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Doutrina O CONTRATO DE COMPRA E VENDA NO CODIGO CIVIL VENDA DE BENS ALHEIOS — VENDA COM EXPEDICAO. Pelo Doutor Raul Ventura SUMARIO: Venda de bens alheios: 1. Nulidade da venda de bens alheios. 2. Situagdo do proprie~ tdrio da coisa vendida por outrem. 3. Contrato-promessa de venda de coisa alheia. 4. Pressupostos da nulidade do contrato: a) venda de coisa alheia; b) caréncia de legitimidade do vendedor. 5. Invo~ cabilidade da nulidade do contrato. 6. Convalidagao do contrato nulo ¢ factos impeditivos desta. 7. Obrigagto de o vendedor convalidar 0 contrato nulo. 8. Restituigao do prego e restituigao da coisa vendida. 9. Obrigasaes de indemnizar com fundamento na nulidade do con- trato. 10. Incumprimento da obrigacao de convalidar o contrato. 11. Nulidade parcial. 12. Convencbes derrogatbrias do regime legal. 13. Nulidade do contrato e garantia da eviccao. Venda com expedigéo: 1. O art. 797° do Cédigo Civil; antecedentes e paralelos. 2. Determinagio da hipétese prevista nos artigos 797°, 890° n° 2 e 922.°-A) Convengio das partes como fonte do dever de trans~ portar, 3. Idem. B) Objecto da convengao. 4. A construgio técnica 306 RAUL VENTURA da venda com expedicao e o lugar de producto dos efeitos da entrega. 5. Localzaqdo, no caso de venda com expedigi, de alguns efits do cumprimento da obrigagao de entrega da coisa. 6. A expedigio da coisa. 7. Despesas da expedicio. Convengao sobre despesas ¢ convengao sobre expedicao. VENDA DE BENS ALHEIOS 1. Nulidade do contrato de venda civil de bens alheios. O actual Cédigo Civil, art. 892.°, estabelece como regra a nulidade do contrato de venda de bens alheios; assim proce- dia também o art. 1555.° do Cédigo anterior. Ao contréario, © art. 467.0 n° 2 do Cédigo Comercial permite em comércio a venda de coisa que for propricdade de outrem. A disposicio do Cédigo Comercial costuma ser justificada pela necessidade de tutela da circulacio dos bens, pormenorizada com acentuagio de uns ou de outros aspectos: a exigéncia da prova da propriedade do vendedor criaria obstdculos 4 rapidez e deseavalvaaicnts das operagdes ¢ consequentemente ao inte- resse ptiblico; quem vende mercadorias pertencentes a outro negociante deve presumir-se que as comprou a este para a ven- der; o fim do comércio é pér a mercadoria em circulagio, etc. A regra do anterior Cédigo Civil foi sujeita a reviso na feitura do actual, acabando-se por concluir pela continuag3o dela, com argumentos retirados do que se diz ser a propria esséncia do direito civil; nao se sentirem as necessidades justificativas da regra comercial; dever o direito civil permanecer mais espiri- tualista; maior nitidez da situagi0, sobretudo aos olhos dos lei- gos; no existir em tio larga escala o perigo de aparéncias enga- nadoras; desta forma nio se estimularem desonestos ou aven- tureiros a tentativas de intromissio ilicita na esfera alheia. Para necessitarem de argumentos desse género, os autores do projecto tinham de dar como resolvido, em sentido nega- tivo, um problema prévio: o de saber se a natureza real (no meramente obrigacional) do contrato de compra e venda nfo © CONTRATO DE COMPRA E VENDA NO CODIGO CIVIL 307 exigiria, s6 por si, a nulidade do contrato de compra e venda de coisa nio pertencente ao vendedor. Se essa nulidade fosse con- sequéncia forcosa daquela natureza, mais nenhuma justificaglo seria pertinente. Nao o ¢, contudo, desde que a natureza real do contrato de compra e venda seja entendida — noutro lugar a explicémos — nao como uma indispensdvel transmissio da propriedade (ou outro direito vendido) no momento do con- trato, mas sim como uma ligacio juridica e imediata (isto é, sem constituicgio de uma obrigac3o de transmitir, que seria posteriormente cumprida por um acto auténomo) entre 0 con- trato e 0 efeito de transmisséo da propriedade. Nessas condi- Ses, poderia, portanto, o legislador escolher, apesar da natu- reza real da compra e venda, entre aceitar a validade ou decre- tar a nulidade do contrato de compra e venda de bens alheios. 2. Situagéo do proprietdrio da coisa vendida por outrem. Relativamente ao verdadeiro proprietario da coisa, 0 con- trato de venda de coisa alheia é res inter alios acta, que nao altera © seu dircito de propriedade. Como adiante melhor se verd, nem sequer o vendedor nio-proprietério dispde ou pretende dispor do direito de propriedade de outrem — atribui a si pré- prio um direito de propriedade e um poder de disposigio que lhe faltam. Assim, os actos de disposigao realizados pelo pro- prietério depois do contrato de venda sio perfeitamente vAlidos; tendo 0 proprietério posse da coisa, pode continuar a defendéla contra 0 comprador; nfo tendo posse, pode vindicar a coisa sem que 0 contrato possa ser-lhe oposto, nada interessando que os contraentes de um negécio em que ele nio interveio estejam de boa f€ ou de mé fé, pois nfo se pode hesitar entre a proteccio do direito do proprictirio ¢ a proteccio da boa fé desses con- traentes (Acérdio STJ, 29-7-66, BMJ, 159-424, RLJ, 100, 56). Por o verdadeiro proprietdrio ser estranho ao contrato de venda de coisa que lhe pertencia, discute-se a sua legitimidade para propor accio de nulidade do contrato (no sentido da ile- gitimidade, Rel. Lisboa 25-5-1955, JR, 1, 518; no sentido da legitimidade, Rel. Porto 8-3-57, JR, 3, 383). Pode parecer que

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