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tembro. A presenga dos figis, segundo os confrades, visava ‘no s6 tornar 0 ato mais Pomposo, como melhor solenizar os louvores a que se propdem’’, Em 1830, um leitor de O Bahiano criticou duramente a auséncia dos comendadores e cava- leiros da Ordem de Cristo na procissao do Senhor Morto, observando que tinham Por obrigagao do titulo abrilhantar o ato carregando o andor principal. Em 1832, O Precursor Federal publicou aviso da Ordem Terceira do Carmo convidando irmAos e ‘‘ordens aliadas”’ para a procissdo do Enterro. Pediu também aos mo- radores das ruas percorridas pelo cortejo que mandassem limpar a fachada de suas casas ‘‘em testemunho do quanto respeitamos a Religiao Crista””."* Festas como a da Conceigdo da Praia e do Bonfim, que hoje se destacam entre as festas populares baianas, tiveram sua origem em celebracées de confra- rias. Os irmaos pardos de Nossa Senhora do Boqueirao asseguravam festejar © 8 de dezembro ‘‘com a maior solenidade, aplauso, e louvor, que possivel for € diregdo da Mesa”’. Estes irmaos tinham capela propria na freguesia de Santo Anténio Além do Carmo, mas a grande festa dessa devocao baiana acontecia na igreja da Conceicao da Praia sob a direcdo da irmandade predominantemen- te branca do mesmo nome. Preso na fortaleza do Mar (atual forte Sao Marcelo) em 1802, Lindley acompanhou por um telescépio uma procissdo na Conceigéo que exibia “uma profusdo de bandeiras, cruzes Prateadas, imagens e ornamen- tos’, acompanhada por diversas irmandades e um regimento de cavalaria. Cer- ca de quinze anos depois, Spix e Martius tiveram o azar de desembarcar em Sal- vador, cansados de longa viagem, no dia da Conceigdo. Contaram que foram insistentemente convidados a participar da festa por um irmao pardo, vestido de capa vermelha, que eles tomaram por sacristdo. O incidente revela 0 orgulho do mestigo baiano em mostrar uma das maravilhas de sua terra Aqueles brancos estrangeiros, mais preocupados em livrarem-se da fedentina do lixo acumulado nas ruas da Praia. As ruas podiam estar sujas, mas o céu brilhava. Em 1821, Maria Graham comentaria serem enormous os gastos anuais com os fogos de artificio que iluminavam a Senhora da Conceicao e animavam 0 espirito de seus devotos. Em 1831, uma outra irmandade, a do Santissimo Sacramento de Santo Anténio Além do Carmo, gastaria em pirotecnia 100 mil réis, metade do preco de um escravo.*s Ja descansados da viagem, Spix e Martius puderam apreciar melhor a com- plexidade de nossa cultura religiosa de rua, e escreveram: atraem 0 observador as particularidades das diferentes classes e ragas, que se mani- festam, quando, acompanhando uma procissdo religiosa, passam pelas ruas da Bahia. O vistoso préstito de intimeras irmandades de gente de todas as cores, que procuram a porfia sobressair com a riqueza de suas opas, bandeiras e insignias, alas alternadas de beneditinos, franciscanos, agostinhos, carmelitas calgados e descal- os, mendicantes de Jerusalém, capuchinhos, freiras e penitentes, escondidos estes Sob capuzes, e além desses, as tropas portuguesas de linha, com o seu porte marcial, € as milicias da capital de aspecto pouco militar, a gravidade e ungdo dos padres europeus ¢ a suntuosidade do culto romano antigo, no meio do barulho selvagem de negros espantados, poder-se-ia dizer quase pagdos, ¢ cercados pelos malatos 69 alvorogados: tudo isso constitui um dos mais imponentes quadros de vida que 0 via- jante possa encontrar.“ Festas ¢ procissdes religiosas cram a maneira mais comum de celebracdo da vida entre os antigos baianos. Por tras da produgdo desses eventos estavam as irmandades, que se contavam as centenas. Esse catolicismo lidico, espetacu- lar, esse catolicismo barroco, seria também o principal vefculo de celebra¢do da morte. E também aqui 0 papel das irmandades foi enorme, uma vez que um de seus principais objetivos era dar um funeral digno a seus associados. Nas ir- mandades a solidariedade grupal se tecia da festa ao funeral. Na economia sim- bélica da confraria, a producdo fiinebre seguia a lgica da produgao hidica. NOTAS (0) Pierre Verger, ‘“Procissdes e Carnaval no Brasil’, Ensaios/Pesquisas, 5 (1984), p. 1 Q) Sobre 0s diversos tipos de confraria, ver Caio César Boschi, Os leigos e 0 poder (So Paulo, 1986), pp. 12-21 (3) D. Sebastidio Monteiro da Vide, Constituicoens primeyras do arcebispado da Bahia (Coim- bra, 1720) (exemplar do cen), c. 867 ss. regulamentavam as confrarias. (4) aorsp, Livro II do tombo. 1829, 98, fls. 2 ss.; Maria V. de N. Camargo, ‘“Os terceiros do- minicanos em Salvador”, tese de mestrado (UF8a, 1979), p. 11; Luis Monteiro da Costa, ““A devo- do de Nossa Senhora do Rosario na cidade do Salvador", Revista do Instituto Genealdgico da Bahia, 10 (1958), pp. 105-6; Carlos Ott, ‘A Irmandade de Nossa Senhora do Rosdrio dos Pretos do Pelourinho”, Afro-Asia, 6-7 (1968), pp. 122-5. (5) A. J. R, Russell- Wood, Fidalgos and philantropists (London, 1968), pp. 96-8, 125-6. Ape- sar de varias tentativas de reforma, 0 compromisso seguido pela Santa Casa da Bahia nos anos de 1830 era basicamente aquele de 1618 de sua similar portuguesa, republicado em Lisboa duzentos anos depois. Um exemplar dessa tiltima edigao faz parte do acervo do ascats ¢ foi publicado em fac-simile: “Compromisso da Santa Casa de Lisboa (1618]”, in Neuza R. Esteves, org., Catdlogo dos irmaos da Santa Casa de Misericérdia da Bahia (Salvador, 1977). (6) Germain Bazin; A arquitetura religiosa barroca no Brasil (Rio de Janeiro, 1983), ¥- 1, P- 161; Socorro T. Martinez, “Ordens terceiras: ideologia e arquitetura”’, tese de mestrado (uFBa, 1979), pp. 17, 78; Alves, Historia da venerdvel Ordem Terceira, p. 14. (9) Sobre as irmandades como meio de integracio de comerciantes e caixeiros recém-chegados, ver Lugar, “The merchant community of Salvador””, pp. 222, 224. Camargo, “Os terceiros domini- canos”, cap. Vi, esp. p. 99, contesta que a oTsD fosse elitista. (8) Manuel S. Cardoso, ““The lay brotherhoods of colonial Bahia’’, Catholic Historical Re- view, 33:1 (1947), pp. 22-3. (9) Maria Helena Flexor, Oficiais mecinicos na cidade do Salvador (Salvador, 1974), p. 22, passim; Mattoso, “Au Nouveau Monde”, v, p. 563; Patricia Mulvey, ‘The black lay brotherhoods ‘on colonial Brazil’, tese de doutorado (cuNY, 1976) p. 194; Cardoso, “The lay brotherhoods”’, p. 20, n? 31; Martinez, “Ordens terceiras””, pp. 66-7, 126-8 (reforca a tese de que a maioria dos tercei- 10s da Bahia eram comerciantes 0 fato de seus membros residirem na Cidade Baixa, bairro comercial por exceléncia, ibidem, pp. 132-3). Ver também Camargo, ‘Os terceiros dominicanos”, caps. vi € vil, € Lugar, “The merchant community of Salvador”, pp. 222, 225-6. (10) Pierre Verger, Noticias da Bahia (Salvador, 1981), p. 65; Mat passim; Camargo, ‘Os terceiros dominicanos", p. 121, por exemplo. (11) Martinez, ibidem, pp. 30, 48, 52, 98, 125; Camargo, ibidem, p. 71; AotsD, Livro de ter- mos de entrada de irmdos, 1816-1834, f1. 169v; aotsp, Livro If do tombo, v. 98, fl. 2. ez, “Ordens terceiras"’, 70 (12) Verger, Noticias da Bahia, pp. 73-4; aeeva/tr, v. 34, doc. 4, fls. 91-4; v. 31, doc. 5, fls 42-51 (estas so referéncias de uma catalogacao antiga desses documentos, mas ¢ possivel localizé-los pelos nomes dos inventariados), (13) Mattoso, Testamentos de escravos libertos, p. 23; Oliveira, O liberto, pp. 83, 86-7. (14) “Compromisso da Irmandade da Conceigio dos Homens Pardos de Santana do Camisao [1795]", cap. u, mss. anu, Requerimentos: ordens religiosas, irmandades, igrejas e capellas. Baia, Martinez, “Ordens terceiras””, pp. 52, 125. (15) “Compromisso da Irmandade do Rosério dos Pretos de Camamu [1788]”, cap. vi, mss. ANU, Céd. 1925, doc. 13 094. Impedimento de escravos nos cargos de diregdo: “Compromisso da Irmandade do Senhor Bom Jesus da Cruz dos Crioulos da Freguesia de Sao Gongalo [1800]”, fl. 1, mss. AINSR, ndo catalogado; ““Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Roséirio dos Pretos das Portas do Carmo, 1820”, fl. 20, mss. AiNsR, ndo catalogado e jé analisado por Jefferson Bace- lar Maria C. de Souza, O Rosdrio dos Pretos do Pelourinho (Salvador, 1974); um exemplo pernam- bucano: Mulvey, “The black lay brotherhoods”, p. 122, n. 47. (16) Sobre o assunto, ver o excelente estudo de Vivaldo da Costa Lima, A familia-de-santo nos candomblés jeje-nagés da Bahia (Salvador, 1971). (17) Segundo Russell-Wood, algumas irmandades eram etnicamente mais exclusivas do que ou- tras no recrutamento de seus membros: A. J. R. Russell-Wood, The black man in slavery and free- dom (New York, 1982), pp. 156-7; também Verger, Noticias da Bahia, p. 65, sobre a distribuigdo étnica das irmandades; Ott, “A Inmandade de Nossa Senhora do Rosério”, p. 120, erra sobre ter sido de nagés a Irmandade do Bom Jesus das Necessidades. (18) “Compromisso da Irmandade de So Benedicto erecta no convento de So Francisco [1770)”, ANTT, Ordem de Christo, v. 293, s. fl. (19) Compromisso da Virgem Sanctissima May de Deus Nossa Senhora do Rosdrio dos Pretos da Praya: anno de 1686, cap. vi, mss. alcP, no catalogado; Cardoso, ‘The black lay brotherhoods”, p. 28. (20) “‘Compromisso da Irmandade do Rosario das Portas do Carmo”, cap. 5, fls. 17-17v; Ba- celar de Souza, O Rosdrio dos Pretos do Pelourinho, pp. 17-9; Ott, “A Irmandade de Nossa Senhora do Rosério”, pp. 120, 121, argumenta, sem apresentar evidéncias, que os crioulos “mandavam e desmandavam"” nesta irmandade, aproveitando-se do ‘‘complexo de inferioridade cultural” dos angolanos. 21) “Parecer do desembargador ouvidor Geral do Crime a d. Rodrigo José Nunes, 9/11/1784", pena, Cartas ao Governo, 1780-84, maco 176; Mulvey, ““The black lay brotherhoods", p. 265. So- bre escassez de mulheres na populacdo africana, Schwartz, Sugar Plantations, pp. 346-50; Reis, Re- belido escrava, pp. 17-9. (22) Martinez, ““Ordens terceiras”, pp. 82 ss., 128; Camargo, “Os ter: 104, aotsr, Livro de despachos da mesa, 1832-1841, fl. 39. (23) Mulvey, “The black lay brotherhoods”, pp. 130-2, “Compromisso da Irmandade do Ro- sdrio das Portas do Carmo”, caps. 8 ¢ 16, fls. 20, 26; aINsR, Livro de eleigdes, 1830-2, fl. 11, sobre a composicao da mesa de 1836. (24) “Compromisso da Irmandade do Rosario de Camamu [1788]””, cap. xi1, AHU, c6d. 1925, doc. 13 094. @5) Laura de Mello ¢ Souza, O Diabo ea Terra de Santa Cruz (Sao Paulo, 1986), p. 115 ¢ passim; Karin Barber, “How man makes God in West Africa””, Africa, 51: 3 (1981), pp. 724-5, sobre relagdes de barganha entre os iorubas e seus deuses; “Compromisso da Irmandade do Rosario das Portas do Carmo”, fl. 11; ver também 0 Prélogo do “Compromisso da Irmandade da Conceigao dos Homens Pardos de Santana do Camisdo [1795]. Ainda sobre a devogdo aos santos, Mattoso, “Au Nouveau Monde”, v, pp. 552-7. (26) Lindley, Narrative, pp. 55-7, 92; Wetherell, Brazil, pp. 18-9, 114, 122. (27) Nova Sentinela da Liberdade, n? 32 (15/9/1831), da colegao da BNR; APERa, Juizes de * vara, 1830-31, maco 2681. )s dominicanos”, p. paz, 71

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