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Claudio Maraschin
Giovani Tavares Bruscato
RESUMO
O presente estudo sobre a desobediência civil é desenvolvido com base em três aspectos: como é abor-
dada no pensamento contemporâneo, em que medida é concebida como um instrumento de expressão
no âmbito da democracia e como se estabelece a sua relação com o direito, especialmente no que ser
refere à justificação da desobediência. Pensadores contemporâneos apresentam reflexões relacionadas
ao tema, que permitem avançar na concepção da validade e da atualidade do mesmo.
PALAVRAS-CHAVE
Desobediência civil; democracia; direito.
ABSTRACT
This study of civil disobedience is developed based on three aspects: as it is discussed in contemporary
thinking, how it is conceived as an instrument of expression in the context of democracy and how it
establishes its relationship with the law, especially what concerns to a justification for disobedience.
Contemporary thinkers have thoughts related to the issue, allowing progress in the conception of the
validity and actuality of it.
KEY WORDS
Civil disobedience; democracy; law.
1 INTRODUÇÃO
Escrever sobre desobediência civil implica em, pelo menos, uma indagação: em que me-
dida o direito convive com as diversas formas de manifestações sociais, especialmente as
que questionam diretamente o ente político?
A indagação, em princípio, não se apresenta como uma novidade, mas a (re)leitura de alguns
pensadores contemporâneos pode auxiliar na reflexão sobre as consequências do dissenso
perante a ordem jurídica, entendendo esta última como possuidora da função estabilizadora.
A teoria e a prática da desobediência civil: um estudo a partir da doutrina contemporânea
A desobediência civil é considerada ato político, eis que voltada à esfera coletiva da comu-
nidade. Os desobedientes buscam dar visibilidade às suas manifestações, desejam sensibilizar
a opinião pública com as suas ações e, assim, obter o tão almejado reconhecimento. Se o
reconhecimento é alcançado com o respeito da comunidade, é praticamente assegurado o
reconhecimento institucional.
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Sobre a ineficácia das soluções instituídas em relação às obrigações políticas, ver interessante estudo do professor Rex Martin, do Depar-
tamento de Filosofia da Universidade do Kansas (EUA), o qual aponta para o fenômeno do distanciamento entre eleitos e eleitores no
âmbito da representação política e os seus efeitos. “Obligación política: algunos problemas y um intento de solución”, Revista DOXA,
n. 25 (2002), p. 247-260. www.cervantesvirtual.com.
Supomos que, de todas as características, o ato ilegal é o que oferece maiores dificuldades
em ser definido, tanto por situar-se na tênue margem que separa a legalidade da ilegalidade,
quanto por oferecer uma série de obstáculos em relação à justificação da desobediência civil,
tema que será abordado adiante.
Para Cohen & Arato (1992), qualquer base legal para a desobediência civil é contraditória
em si mesma, acarretando na impossibilidade de sua institucionalização.
É praticamente unânime a posição de autores como Arendt, Rawls, entre outros, em rela-
ção ao caráter não violento da desobediência civil. Por outro lado, não podemos negar que a
Mesmo não sendo objeto do estudo, interessante observar os efeitos, para o reconhecimento da desobediência civil, da chamada “cláusula
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história nos mostra uma diversidade de ações desobedientes que se valeram, ao menos sob
o ponto de vista estratégico, da violência para efetivarem-se. Como o estudo não comporta
espaço para explorar a relação entre violência e desobediência civil, nem é essa a intenção
dos autores, destacaremos apenas alguns breves aspectos.
Bobbio (2004) apresenta como elemento essencial da desobediência a não violência. É
justamente a ação pacífica que confere a característica “civil” para a desobediência. Havendo
violência, a ação perderia o seu caráter de defesa da cidadania.
Arendt (2006) afirma que a não violência é elemento da desobediência, compondo-a de
forma a conferir-lhe o caráter de ação política. A violência retira do campo político a expres-
são de um determinado movimento.
Inegável que a não violência é uma postura estratégica, fundada em convicções éticas e,
em muitos aspectos, é condição para a efetividade da ação desobediente. Por outro lado,
entendemos que o verdadeiro debate sobre a não violência ainda não teve lugar no sentido
de se explorar todas as suas dimensões, ética, cultural, estratégica e política3.
Alguns estudiosos da desobediência civil, como Nelson Nery Costa (2000), entende que
apesar da não violência ser mais eficaz para a obtenção de um determinado resultado, não
se exclui o uso da violência quando os meios pacíficos se mostrarem insuficientes. No entan-
to, alerta que a violência somente poderá ser praticada contra a propriedade, nunca contra
indivíduos, pois do contrário perderá o seu caráter civil.
A desobediência civil, segundo Cohen & Arato, citado por Repolês (2003), envolve atos
ilegais, normalmente de atores coletivos e com caráter público, simbólico e movido por
princípios, envolvendo primariamente, meios não violentos de protesto e apelando para a
razão e para o senso de justiça da sociedade. O objetivo da desobediência civil é persuadir
a opinião pública tanto na sociedade civil quanto no âmbito político (ou econômico) de que
uma lei ou política específica é ilegítima e, por isso, uma mudança é justificada.
Ver o estudo de Jean-Marie Muller, “O princípio de não-violência: percurso filosófico”, Instituto Piaget, 1995.
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mesmas. A chamada regra da maioria, para ser legítima, deve estar fundada, portanto, na
garantia das liberdades políticas.
Rawls entende que a desobediência civil é uma forma da minoria apelar para o sentido de
justiça da comunidade, é um mecanismo de convencimento, de persuasão. A desobediência
possui, assim, uma natureza essencialmente política e um caráter estabilizador da democracia,
como apelo ao senso de justiça da comunidade e como demonstração de que o princípio da
cooperação social entre os homens está sendo desrespeitado.
Estabelece o autor alguns requisitos de aceitabilidade para a desobediência, como a existên-
cia de graves violações ao princípio da liberdade igual ou ao princípio da igualdade equitativa
de oportunidades, ou a insuficiência dos instrumentos institucionais de mudança.
Arendt (2006), por sua vez, mostra o poder como algo advindo da convivência humana, ou
seja, o poder é um fenômeno coletivo, heterogêneo, uma expressão do povo. A legitimidade
do poder funda-se, portanto, no apoio popular às ações emanadas pelos governos. Para a
autora, como o poder advém do povo e sua legitimidade é por ele conferida, a confiança na
expressão do poder, isto é, na autoridade, é elemento essencial para sua manutenção. A des-
confiança em relação à autoridade rompe com os princípios basilares da relação de poder.
A desconfiança da autoridade indica que não há mais concordância sobre os rumos da ação
comunitária ou coletiva, rompendo a ambivalência da expressão do poder – escolha (do povo)
e expressão da autoridade. As ações políticas, por sua vez, são expressões de valores de uma
sociedade, sendo o seu espaço, portanto, criativo. A lei é expressão desses valores e, antes
da obediência, é necessário o apoio às mesmas, ou seja, na medida em que, por exemplo,
existam leis que protegem os direitos fundamentais, mas os mesmos são sistematicamente
violados, há que se imaginar aqui o cenário de ilegitimidade da autoridade.
Após a “desconstrução da ilusão dos contratos sociais”, Arendt (2007) elabora um conceito
de desobediência civil a partir do exemplo da Constituição americana, a qual para a autora,
possui um vício insanável na origem: os negros e índios não participaram da sua formação,
a eles não foi facultado o direito de ocupar o espaço público, eles não integram o acordo
tácito que instituiu a sociedade americana.
Entretanto, é real e factível a possibilidade dos excluídos integrarem a esfera pública sem
sequer haver a necessidade de invocar constantemente a exclusão do pacto inicial como
justificativa para a desobediência civil, sendo esta uma das formas de dissenso e de (re)
organização de aprimoramento do espaço político.
Apesar de não abordar diretamente a questão da desobediência civil, Dussel (2007) analisa
os aspectos políticos que permitem a expressão do poder e seus instrumentos de ação. Suas
análises lançam luzes aos contextos políticos “vividos” na América Latina. Ele identifica a
dissidência (ele não fala diretamente em desobediência civil) como fator (re)legitimador das
decisões coletivas e como instrumento político-social de expressão das classes excluídas da
sociedade.
Para o autor de 20 teses de política, o ser humano é um ser vivente. Todos os seres viventes
animais são gregários; o ser humano é originalmente comunitário. A humanidade sempre
teve que se organizar coletivamente para suprir as suas necessidades. É exatamente essa
“vontade-de-viver” que o autor descreve como a essência do conteúdo da força que move,
impulsiona e impõe a manutenção da vida.
É na busca da satisfação das necessidades que o poder se expressa. As necessidades, por-
tanto, são o substrato desse poder. A motivação do poder é a vontade de manter e reproduzir
a vida. É na esfera do político que se organiza e se expressa essa vontade e a tarefa dessa
esfera é criar mecanismos que permitam a manifestação do poder.
É a possibilidade de unir essas vontades, “vontade-de-viver”, transformando-as em
“vontade-de-viver-comum”, que resulta na chamada “prática comunicativa”, na qual os
membros de uma comunidade podem realizar acordos ou alcançar aquilo que o autor de-
nomina de “consenso racional”. É essa capacidade de construir “acordos comunitários” que
Dussel chama de “poder político”.
Se ao poder faltam instrumentos que possibilitem o seu exercício, deverão existir meios que
possibilitem o exercício da “vontade-de-viver-comum”, e a comunidade deverá desenvolver
estratégias que possibilitem a expressão do poder. É o que o autor chama de “factibilidade
estratégica”, mecanismo que possibilita a realização dos propósitos da vida humana (neces-
sidades) legitimamente manifestados na coletividade.
Segundo Dussel, é a soma desses três elementos: “vontade-de-viver” (necessidades),
“vontade-de-viver-comum” (consenso racional) e “factibilidade do poder” (estratégias) que
resulta na manifestação do poder, chamada pelo autor de potentia. Portentia é o poder que
tem a comunidade como se fosse a faculdade ou capacidade inerente ao povo, como últi-
ma instância da soberania, da autoridade, da governabilidade, do político. Por essa razão,
6 Conclusão
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. Crises da república. Tradução de José Wolkmann. 2. ed. São Paulo: Pers-
pectiva, 2006.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004.
COHEN, Jean C.; ARATO, Andrew. Civil society and political theory. EUA: Massachusetts
Institute of Technology, 1992.
COSTA, Nelson Nery. Teoria e realidade da desobediência civil. São Paulo: Forense, 2002.
CULT. A democracia e seus impasses. São Paulo, Revista brasileira de cultura, n. 137,
2009.
GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004.
_________________. A inclusão do outro: estudos de teoria política. 2. ed. São Paulo: Loyola,
2004.
REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo. Habermas e a desobediência civil. Belo Horizonte: Man-
damentos, 2003.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
CLAUDIO MARASCHIN
Professor do Centro Universitário Ritter dos Reis - UniRitter, Mestre em Direito pela UFSC,
membro do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Fundamentais: eficácia e fundamenta-
ção.
E-mail: claudio.maraschin@gmail.com
Recebido em 02/07/2009
Aceito em 14/08/2009