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Dicionario de f portugues Mario Prata Crénicas lusitanas 218 Edigao Apresentagio de Fernando Morais obo O PESADELO DO MINISTRO FERNANDO MORAIS Quinze anos atrés a cubana Haydée Santamaria decidiu con- vidar pela primeira vez um grupo de brasileiros para participar do jiti do prémio literdrio anual da Casa de las Américas, O pré- mio, assim como a Casa, jf existia desde o comeco dos anos 60. E eta uma tentativa dos cubanos de integear através da literatura sina América Latina desunida pela politica e pelas desavencas ideo- logicas. Com a presenga de brasileiros em um jtiti que iria ler poemas, romances e ensaios escritos em castelhano, os cubanos queriam provar que, se o Brasil passara séculos de costas para a América Latina, eta a Cordilheita dos Andes, e no o idioma, ‘© que nos separava de nossos vizinhas hispanicos ‘Aqui no Brasil ainda viviamos sob o pentiltimo general da ditadura militar, 0 que custou 20s viajantes — Antonio Callado, Chico Buarque, Ignacio de Loyola e eu — tediosos interrogat6- rios policiais quando pusemos de volta os pés em solo patrio. Du- rante trinta dias, em Cuba, lemos caixas¢ caixas de manuscritos, festejamos o aniversatio de Callado e bebemos o melhor rum € fumamos 0 melhor charuto do mundo. No final o prémio maior seria atribuido a Eduardo Galeano, com o seu Dias y Noches de Amor y de Guerra, E foi na festa de antincio do resultado que Chico Buarque decidiu defender, com admirivel seguranca (até hoje ndo sei se cle falava a sério ou se debochava), que o caste- Thano nada mais era que uma corruptela do portugués. “Mais do que isso”, insistia, “o castelhano € apenas um portugues mal falado, um portugués pronunciado erradamente.” Apesar de acua- do por um enxame de iracundas guatemaltecos, salvadorenhos, nicaragiienses, argentinos, peruanos, uruguaios, Chico sustenta- va sua teoria ¢ dava exemplos concretos: — Incapazes de pronunciar 0 nosso a, os hispanéfonos in- ventaram 0 6m, € assim por diante. Tomem um texto em portu- gués ¢ troquem todos os Zo por én, os f iniciais por 4, sabsti- tuam por we alguns o precedidos de consoantes e vocés terZo um, texto €m escorteito castelhano. ‘Acalmados os animos, a tese nfo chegou estragar a festa nem produziu qualquer incidente diplomatico entre Cuba ¢ 0 Brasil (até porque durante 0 regime militar Brasil e Cuba nio tinham relagdes diplomaticas que pudessem ser afetadas). Mas foi esse episodio que me veio A cabeca ao final da leitura deste delicioso Schifaizfavoire concebido durante os dois anos de soli- dio de Mario Prata em Portugal. Se continua convencido de sua ese até hoje, Chico Buarque terd razao a0 afirmar, depois de ler ‘este dicionatio, que 2 lingua falada no Brasil talvez esteja mais proxima do castelhano que do portugués de Portugal. ‘Ainda que esta conversa no sobreviva ao peteleco de um fil6- logo, no custa nada lembrar que se pode encontrar rasttos da lin- gua portuguesa nos mais remotos cantos do mundo. A passagem dos jesuitas portugueses pela Asia, por exemplo, teria deixado suas marcas do outro lado do planeta. Dai, talvez, a explicagdo para 0 faco de que a fonética da palavra po, cm japonés, seja exatamente igual do portugues (se voce pedir um pao em qualquer bar do Ja- pao, vai receber do gargom o mesmo alimento feito de farinha de trigo produzidenas padarias portuguesas, do Rio ou de Sto Paulo) Em Toquio me garantiram que até 0 arigaté nao € senio a corrupte- lade um obrigadé deixado Ii pelos teligiosos lusitanos. O proprio Prata suspeita, por exemplo, que 0 nome do molho curry vem do uso can (e nao o contrario, como pretendem os ingleses). ‘A idéia de produzir este dicionatio foi sugerida a Matio Pra ta pelo meu falecido compadre Caio Graco, quando o autor tra- duzia para a Editora Brasiliense O Testamento do Sr. Napumo- ceno da Silva Araiijo, romance do cabo-verdiano Germano Al- meida. Se era necessario contratar um tradutor para publicar em Portugués um livro escrito em portugués, concluiu Caio Graco, estévamos diante de duas linguas diferentes. Ea maneira encon- trada para deciffat, para os brasileitos, os mistétios do idioma fa- lado em Portugal foi comportar-se como se esta fosse para nds — € agora nés sabemos que € — uma lingua estrangeita A praca co singulat talento de Mario Praca, entretanto, trans- formaram o que poderia ser apenas mais um aborrecido diciond-

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