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O costureiro e sua grife: contribuigdo para uma teoria da magia* Pierre Bourdieu comYvette Dekaut “Se pudermos mostrar que, na magia considerada em sua totalidade, reinam forcas semelbantes aquelas que agem na religido, teremos demonstrado dessa maneira que a magia tem um cardter coletivo idéntico ao da religido, $6 nos restard, entéo, fazer ver como essas forcas coletivas foram produzidas, no obstante 0 isolamento em que, segundo parece, se encontram os magos, seremos levados a conceber a idéia de que esses individuos limitanvse a se apropriar das forgas coletivas.” (Marcel Mauss, Esquisse d'une théorie générale de la magie). +e couturieret sa griffes contribution de tune théori de la ‘magi in Actes de la recherche en sciences sociales, Janeiro de 1975, n. 7, p. 7-36. ‘Draducéio da Profa. Dra. Maria da Graca Jacintho Seton, dovente da Faculdade de Hducacdo ¢ pesquisadora do Nticteo de Apoio aus Estudos de Graduacéio da Universidade ce Sao Paulo, Revisiio de Guilherme foto de Freitas Teéxeina. Fducagdo em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 4 da magia igdo para uma teoria fe: contribui reiro e sua grit O costur © campo da alta costura deve sua estrutura 4 distribui io desigual, entre as diferentes “maisons”, da espécie particular de capital que € 0 fator da concorréncia neste campo ¢, uo mesmo tempo, a condigao da entrada em tal competi¢io As catacteristicas distintivas das diferentes instituicdes de producio e difusio, assim como as estratégias que elas utilizam na luta que as opde dependem da posicio que ocupam nessa estrutura. A “direita” e a “esquerda” E assim que as instituicdes que ocupam posigées polares neste campo, ov seja, de um lado as empresas dominantes em determinado momento - como, atualmente, Dior ou Balmain - e, de outro, as que mais recentemente entraram na concorténcia - tais como, Paco Rabanne ou Ungaro -, se opdem em quase todas as relagdes designadas como pertinentes pela légica especifica do campo'. Por um lado, os muros brancos e 0 tapete cinza, as monogtamas, as vendedoras de “uma certa idade”, das velhas “maisons” de prestigio e de tradigao, situadas nos santuarios da rive droite’, tais como a rue Francois Ie a avenue Montaigne, por outro, o metal branco ¢ ouro, as “formas” e os “volumes” implacayelmente moderos, além dos vendedores audaciosamente santro- pezianos™ das “boutiques” de vanguarda, implantadas na drea “chique” da rive gauche *, ou seja, rue Bonaparte e rue du Cherche-Mid?. Em um pélo, a austeridade no luxo a elegincia sébria, a “grande classe’, que convém ao “capitalista da velha cepa” - como disse Marx - ¢, mais precisamente, as mulheres com idade “canénica” das fragdes mais elevadas ¢ estabelecidas, hi mais tempo, na alla burguesia; no outro, as audacias um tanto agressivas e espalhafatosas de uma arte dita “de pesquisa” que, pel2 lei da concorréncia - isto & a dialética da distinggo -, pode ser levada a proclamar © “édio a perfeicio” © a “necessidade do mau gosto", por um desses exageros “artistas” que convém a tal posiglo. Por ‘Uma oposteda andigga seencontra no campo da tame sitar (NA: sales cabeliriro de grande prstigl, entre Cantare Aleindire, om ue predominaaelegdncir totum estilo tm tanita caster, por iam lade, «por cx, Foan-Louts Davi que pretende oferecer, “sem distingeio dl classes’ seuspenteades ‘adactosos” “Agu, somelbanse do que sepassa em relagtto a tains, Salers or cinemas, ave pace nev sempre enn sentido googrifico ass, Saint-Laurent porst ats ois “rive gauche" en Paris ma, na rue de Tournon (60 air} a segunda, na avenue Vitor Huo (160 barr $ a terceira, na swe da Faubourg Saini-tonose (60 batrro). Ocorre que, em opasicio as “maisons* Inadictonas,estabelectas nos santucirios dave dete. 4 maior parte dos costervivos de vanguard « 4 sotaldade des "estas ou “meelitas” tensa mar: ot *boetiques” na rive gauce, “NR: Refertncis a cidade de Saint-Tropex, 2 buira des Mediterrdre, reputada instdncacte fers “ANR- Rive droite f margensdirwital ena frase sequins, sive gauche f= margens exquertal- do rio Sena. Fducagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 um lado, a preocupacdo em conservar e explorar uma clientela restrita e antiga ; Por outro, a esperangx de converter novos que s6 se conquista pela tradig: clientes, através de uma arte que pretende estar “ao alcance das massas” - isto é, € ninguém poder’ se enganar neste caso, ao alcance das novas fracdes da burguesia ou, 0 que vem a ser quase © mesmo, que pretende ser cultural e economicamente acessivel aos jovens das fragdes antigas. O fato de a ideologia populista de abertura as “massas” se encontrar em um campo, onde o esquecimento das condigdes de acesso aos bens oferecidos é mais dificil que alhures, tende a sugerir que ela deva ser sempre compreendida como uma estratégia nos conflitos internos de um. campo: os ocupantes de uma posigio dominada em um campo especializado podem ter interesse, em certas conjunturas, em utilizar a homologia estrutural entre as oposigées internas de um campo ¢ a ultima oposi¢io entre as classes para apresentar a procura por uma clientela, no sentido econdmico ou politico do termo (aqui, a das parcelas dominadas do subcampo dirigente da classe dominante, nova burguesia e os jovens da antiga burguesia), sob a aparéncia arrogantemente democritica de abertura “as massas . denominagio eufemistica € imprecisa atribuida ds classes dominadas. Entre o pélo dominante e 0 pdlo dominado, entre © luxo austere da ortodoxia € © ascetismo ostensivo da heresia, os diferentes costurciros se distribuem segundo uma ordem que permanece praticamente invariavel, quando ihes aplicamos critérios tao diferentes como antigitidade da “maison” € a importancia de seu faturamento, o preco dos abjetos oferecidos e o ntimero de provas, a intensidade das cores ¢, hoje, © espaco reservade As calgas nas colecdes As posigdes na estrutura da distribuicie do capital especifico se exprimem nas estratégias tanto estéticas, quanto comerciais. Para alguns, as estratégias de conservacao que visam manter intacto 0 capital acumulado (o *renome da qualidade") contra os efeitos da tcanslagho do campo € cujo sucesso depende, evidentemente, da importincia do capital possuido e também da aptidio de seus detentores, fundadores ¢, sobretudo, herdeiros, em gerir racionalmente a reconversio, sempre arriscada, do ca pital simbélico em capital econdmico. Para outros, as estratégias de subversio, que tendem a desacreditar os detcntores do mais sdlido capital de legitimidade, a remeié-tos ao classic e, em seguida, ao desclassificado, colocando em questi (pelo menos, objetivamente) suas normas estéticas ¢ apropriando-se de sua clientela presente ou, em todo caso, Educacdo em Revista, Belo Horizonte, n? 34, dez/2001. 5... 2... CO costureiro e sua grife: contribuigéo para uma teoria da magia

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