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Resumo
A presente pesquisa é desdobramento de uma pesquisa do Programa de Bolsas de
Iniciação Científica - PIBIC. O trabalho escravo no ciclo da cera de carnaúba cons-
titui-se como um problema que ganhou visibilidade após sucessivas denúncias ao
Ministério Público do Trabalho no Piauí. Data da década de 1930 a criação dos
primeiros aparatos legislativos de regulamentação do trabalho, paralelo a essa or-
ganização, destaca-se no Piauí o vulto econômico da produção cera de carnaúba.
Assim objetivamos compreender a aplicação da legislação na cadeia produtiva
através do paralelo entre a literatura sobre o ciclo produtivo da carnaúba e as do-
cumentações encontradas nos arquivos digitais, públicos e por meio de fontes orais,
para constatar que o trabalho escravo, nessa cadeia produtiva caracteriza-se como
contínuo, ocorrendo quando o sujeito perde direitos concedidos pela legislação ela-
borada e aplicada pelo Estado.
26 Palavras-Chave: trabalho; escravidão; carnaúba.
Abstract
The present research is the result of a research of the Program of Scientific Initia-
tion Grants - PIBIC. The slave labor in the carnauba wax cycle constitutes a pro-
blem that gained visibility after successive denunciations to the Public Ministry of
Labor in Piauí. In the 1930s, the creation of the first legislative machinery for labor
regulation, parallel to this organization, stands out in Piauí the economic value of
the production of carnauba wax. Thus we aim to understand the application of le-
gislation in the production chain through the parallel between the literature on the
production cycle of the carnauba and the documentation found in the digital files,
public and through oral sources, to verify that the slave labor, in this productive
chain, is considered to be continuous, occurring when the subject loses rights gran-
ted by the legislation elaborated and applied by the State.
Keywords: work; slavery; carnauba.
1
Graduanda do curso de Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Piauí - UESPI.
Email: hamandafontenele@gmail.com
ISSN 2447-7354
Revista Piauiense de História Social e do Trabalho. Ano III, n. 05. Julho-Dezembro de 2017. Parnaíba-PI
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uso das fontes orais, Alessandro Portelli vidão que se mantinham na sociedade
nos diz que: desde o final do século XIX2, nesse con-
texto, começou a vigorar a Consolida-
Fontes orais contam-nos não apenas o que o povo ção das Leis Trabalhistas, o Ministério
fez, mas o que queria fazer, o que acreditava está do Trabalho, Indústria e Comércio em
fazendo e o que agora pensa que fez. Fontes orais 1930 e da Justiça do Trabalho em 1934
podem não adicionar muito ao que sabemos, por em busca de fiscalizar e amparar a rela-
exemplo, ao custo material de uma greve para os ção trabalho-capital. Com isso, Ângela
trabalhadores envolvidos; mas contam-nos bas-
de Castro Gomes (Gomes 1982 p.151)
tante sobre os seus custos psicológicos. (POR-
TELLI, 1997, p.31) afirma que “os anos 1930 e 1940 são
verdadeiramente revolucionários no que
Compreendendo as objeções que di- diz respeito ao encaminhamento da
recionaram a elaboração desse estudo, é questão do trabalho no Brasil”.
preciso também compreender o contex-
to histórico a qual se insere. Trata-se Do trabalho escravo
inicialmente a primeira metade do sécu- ao trabalho análogo à escravidão
lo XX, momento em que o Brasil viven- Ao tratar dessa temática, é preciso
ciava uma efervescência política e eco- considerar e perceber a singularidade de
nômica em decorrência das eleições cada contexto, pois há um espaço entre
republicanas, bem como o surgimento a experiência vivida e a experiência nar-
de novos ideais políticos voltados espe- rada que permite-se alterar com as no-
cialmente para o âmbito do trabalho e vas concepções que o tempo apresenta,
28 dos trabalhadores. Segundo Nascimen-
to, (1994, p12-13 apud Pereira, 2015,
nesse sentido Edward P. Thompson
(Thompson, 1981, p.17) afirma que
p.50) “no Piauí esse movimento foi “frente a essas experiências, velhos sis-
marcado pela derrota dos “coronéis” temas conceituais podem desmoronar e
donos de latifúndios e pela vitória de novas problemáticas podem insistir em
um grupo que tinha suas atividades impor presença”. Assim, quando fala-se
mais ligadas ao comércio”. No Piauí, a sobre escravidão, tende-se a remeter a
primeira metade do século XX ficou discussões abolicionistas do século XIX,
marcado economicamente pelo declínio porém a abolição da escravidão é deri-
da pecuária e destaque dos ciclos extra- vado de um processo que advém do fi-
tivistas, principalmente da cera de car- nal do século XIX, voltado para uma
naúba, mas também de babaçu, algo- conjuntura de leis que propunham o fim
dão, maniçoba entre outros. Nesse sen- da escravidão negra e caracteriza-se
tido, a produção e exportação represen- como marco inicial no Brasil para liber-
tavam prosperidade para a receita esta- dade no que diz respeito ao trabalho.
dual, ainda que o referido momento No entanto a mentalidade escravocrata
fosse de corte orçamentário em decor- e de cerceamento da liberdade individu-
rência da crise derivada pela Segunda al permeiam nos dias atuais, nesse caso,
Grande Guerra (PIAUÍ, 1938, p.15).
No âmbito da política nacional, Ge- 2
A escravidão contemporânea analisada aqui é
túlio Vargas assumiu a presidência na- diferente da escravidão que se processava antes
cional através de um governo provisório da assinatura da Lei Áurea. Esta primeira não é
estendido de 1930 a 1934 a qual iniciou- caracterizada pela perda da liberdade, isto é, por
se a estruturação de um Novo Estado, ser propriedade, mas sim, pela perda dos direitos
de cidadania e não só de direitos sociais do traba-
onde tornaram-se vigentes políticas que lho (GOMES, 2012).
objetivavam apagar os traços de escra-
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centração motivado por conflitos de lho no Piauí, porém no ano de 1934 foi
gênero político e ideológico. São exem- implantado o Serviço de Identificação
plos desses campos, os gulags soviéticos Profissional pelo decreto-lei n. 21.175 a
espalhados na Sibéria e na Ucrânia, os qual o encarregado foi Luiz Gonzaga
campos de concentração Nazista na Menezes. Segundo informações do Cen-
Alemanha, Áustria e Polônia, o campo tenário da Parnaíba:
conhecido como Villa Grimaldi na Amé-
rica do Sul, Crystal City localizado na Em setembro de 1939, esteve em Parnaíba (umas
América do Norte, entre outros espa- das principais cidades produtoras de cera de car-
lhados pelo Globo. naúba) o Dr. Ubirajara Índio do Ceará, então
Segundo Norberto Ferreras (Ferreras, Delegado Regional do Trabalho, no Piauí. Teve
a oportunidade de verificar a vida dos parnaiba-
2016, p.496) ‘para a OIT a escravidão
nos, nos seus múltiplos aspectos do trabalho, e
significava uma forma extrema de de- compreendeu a necessidade da criação de um
gradação do ser humano, e portanto, Posto Permanente de Fiscalização do M.T.I.C.
não dizia respeito às suas condições, (O Livro do centenário da Parnaíba, p. 241)
vinculadas ao trabalho legal”. Desse
modo, o que estava em análise não era à Esse relato nos leva a questionar so-
liberdade, mas sim o trabalho, de modo bre o que foi visto pelo então Delegado
que o indivíduo é analisado através do Regional do Trabalho, principalmente
prisma da liberdade, ou seja, da capaci- os “múltiplos aspectos” levados em
dade de venda da força de trabalho e consideração para implantação de um
não da posse, isto é, do indivíduo en- posto fiscal permanente, pois sabe-se do
quanto propriedade de outro.
30 Em teoria, o trabalhador brasileiro
contraste entre a vida de trabalhadores e
empregados tanto no tempo presente
encontra-se amparado por uma legisla- quanto em décadas passadas sobre isso,
ção que objetiva a proteção da dignida- é inegável a nitidez do fato. Não obstan-
de humana. Esses sujeitos também en- te, somente no ano de 1952 foram insta-
contram-se salvaguardados pela Decla- lados três postos de fiscalização nas ci-
ração Universal dos Direitos Humanos dades de Parnaíba, Campo Maior e Flo-
(1948) a qual dispõe que “todos os ho- riano - até então, as grandes produtoras
mens nascem livres e iguais em dignidade e de cera - visando principalmente a higi-
direitos” e reafirma o princípio a qual ene e segurança do trabalho. (CARIRI,
“ninguém será mantido em escravidão ou 1952). Outro questionamento diz respei-
servidão”. Para além disso, houve a im- to a ação dos postos de trabalho, uma
plantação do Ministério do Trabalho, vez que ainda estava em estado inicial
uma das primeiras medidas trabalhistas de organização e trabalho.
implantada no Brasil no Estado Novo. Em contrariedade aos trabalhadores
Juntamente a esse órgão, foi implantada urbanos que passaram a ser alvo de todo
a Justiça do Trabalho, criada em 1934 aparelhamento legislativo e trabalhista
em decorrência do artigo n°122 da na década de 1930, os trabalhadores
Constituição de 1934, objetivando jul- rurais somente passaram a ser ampara-
gar e conciliar os conflitos surgidos, in- dos legalmente a partir da década de
dividual ou coletivamente, entre empre- 1960, sob a presidência de João Goulart
gados e empregadores, bem como (1961-1964), que junto ao Parlamento
quaisquer controvérsias surgidas no legitimou a lei n°4.214, denominada
âmbito das relações de trabalho. Estatuto do Trabalhador Rural, que dis-
Em 1935 inicia-se a organização do põe de forma sistemática sobre condi-
serviço regular do Ministério do Traba- ções políticas e econômicas do contrato
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interesse que o Europeu e o Norte Ame- pontos iniciais voltado para as finanças
ricano tomam em adquiri-la”. no governo de Leônidas de Castro Melo
Segundo Carlos Eugênio Porto (Por- estava voltado para estimulação da ri-
to, 1974 p.114) “a riqueza dos carnaú- queza para o desenvolvimento da pro-
bas gerou uma multiformidade na estru- dução no Estado. Com isso, o governo
tura econômica do Estado e desequilí- do Estado vinha se empenhando pelo
brio na uniformidade nos padrões soci- plantio e cultivo racional da carnaubei-
ais piauiense”, pois o valor obtido na ra, sendo já apreciáveis os resultados
comercialização da cera da carnaúba alcançados em alguns municípios na
trouxe para a sociedade uma nova clas- década de 1940.
se de ricos que reverteram suas riquezas Devido a seu incentivo às riquezas
em automóveis de luxo e objetos luxuo- estaduais apresentados pelo então inter-
sos e de pouca utilidade. O autor ainda ventor federal Leônidas de Castro Melo,
destaca que essa “nova classe de ricos” a exportação da cera de carnaúba se
é diminuta em relação ao povo, que em sobressaiu nacionalmente. Sua assistên-
sua maioria, não teve ganho significati- cia voltava-se principalmente aos produ-
vo. Porto (Porto, 1974, p.113) segue tores e a melhoramento das vias de
afirmando que “por volta da década de transporte para escoamento da produ-
1940, os trabalhadores eram remunera- ção, através de uma crescente malha
dos por três arrobas com o vencimento rodoviária e ativação do porto de Amar-
de 15 a 20 cruzeiros, sendo Inegavel- ração, bem como utilização do porto de
mente barata”. Passados mais de meio Tutóia no Maranhão, que no mais tar-
século, só recentemente os trabalhado- dar, trouxe conflitos para exportação
32 res tiveram seus direitos trabalhistas devido aos altos preços alfandegários.
reconhecidos, com a assinatura da car- Nesse momento, a produção da cera
teira de trabalho temporária e diversos da carnaúba foi a maior conhecida,
direitos que acompanha. Atualmente os atingindo o total de 4.500.000 kg. Rea-
trabalhadores ganham por quinzena ou firmando a valiosidade da cera de car-
semana, esses, em sua maioria depen- naúba para o Piauí Renato Castelo
dem primariamente do plantio de roça e Branco (Castelo Branco, 1970, p.127)
de auxílios do Governo, devido ao fato salienta que “para enfatizar a importân-
que a produção da cera é sazonal. Vale cia da carnaúba, basta dizer que em
ressaltar que essas roças costumam ser 1940, a exportação de sua cera ocupou
plantadas em terrenos arrendados, pois o sexto lugar nas estatísticas nacionais”.
maioria dos trabalhadores não possuem Esses fatores nos leva a refletir sobre a
terras para plantio. proporção de trabalho relativo a produ-
Tal prosperidade econômica é vista ção, entendendo que se a produção
nas mensagens de governo do Interven- atingiu picos até então desconhecidos,
tor federal Leônidas de Castro Melo subentende-se, por consequência, que
(1935-1943) a Getúlio Vargas, onde houve um grande número de mão de
sempre é ressaltada a prosperidade do obra envolvida na atividade. Contingen-
Estado, bem como a multiplicação da te este, costumeiramente escondido pe-
receita. O desempenho favorável das los números de estatísticas econômicas,
exportações dos produtos extrativistas uma vez que números não são capazes
do Estado coincidiu com o governo ge- de revelar por si só uma condição geral
tulista, sendo atribuído aos métodos do do panorama que se deseja apresentar.
Estado a responsabilidade pelo alto ín-
dice de exportação da matéria. Um dos
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2015). No entanto, a obrigatoriedade de ração não são tão díspares e que a falta
disposição de equipamentos de proteção de uma consciência sobre o conceito de
individual fornecidos pela empresa tor- exploração, permite que durante os anos
naram-se obrigatórios em 1977, como trabalhadores exerçam atividades em
parte do Artigo 158 da Consolidação condições degradantes tal qual citadas
das Leis Trabalhistas, incluído pela Lei ao longo dessa pesquisa.
n°6.514, de 22 de dezembro de 1977 a Outra questão relevante diz respeito
qual discorre que: ao descaso do Estado em relação ao
meio rural, que por sua vez constitui o
Cabe aos empregados: principal pilar econômico do país. Ao se
I - observar as normas de segurança e medi- colocar como responsável por sanar a
cina do trabalho, inclusive as instruções de escravidão e condicionar dignas condi-
que trata o item II do artigo anterior; ções de trabalho no meio rural, através
Il - colaborar com a empresa na aplicação da elaboração de leis e instituições, o
dos dispositivos deste Capítulo. Estado apresenta um retrocesso, enten-
Parágrafo único - Constitui ato faltoso do dendo que a vigência de uma legislação
empregado a recusa injustificada: vasta e com textos semelhantes em prol
a) à observância das instruções expedidas de uma única causa, sem acompanha-
pelo empregador na forma do item II do arti- mento de uma fiscalização que só pode
go anterior; ser empreendida unicamente pelo esta-
b) ao uso dos equipamentos de proteção indi- do, torna-se ineficaz. E assim como o
vidual fornecidos pela empresa. (LEI Nº ditado brasileiro para leis ou regras con-
sideradas demagógicas e que não são
6.514, DE 22 DE DEZEMBRO DE 1977)
cumpridas na prática, a legislação de 35
Como visto, segundo a legislação combate à escravidão torna-se “lei para
trabalhista, desde a década de 1970, inglês ver” bem como as primeiras leis
cabe ao empresário cumprir com a abolicionistas que tinham como função
norma de segurança e medicina do tra- ofuscar a prática escravocrata para o
balho, caso contrário, sofrerá penalida- mercado capitalista internacional.
de, tendo em vista que este torna-se res-
ponsável pelo empregado. Ainda assim, Referências:
a prática se distancia do que a legislação ALMANAQUE DA PARNAÍBA. Edi-
exige, como fica claro na fala do traba- ção do autor: Parnaíba, 1929.
lhador. ALMANAQUE DO CARIRI, 1952.
BRASIL. Decreto-Lei n. 5452, de 1º de
Considerações finais maio de 1943. Aprova a Consolidação
Ao nos depararmos com a fala de um das Leis do Trabalho. Diário Oficial
homem que vivenciou o trabalho em [dos] Estados Unidos do Brasil, Poder
carnaubais em temporalidades distintas, Executivo, Rio de Janeiro, DF, 9 ago.
é possível primeiramente reafirmar o 1943. Secção 1, p. 11937-11984.
esquecimento do trabalhador rural, visto D’ALVA, Oscar Arruda. O extrativis-
que o entrevistado por vezes denota um mo da Carnaúba no Ceará. 2004. Dis-
tom de surpresa em suas palavras refe- sertação (Mestrado em Desenvolvimen-
rentes a medidas trabalhistas e recebe to e Meio Ambiente) - Núcleo de Pós-
como novo o que permeia desde o início Graduação Programa Regional de Pós-
do século XX nos meios do trabalho. É Graduação em Desenvolvimento e
preciso reiterar também que do século Meio Ambiente, Universidade Federal
XX aos dias atuais, as práticas de explo- do Ceará, Fortaleza.
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