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A teoria e a prática da desobediência civil:

um estudo a partir da doutrina contemporânea

Claudio Maraschin
Giovani Tavares Bruscato

RESUMO
O presente estudo sobre a desobediência civil é desenvolvido com base em três aspectos: como é abor-
dada no pensamento contemporâneo, em que medida é concebida como um instrumento de expressão
no âmbito da democracia e como se estabelece a sua relação com o direito, especialmente no que ser
refere à justificação da desobediência. Pensadores contemporâneos apresentam reflexões relacionadas
ao tema, que permitem avançar na concepção da validade e da atualidade do mesmo.

PALAVRAS-CHAVE
Desobediência civil; democracia; direito.

ABSTRACT
This study of civil disobedience is developed based on three aspects: as it is discussed in contemporary
thinking, how it is conceived as an instrument of expression in the context of democracy and how it
establishes its relationship with the law, especially what concerns to a justification for disobedience.
Contemporary thinkers have thoughts related to the issue, allowing progress in the conception of the
validity and actuality of it.

KEY WORDS
Civil disobedience; democracy; law.

1 INTRODUÇÃO

Escrever sobre desobediência civil implica em, pelo menos, uma indagação: em que me-
dida o direito convive com as diversas formas de manifestações sociais, especialmente as
que questionam diretamente o ente político?
A indagação, em princípio, não se apresenta como uma novidade, mas a (re)leitura de alguns
pensadores contemporâneos pode auxiliar na reflexão sobre as consequências do dissenso
perante a ordem jurídica, entendendo esta última como possuidora da função estabilizadora.
A teoria e a prática da desobediência civil: um estudo a partir da doutrina contemporânea

Há os que entendem ser a desobediência plenamente autorizada pela ordem jurídica,


sendo elemento inerente ao sistema. Há os que entendem que a desobediência deve
se apresentar de forma comedida, para não afetar a referida função estabilizadora
do direito, há, ainda, os que entendem que a desobediência civil é um ato político
capaz de exteriorizar as manifestações sociais não podendo estar inseridas na ordem
jurídica, pois agiriam contra a mesma: a lei não pode justificar a violação da lei. De
uma forma ou outra, é certo que a desobediência civil reúne algumas características
peculiares e que lhe garantem, ao menos parcialmente, a condição de lícita, mesmo
se considerada ilegal.
Na sua relação com o direito, no âmbito de uma comunidade jurídica concreta,
temos ainda o desafio de repensar a desobediência civil como direito fundamental na
realização do paradigma do Estado Democrático de Direito. Entende-se que tal desafio
pode ser enfrentado com base em alguns conceitos habermasianos hábeis a permitir
entender a desobediência civil como algo possível de se efetivar na realidade – factível,
portanto.

2 Características da desobediência civil

A desobediência civil, como mecanismo que coloca em evidência a oposição a determina-


dos atos do poder público, não possui uma caracterização simples, tampouco suas variadas
formas de expressão podem ser facilmente enquadradas em esteriótipos. Todavia, é possível
distinguirmos algumas características entendidas como essenciais.

2.1 Ato político

A desobediência civil é considerada ato político, eis que voltada à esfera coletiva da comu-
nidade. Os desobedientes buscam dar visibilidade às suas manifestações, desejam sensibilizar
a opinião pública com as suas ações e, assim, obter o tão almejado reconhecimento. Se o
reconhecimento é alcançado com o respeito da comunidade, é praticamente assegurado o
reconhecimento institucional.

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Ela se apresenta como o único meio de expressão de um determinado grupo, quando as


soluções instituídas se mostrarem ineficazes1. É por meio da desobediência civil que se bus-
ca a inserção no espaço público, sendo essa a forma encontrada – diante da ineficácia das
soluções institucionais – para participar do “viver em sociedade”, ou no que Dussel (2007)
chama de “participação da política vivida”.
Para Arendt (2006), a desobediência se desenvolve por meio da participação coletiva nos
espaços compartilhados de ação, sendo que a “ação desobediente” se constitui como força
geradora de poder. Aponta, ainda, para o fato de que a desobediência é o meio pelo qual
se busca a igualdade de acesso aos espaços públicos e a influência no âmbito das decisões
políticas, devendo ser garantida como princípio constitucional.
Em Rawls (2002), verifica-se que o viés político da ação desobediente situa-se no que o
que o autor denomina de “princípios da justiça”, que constituem base da sociedade e da
constituição: o princípio da igualdade e o princípio da diferença, ambos reguladores de toda
a atividade institucional que visa à distribuição dos direitos e deveres.

2.2 Ato coletivo

Considerando que a desobediência civil é utilizada para questionar as decisões “institu-


cionalizadas”, ela não pode ser fruto de concepções individuais ou subjetivas. Ao contrário,
a sua potência funda-se na união do “querer-viver” a “política vivida”, podendo assim mo-
dificar as estruturas sociais e jurídicas já incorporadas à ordem vigente.
Para Bobbio (2004), a desobediência só pode ser praticada coletivamente, pois é fruto
da soberania popular. Caso o Estado se desvie dos interesses populares, usurpando o poder
que lhe foi conferido, poderá o povo, por meio da desobediência, restabelecer o legítimo
exercício do poder (2004).
A desobediência civil só poderá ser geradora de poder, para Arendt (2006), se for re-
sultante da ação entre os homens empenhados em recuperar a “dignidade da política”.

1
Sobre a ineficácia das soluções instituídas em relação às obrigações políticas, ver interessante estudo do professor Rex Martin, do Depar-
tamento de Filosofia da Universidade do Kansas (EUA), o qual aponta para o fenômeno do distanciamento entre eleitos e eleitores no
âmbito da representação política e os seus efeitos. “Obligación política: algunos problemas y um intento de solución”, Revista DOXA,
n. 25 (2002), p. 247-260. www.cervantesvirtual.com.

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Os desobedientes reafirmam, em primeiro lugar, o desejo de ocupar de forma igualitária


a esfera pública, apelando para a autoridade instituída para que os reconheça enquanto
como coletividade e como detentores dos mesmos direitos conferidos aos demais cida-
dãos.

2.3 Ato público

Sendo instrumento de persuasão, a desobediência civil é dirigida à sociedade, extraindo


a sua razão de ser como mecanismo exercido perante a esfera pública, no âmbito da “praça
pública”. Assume, assim, uma função pública informadora da sociedade, questionando-a,
todavia.
O seu caráter público surge a partir dos objetivos dos desobedientes, ou seja, mais do
que exteriorizar as suas demandas, influenciando a tomada de decisões, os desobedientes
pautam as suas ações em interesses coletivos e não em valores individuais ou particulares.
No âmbito jurídico, a desobediência civil pode recuperar o sentido de “república”, fundando
uma nova ordem constitucional aberta e integradora.
Essa necessidade de recuperação do sentido de república é assinalada por Habermas (2004),
ao afirmar que os valores republicanos, com o seu conteúdo universalista, são insuficientes
para dar respostas a sociedades pluralistas, aos contrastes multiculturais, aos cidadãos que
foram reunidos em uma involuntária comunidade de risco sem terem sido consultados.
Para o autor, haveria uma defasagem dos valores republicanos diante da complexidade das
sociedades atuais.

2.4 Ato ilegal

Supomos que, de todas as características, o ato ilegal é o que oferece maiores dificuldades
em ser definido, tanto por situar-se na tênue margem que separa a legalidade da ilegalidade,
quanto por oferecer uma série de obstáculos em relação à justificação da desobediência civil,
tema que será abordado adiante.

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Apesar de encontrar respaldo em princípios constitucionais2, ou mesmo com previsão nos


textos constitucionais de alguns países, como Portugal e Alemanha, a desobediência é, concei-
tualmente, um ato ilegal. Sua ação volta-se contra uma norma ou um ato normativo estatal.
Geralmente valores supralegais são invocados para sustentar uma ação desobediente.
Rawls (2002) reconhece na desobediência civil uma ação estabilizadora da sociedade diante
da injustiça praticada pelo Estado, permitindo, assim, o apelo aos sentimentos de justiça uni-
versalmente reconhecidos e à própria Constituição, para que mudanças possam ocorrer.
Arendt (2006) defende que a desobediência deve possuir uma previsão constitucional,
por ser um instrumento da cidadania. Canotilho (2003) faz uma observação a esse respeito,
afirmando que a desobediência civil somente é um instrumento legítimo quando utilizado
na defesa a princípios e direitos constitucionalmente previstos.
Todavia, o espaço da justificação normativa da desobediência é problemático, assim como toda
a tentativa de regulação das condutas sociais. A rigor, a desobediência estaria situada em qualquer
lugar acima das referidas condutas, como um direito para a reafirmação dos outros direitos.
Na opinião de Garcia (2004):

A desobediência civil é um direito fundamental de garantia, contido


no mandamento do artigo 5º, parágrafo 2º da CF. Decorre do direito
constitucional à liberdade e destina-se, portanto, à proteção da cidadania,
ápice da liberdade. [...] o regime dos direitos fundamentais consagrado na
Constituição Brasileira abrange, no seu sistema, a possibilidade de direitos
fundamentais implícitos, decorrentes do regime e princípios adotados pela
Constituição – dentre eles, o direito de desobediência civil.

Para Cohen & Arato (1992), qualquer base legal para a desobediência civil é contraditória
em si mesma, acarretando na impossibilidade de sua institucionalização.

2.5 Ato não violento

É praticamente unânime a posição de autores como Arendt, Rawls, entre outros, em rela-
ção ao caráter não violento da desobediência civil. Por outro lado, não podemos negar que a

Mesmo não sendo objeto do estudo, interessante observar os efeitos, para o reconhecimento da desobediência civil, da chamada “cláusula
2

da expansão”, expressa no parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

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história nos mostra uma diversidade de ações desobedientes que se valeram, ao menos sob
o ponto de vista estratégico, da violência para efetivarem-se. Como o estudo não comporta
espaço para explorar a relação entre violência e desobediência civil, nem é essa a intenção
dos autores, destacaremos apenas alguns breves aspectos.
Bobbio (2004) apresenta como elemento essencial da desobediência a não violência. É
justamente a ação pacífica que confere a característica “civil” para a desobediência. Havendo
violência, a ação perderia o seu caráter de defesa da cidadania.
Arendt (2006) afirma que a não violência é elemento da desobediência, compondo-a de
forma a conferir-lhe o caráter de ação política. A violência retira do campo político a expres-
são de um determinado movimento.
Inegável que a não violência é uma postura estratégica, fundada em convicções éticas e,
em muitos aspectos, é condição para a efetividade da ação desobediente. Por outro lado,
entendemos que o verdadeiro debate sobre a não violência ainda não teve lugar no sentido
de se explorar todas as suas dimensões, ética, cultural, estratégica e política3.
Alguns estudiosos da desobediência civil, como Nelson Nery Costa (2000), entende que
apesar da não violência ser mais eficaz para a obtenção de um determinado resultado, não
se exclui o uso da violência quando os meios pacíficos se mostrarem insuficientes. No entan-
to, alerta que a violência somente poderá ser praticada contra a propriedade, nunca contra
indivíduos, pois do contrário perderá o seu caráter civil.

2.6 Um conceito de desobediência civil


A desobediência civil, segundo Cohen & Arato, citado por Repolês (2003), envolve atos
ilegais, normalmente de atores coletivos e com caráter público, simbólico e movido por
princípios, envolvendo primariamente, meios não violentos de protesto e apelando para a
razão e para o senso de justiça da sociedade. O objetivo da desobediência civil é persuadir
a opinião pública tanto na sociedade civil quanto no âmbito político (ou econômico) de que
uma lei ou política específica é ilegítima e, por isso, uma mudança é justificada.

Ver o estudo de Jean-Marie Muller, “O princípio de não-violência: percurso filosófico”, Instituto Piaget, 1995.
3

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Atores coletivos envolvidos em atos de desobediência civil evocam os princípios utópicos


dos estados democráticos de direito, chamando a atenção tanto para os direitos fundamentais
quanto para a legitimidade democrática. A desobediência civil, portanto, é meio de refor-
çar o vínculo entre a sociedade civil e a sociedade política (ou sociedade civil e sociedade
econômica), quando as tentativas legais da primeira em exercer influência sobre a segunda
falharem ou outros meios tenham sido exauridos.

3 A desobediência civil no pensamento contemporâneo

A delimitação conceitual da desobediência civil não pode ser considerada exatamente


como algo unânime e talvez aí resida a potencialidade da mesma como um espaço em
permanente construção. Em um breve “passeio” por alguns autores, é possível demonstrar
que a diversidade de posicionamentos, ao contrário de enfraquecer a desobediência civil, a
fortalece como “pedra-de-toque da democracia”, parafraseando Habermas.
Rawls (2002) define como os mais importantes deveres ou “obrigações naturais” o apoio e
a promoção das instituições justas, por meio da obediência às instituições “justas” existentes,
mas alerta para o fato da necessidade de colaborarmos para a criação de organizações justas
quando as mesmas não existirem. Uma visão rasa do conceito rawlsiano de “instituições
justas”, indica que são justas as instituições que se fundamentam no desenvolvimento do
caráter moral dos membros da sociedade, no respeito e na tolerância.
Um dos problemas centrais da teoria da justiça do autor é a obediência à lei injusta, por
vivermos no que Rawls denomina de “sociedade quase-justa” na qual existem limites ao pleno
exercício do ideal de justiça. A lei que contrarie os “padrões publicamente reconhecidos”
deve ser desobedecida, recorrendo-se ao senso de justiça da sociedade.
Uma sociedade regulada por princípios que favorecem apenas interesses restritos de
determinadas classes, deve ser reformada usando-se mecanismos que assegurem algum su-
cesso. Como solução, o autor apresenta o conceito de Constituição justa, capaz de satisfazer
o princípio da “liberdade igual”, apesar das imperfeições procedimentais de um processo
político factível.
A desobediência aparece, via de regra, em situações excepcionais, nas quais a injustiça
produzida por estruturas políticas e sociais seja tamanha a ponto de exigir a resistência às

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mesmas. A chamada regra da maioria, para ser legítima, deve estar fundada, portanto, na
garantia das liberdades políticas.
Rawls entende que a desobediência civil é uma forma da minoria apelar para o sentido de
justiça da comunidade, é um mecanismo de convencimento, de persuasão. A desobediência
possui, assim, uma natureza essencialmente política e um caráter estabilizador da democracia,
como apelo ao senso de justiça da comunidade e como demonstração de que o princípio da
cooperação social entre os homens está sendo desrespeitado.
Estabelece o autor alguns requisitos de aceitabilidade para a desobediência, como a existên-
cia de graves violações ao princípio da liberdade igual ou ao princípio da igualdade equitativa
de oportunidades, ou a insuficiência dos instrumentos institucionais de mudança.
Arendt (2006), por sua vez, mostra o poder como algo advindo da convivência humana, ou
seja, o poder é um fenômeno coletivo, heterogêneo, uma expressão do povo. A legitimidade
do poder funda-se, portanto, no apoio popular às ações emanadas pelos governos. Para a
autora, como o poder advém do povo e sua legitimidade é por ele conferida, a confiança na
expressão do poder, isto é, na autoridade, é elemento essencial para sua manutenção. A des-
confiança em relação à autoridade rompe com os princípios basilares da relação de poder.
A desconfiança da autoridade indica que não há mais concordância sobre os rumos da ação
comunitária ou coletiva, rompendo a ambivalência da expressão do poder – escolha (do povo)
e expressão da autoridade. As ações políticas, por sua vez, são expressões de valores de uma
sociedade, sendo o seu espaço, portanto, criativo. A lei é expressão desses valores e, antes
da obediência, é necessário o apoio às mesmas, ou seja, na medida em que, por exemplo,
existam leis que protegem os direitos fundamentais, mas os mesmos são sistematicamente
violados, há que se imaginar aqui o cenário de ilegitimidade da autoridade.
Após a “desconstrução da ilusão dos contratos sociais”, Arendt (2007) elabora um conceito
de desobediência civil a partir do exemplo da Constituição americana, a qual para a autora,
possui um vício insanável na origem: os negros e índios não participaram da sua formação,
a eles não foi facultado o direito de ocupar o espaço público, eles não integram o acordo
tácito que instituiu a sociedade americana.
Entretanto, é real e factível a possibilidade dos excluídos integrarem a esfera pública sem
sequer haver a necessidade de invocar constantemente a exclusão do pacto inicial como
justificativa para a desobediência civil, sendo esta uma das formas de dissenso e de (re)
organização de aprimoramento do espaço político.

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Os desobedientes civis pressionam para influenciar o sistema político e jurídico e para


modificar a situação de injustiça na qual vivem. Para tanto, a autora de “Crises da República”,
defende a necessidade de incorporação da desobediência civil ao sistema jurídico, apesar
de visualizar grandes obstáculos para a institucionalização da mesma, pois a lei não pode
autorizar o descumprimento da lei.
Walzer (1977) constrói a sua visão de desobediência civil a partir do conceito de obrigações
políticas, discorrendo sobre o agir humano diante das injustiças e tiranias previstas em lei ou
praticadas pelos governantes. Para o autor, existem três tipos de obrigações: sociais, políticas
ou religiosas. Seja como for, elas só interferem na vida coletiva quando extrapolam as relações
pessoais, atingindo a esfera coletiva ou comunitária. Walzer (1997) vê com reticências a pro-
posta contratualista de Rousseau, advertindo que a mesma não é aplicável a grupos maiores,
de grande diversidade de sujeitos, para a qual atingir o consenso é algo mais complexo.
O convívio em sociedade e em comunidade com número expressivo de integrantes deveria
assegurar que todos sejam tratados de maneira igual e que a cada um seja conferido poder
igual de participação política. Contudo, a realidade nos mostra outro cenário, surgindo o
que Walzer (1997) chama de “obrigação de desobedecer”, desobediência que terá por fim
assuntos relacionados à vida pública, sendo uma reivindicação pública contra o Estado.
Em Bobbio (2004), verificamos uma lúcida abordagem sobre a realidade política, apontando
que o século XX, diferentemente do esperado, mostrou um redirecionamento do centro de
poder do Estado para os agrupamentos econômicos, gerando crise na democracia, a qual,
com os seus instrumentos clássicos, torna-se frágil para fazer prevalecer o interesse popular.
No contexto configurado pelo autor, a desobediência é apresentada como uma ação coletiva
que visa concretizar os direitos fundamentais. É ação contra atos estatais que não atendem
às necessidades populares e apresentando-se, portanto, como um importante mecanismo de
transformação social. A desobediência materializa a soberania popular, permitindo o pleno
exercício da cidadania e efetivando a participação no processo político. Bobbio entende que
não cabe mais discutir sobre a justiça da desobediência civil, mas sim sobre a eficácia dela,
ou seja, a sua força para confrontar a opressão das normas estatais. O autor entende que a
desobediência civil serve para demonstrar publicamente a injustiça da lei e para produzir um
clima social propício para a alteração da mesma. O Estado, nessa medida, tem que tolerar a
manifestação dos desobedientes civis pois mais do que lícita, é uma obrigação dos mesmos
confrontarem uma lei injusta.

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4 A potentia de Dussel e a política vivida

Apesar de não abordar diretamente a questão da desobediência civil, Dussel (2007) analisa
os aspectos políticos que permitem a expressão do poder e seus instrumentos de ação. Suas
análises lançam luzes aos contextos políticos “vividos” na América Latina. Ele identifica a
dissidência (ele não fala diretamente em desobediência civil) como fator (re)legitimador das
decisões coletivas e como instrumento político-social de expressão das classes excluídas da
sociedade.
Para o autor de 20 teses de política, o ser humano é um ser vivente. Todos os seres viventes
animais são gregários; o ser humano é originalmente comunitário. A humanidade sempre
teve que se organizar coletivamente para suprir as suas necessidades. É exatamente essa
“vontade-de-viver” que o autor descreve como a essência do conteúdo da força que move,
impulsiona e impõe a manutenção da vida.
É na busca da satisfação das necessidades que o poder se expressa. As necessidades, por-
tanto, são o substrato desse poder. A motivação do poder é a vontade de manter e reproduzir
a vida. É na esfera do político que se organiza e se expressa essa vontade e a tarefa dessa
esfera é criar mecanismos que permitam a manifestação do poder.
É a possibilidade de unir essas vontades, “vontade-de-viver”, transformando-as em
“vontade-de-viver-comum”, que resulta na chamada “prática comunicativa”, na qual os
membros de uma comunidade podem realizar acordos ou alcançar aquilo que o autor de-
nomina de “consenso racional”. É essa capacidade de construir “acordos comunitários” que
Dussel chama de “poder político”.
Se ao poder faltam instrumentos que possibilitem o seu exercício, deverão existir meios que
possibilitem o exercício da “vontade-de-viver-comum”, e a comunidade deverá desenvolver
estratégias que possibilitem a expressão do poder. É o que o autor chama de “factibilidade
estratégica”, mecanismo que possibilita a realização dos propósitos da vida humana (neces-
sidades) legitimamente manifestados na coletividade.
Segundo Dussel, é a soma desses três elementos: “vontade-de-viver” (necessidades),
“vontade-de-viver-comum” (consenso racional) e “factibilidade do poder” (estratégias) que
resulta na manifestação do poder, chamada pelo autor de potentia. Portentia é o poder que
tem a comunidade como se fosse a faculdade ou capacidade inerente ao povo, como últi-
ma instância da soberania, da autoridade, da governabilidade, do político. Por essa razão,

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enquanto o “poder” é factível, a potentia não o é. Potentia é algo inerente à comunidade e


que não se confunde com o poder político. Por essa razão, sendo “poder em si”, a potentia
torna-se real, objetiva ou empírica através da desobediência civil. A desobediência civil é a
exteriorização da potentia.

5 O problema da justificação da desobediência civil: aportes a partir da


teoria do discurso

Na teoria do discurso habermasiana, a política assume tanto a função de instância de dis-


cussão e resolução de conflitos sociais, na forma de “sistema de política”, quanto a função de
integração social. Assim, uma das funções da política é a estruturação dessa complexa enge-
nharia social. É na esfera da coletividade que ocorrem as discussões de interesse social e as
problematizações inerentes às mesmas. É nessa esfera que se estabelecem os espaços públicos
de discussão (problematização), mas não necessariamente de solução das questões postas.
Na perspectiva da integração social, a política assume importante papel de agregador so-
cial, porque é a partir da formação dos espaços públicos de discussão que a comunicação se
estabelece e, consequentemente, o reconhecimento. É nessa interação, por meio das esferas
públicas de discussão, que as “pretensões de validade” (Habermas, 2003) são levantadas de
modo a se estabelecer uma rede de interações consensuais.
Retomando a ideia de sistema, Habermas apresenta a política como o espaço congregador do
centro e das periferias sociais, sendo que o centro teria como a sua expressão maior o Estado, e a
periferia seria representada pelos movimentos sociais e/ou organizações da sociedade civil.
Dessa forma, a teoria do discurso permitiria relacionar os procedimentos de instauração
do direito com a sociedade, assinalando assim o chamado “princípio da democracia”, eis
que o direito não é entendido como um modelo formal e moral acabado, mas elaborado com
base em procedimento capaz de garantir legitimidade ao mesmo.
Diretamente vinculada à participação dos cidadãos no âmbito da esfera pública, está a
concepção de democracia, em Habermas entendida como “política deliberativa procedimen-
tal”, levando em consideração a pluralidade de formas de comunicação e de deliberação e
exigindo procedimentos claros e aplicáveis a todos os participantes, que garantam igualdade
de condições a todos (Repolês, 2003).

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A teoria e a prática da desobediência civil: um estudo a partir da doutrina contemporânea

É exatamente no contexto da democracia que a desobediência civil surge como elemento


social de expressão da vontade popular, onde o direito é legítimo na medida em que for
garantida a igualdade de participação na tomada de decisões coletivas de todos os atores
sociais. A desobediência civil será capaz de chamar a atenção para a crise de legitimidade
gerada pela falta de conexão entre as decisões do círculo oficial do poder e as do poder co-
municativo (Repolês, 2003).
Da reflexão habermasiana vemos ainda que a Constituição exerce um papel preponderante, no
sentido de representar o estatuto fundamental do sistema jurídico, a partir do qual tudo aquilo
que quer ser chamado de direito terá que se adequar. Na verdade, trata-se de uma “viragem”
na tradição racionalista kantiana embasada no jusnaturalismo: agora o direito possui o seu
fundamento dentro do próprio direito, e esse fundamento é a Constituição. Habermas alerta,
porém, de que não se trata de uma simples negação da tradição racionalista, muito menos do
desprezo à mesma. A Constituição passa a ter um sentido jurídico e político, no sentido da
construção de uma unidade entre ambas as esferas. Direito e política se ligam pela Constituição
e é exatamente nela que a desobediência civil se configura como direito fundamental.

6 Conclusão

As manifestações sociais que se propõem a contribuir com as discussões desenvolvidas na


esfera pública, mesmo que ilegais, são legítimas, sendo que a desobediência civil não exige
reconhecimento institucional para se efetivar. Ela se fundamenta no princípio da democracia
e na participação popular.
Na medida em que da esfera pública estão excluídas parcelas da sociedade, a desobediên-
cia civil assume uma característica de obrigação, constituindo-se numa “válvula de escape”
diante da insuficiência dos procedimentos previstos pela ordem vigente.
A desobediência civil é mecanismo legítimo de atuação, sendo ato político, expressão da
cidadania; é ato coletivo, resultado do exercício da soberania popular; é pública, para que
possa se inserir na esfera pública e possa corrigir uma injustiça ou até mesmo evitá-la; é
ato não violento, revelando o caráter pacífico das manifestações, entretanto, não é possível
descartar do horizonte conceitual da desobediência civil o papel da violência – tema para
ser aprofundado em futuros estudos.

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A desobediência civil se apresenta como um mecanismo capaz de explicitar, na visão de


Habermas, a tensão imanente ao direito, entre a factibilidade e a validade. Ela coloca em
evidencia a tensão interna no nível da validade jurídica, na medida em que demonstra que
esta se dá em dois planos: o da legalidade/vigência e o da aceitabilidade racional/legitimi-
dade, todos ingredientes do palco democrático.
Encerrando, uma reflexão de Lefort (1987), afirmando que o Estado democrático excede
os limites tradicionalmente atribuídos ao Estado de direito. Experimenta direitos que ainda
não lhe estão incorporados, é o teatro de uma contestação cujo objeto não se reduz à con-
servação de um pacto tacitamente estabelecido, mas que se forma a partir de focos que o
poder não pode dominar inteiramente.
Se a democracia é uma invenção da política, afirmamos que a desobediência civil é uma
invenção da democracia e a sua existência se justifica diante de um cenário que nos apresenta
uma democracia de baixa intensidade, na qual a maioria da população participa muito pouco
das decisões sobre os rumos do país.

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CLAUDIO MARASCHIN
Professor do Centro Universitário Ritter dos Reis - UniRitter, Mestre em Direito pela UFSC,
membro do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Fundamentais: eficácia e fundamenta-
ção.
E-mail: claudio.maraschin@gmail.com

GIOVANI TAVARES BRUSCATO


Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis - UniRitter.
E-mail: giovanibruscato@yahoo.com

Recebido em 02/07/2009
Aceito em 14/08/2009

MARASCHIN, Claudio e BRUSCATO, Giovani Tavares. A teoria e a prática da desobediência


civil: um estudo a partir da doutrina contemporânea. Revista da Faculdade de Direito Uni-
Ritter, Porto Alegre, n. 10, p. 41-54, 2009.

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