe por uma reciprocidade entre conjugues, mas mantém a sua
autonomia de decisão, uma vez que age de acordo com sua
subjetividade: não se curva a opinião de outras mulheres (“há
mulheres que dizem:/ Meu marido, se quiser pescar, pesque,/ mas que
limpe os peixes.”) e, tampouco, ao homem, visto que ele ocupa uma
posição secundária.
Além da alegada igualdade entre gêneros, constatada por meio
da reciprocidade e afetividade existente nas escolhas – autônomas e
livres – do eu-lírico feminino, pode-se observar também um caráter
econômico e social subjacentes às escolhas da mulher e seus projetos
de sujeito, já que o eu-lírico “define-se como ser humano em busca de
valores no seio de um mundo de valores” (BEAUVOIR, 1960, p. 72).
Isto acontece porque – sendo a produção e tratamento do alimento
relações de trabalho – o eu-lírico feminino e o homem desempenham
funções essenciais para a manutenção fisiológica da vida: “A qualquer
hora da noite me levanto,/ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar”. E,
diante da sua escolha de se fazer presente no trabalho de limpar os
peixes, a mulher eu-lírico “se põe sempre como o essencial”
(BEAUVOIR, 1960, p. 23). A essencialidade do feminino se confirma,
no estilo, pela gradação das etapas de processamento do peixe
(escamar, abrir, retalhar e salgar), na qual ambos (homem e mulher)
participam de todas as etapas do processamento do alimento.
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O eu-lírico, por essa construção poética, desloca-se da posição
de Outro – a qual as mulheres foram condenadas pela história
ocidental – para a posição de Um, convivendo em estado de igualdade
com o Um do homem. Assim, “a mulher não é uma realidade imóvel,
e sim um vir-a-ser; é no seu vir-a-ser que se deve confrontá-la com o
homem, isto é, que se deve definir suas possibilidades.” (BEAUVOIR,
1960, p. 54). E no convívio afetivo, social e econômico entre os sexos,
surge a possibilidade de os sujeitos se estabelecerem – acima de
qualquer distinção de gêneros – como seres humano.
Tem-se, por fim, uma posição de engajamento total com
autonomia feminina, pois as ações da mulher são guiadas por projetos
e escolhas autônomas e subjetivas, visto que “escolhendo-se, el[a]
escolhe a todos os homens.” (SARTRE,1978, p. 6). A experiência do eu-
lírico – sujeito feminino – é constituída na sua “relação com o mundo;
é escolhendo-se através do mundo que o indivíduo se define; é para o
mundo que nos devemos voltar a fim de responder às questões que
nos preocupam.” (BEAUVOIR, 1960, p. 69). E ao se fazer engajada –
por meio da escolha subjetiva – o eu-lírico se faz feminista, pois
apresenta uma imagem de mulher enquanto sujeito livre e autônomo
para decidir seu destino e conviver em igualdade com todos os seres
humanos, acima de qualquer divisão de gênero. Destarte, o poema
constitui um discurso de resistência, tendo uma perspectiva utópica
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frente à divisão sexista: os seres humanos podem se constituírem
iguais – através da reciprocidade – em suas relações afetivas
(representadas no poema pelo casamento) e sociais (representadas
pelas relações de trabalho de processamento do alimento). O poema
traz, desta forma, traços de resistência, sendo a fala da poetiza “mais
forte ou mais clara do que o gemido da criatura opressa, [...] porque
desta, e só desta, recebeu o fôlego para gritar.” (BOSI, 1983, p. 181).

A MILITÂNCIA FEMINISTA EM UM ÚTERO É DO TAMANHO DE


UM PUNHO, ANGÉLICA FREITAS

Angélica Freitas nasceu em Pelotas-RS, teve formação


acadêmica em jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul e publicou seu primeiro livro, Rilke Shake, em 2007. Com uma
experiência cosmopolita, visto que conheceu e morou em diversos
países, sua obra aborda temas de caráter universal, como “
os projetos totalizadores da modernidade” (HAYASHI, 2015, p.
129) e “questões de gênero, sexualidade e nacionalidade.” (HAYASHI,
2015, p. 129). No livro Um útero é do tamanho de um punho,
sobressaem-se as temáticas que versam sobre divisão sexista da
sociedade e/ou sobre o (não) lugar da mulher na sociedade. Trata-se
de um livro que assume esteticamente um compromisso com a ética.
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Neste trabalho, dadas suas dimensões, objetiva-se observar a
configuração da resistência, marcada pelo discurso feminista, no
poema – não intitulado – de abertura do livro Um útero é do tamanho
de um punho:

porque uma mulher boa


é uma mulher limpa
e se ela é uma mulher limpa
ela é uma mulher boa

há milhões, milhões de anos


pôs-se sobre duas patas a mulher
era braba e suja
braba e suja e ladrava

porque uma mulher braba


não é uma mulher boa
e uma mulher boa
é uma mulher limpa

há milhões, milhões de anos


pôs-se sobre duas patas
não ladra mais, é mansa
é mansa e boa e limpa. (FREITAS, 2012, p. 08).

Constata-se que o poema traz uma linguagem cotidiana, fluída,


bastante musical, agradável e marcante, destacando-se – para isto – as
repetições e os paralelismos. A simplicidade, fator destacável, é
transformada em recurso estilístico para que se possa abordar de
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forma estética a temática da condição feminina na sociedade, fazendo
desse tabu matéria de poesia.
Por outro lado, como assunto abordado artisticamente,
predominam paradigmas sociais – estipulados e materializados por
um discurso ideologicamente marcado pelo machismo e pelo
patriarcalismo – acerca do gênero feminino. Nesta perspectiva, é
desvelado um parâmetro de mulher enquanto simulacro da beleza,
limpeza e pacificidade: “e uma mulher boa/é uma mulher limpa”; “é
mansa e boa e limpa”. A mulher, desta forma, é transformada em
objeto e subalternada aos gostos e exigências de uma sociedade
majoritariamente preconceituosa e sexista.
Na disposição estrófica, por sua vez, nota-se a presença de um
conflito, um entrechoque e (por que não?) um paradoxo: a primeira
estrofe apresenta um modelo de mulher subalterna, oprimida e
dominada e, contrariamente, a segunda apresenta – tal como nos
primórdios da espécie humana – uma visão da mulher livre, tomada
por extintos e valente; a terceira estrofe apresenta, em um nível
interno, um sistema contraditório semelhante (ao das duas estrofes
iniciais) entre os dois primeiros e os dois últimos versos (“uma mulher
braba/ não é uma mulher boa” v.s. “uma mulher boa/ é uma mulher
limpa”); e, na quarta estrofe, a contradição mantém a mesma linha de
construção opositiva: a mulher padronizada pela sociedade machista
383
vs. a mulher livre dos tempos remotos da humanidade. Assim, abstrai-
se com essa organização do poema, que o eu-lírico coloca em
discussão, através da aproximação destes opostos, a validade dos
modelos de comportamento impostos pela sociedade às mulheres
Portanto, dada a complexidade da relação entre a estrutura e o
conteúdo no poema, constata-se uma transcendência artística,
negando a possiblidade de categorização e redução da mulher a
determinados paradigmas sociais, visto que só o contraditório é capaz
de produzir imagens poéticas que possam reproduzir os valores de
liberdade subjacentes ao feminino. Trata-se de uma união coerente e
sistemática – entre uma estrutura de contradição e o polêmico tema
da condição feminina – para contestar a validade do discurso proferido
e sustentado pela ideologia dominantemente masculina. Deste modo,
em última instância, têm-se indícios de uma ironia no interior da obra:
os dois discursos são aproximados de forma paradoxal, negando o
primeiro com o segundo e vice-versa. Assim, a predominância dessa
afirmação-negação, juntamente com o efeito de paralelismo criado
pela repetição dos termos contrários, direciona quase a um nonsense.
Desta forma, a ironia e o nonsense transformam o poema em
uma construção que contesta e (des)significa o discurso e a ideologia
machista e patriarcal. A partir dessa estrutura, compreende-se que o
poema se constitui como oposição ao discurso da ideologia
384
dominante, pois surge uma “crítica velada da desordem estabelecida
(vertente da sátira, da paródia, do epos revolucionário, da utopia)”.
(BOSI, 1983, p. 143-4). Ademais, projeta-se a imagem poética da
mulher como um sujeito irredutível às amarras impostas pela
sociedade, ou seja, o feminino é representado pela autonomia e pela
liberdade. Cabendo, logo, a mulher “realizar-se como transcendência;
trata-se de ver, então, que possibilidades lhe abrem o que se chama
atitude viril e atitude feminina” (BEAUVOIR, 1960, p. 71).
Em última instância, a obra leva o leitor – por meio do efeito
estético, prazeroso, mas que reveste, ao mesmo tempo, a crítica velada
ao problema social – a uma espécie de compreensão da condição, da
liberdade e da autonomia feminina. Deste modo, esta configuração
possibilita que o leitor passe por um “salto mortal” e atinja, enfim, a
“outra margem” (PAZ, 1982, p. 148), compreendendo que a
constituição do feminino cabe unicamente às mulheres, através das
suas escolhas e seu engajamento.

CONCLUSÃO

Por meio das análises, instrumentalizadas pelos conceitos de


poesia de resistência, engajamento e feminismo, dos poemas de Adélia
Prado e Angélica Freitas, pode-se constatar que, embora distintos,
385
ambos apresentam uma forma de utilização do discurso literário para
se opor ao discurso e à ideologia dominante. Casamento, de Prado,
trazendo a rotina familiar para o estreito campo das matérias poéticas,
consegue revelar a liberdade e autonomia existentes na ação do eu-
lírico, visto que escolhe participar da limpeza dos peixes, fazendo-se
engajado por meio da afirmação da liberdade e das escolhas
autônomas e subjetivas. Já o poema de Angélica Freitas analisado, por
sua vez, apresenta uma perspectiva militante em nome da contestação
das injustiças cometidas contra as mulheres; para tanto aposta em um
jogo entre ironia e nonsense, esvaziando de sentido todo o discurso e
a ideologia dominante, ou seja, uma estrutura que critica, por meio de
artifícios estilísticos, linguísticos e poéticos, a estrutura dominante.
Dadas às grandiosas diferenças e dimensões, os dois poemas aqui
estudados são exemplares de uma poesia de resistência, visto que, em
Adélia Prado, apresenta-se uma visão utópica da possibilidade de
igualdade de gêneros e, em Angélica Freitas, uma critica velada à
ideologia patriarcal e machista. Portanto, ambos eu-líricos se
constituem engajados na luta pela liberdade e autonomia feminina.

REFERÊNCIAS:
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BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1960a.
BOSI, A. O ser e o tempo na poesia. São Paulo: Cultrix, 1983.
CANDIDO, A. Literatura e sociedade. 5 ed. São Paulo: Editora
Nacional, 1976.
FREITAS, A. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac
Naify, 2012.
GOMES, P. P. Adélia Prado: a poesia e o flagrante do belo. Rio de
Janeiro, 2012. Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas) –
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2012.
HAYASHI, G. J. I. Dispositivos foucaultianos em “Uma canção popular
(séc. Xix-xx)”, de Angélica Freitas. Revista Versale: Curitiba-PR, V. 3,
n° 4, p. 128-141, 2015.
PAZ, O. O Arco e a Lira. Trad. Olga Salvari. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1982.
PRADO, A. Poesia Reunida. São Paulo: Siciliano, 1991
SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo. Trad. Vergílio
Ferreira. In: Col. Os Pensadores, 2ª ed. - Vol. Sartre. São Paulo: Abril
Cultural, 1978.

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