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ARQUIVOS DE REGIMES REPRESSIVOS Fontes sensiveis da historia recente Caroline Silveira Bauer René E. Gertz A historia republicana brasileira: fontes do autoritarismo e da repressao politica A utilizacao de arquivos policiais na pesquisa hist6rica é antiga. Como aqui se enfocard esse tema numa perspectiva brasileira, cabe destacar que, _ Sobretudo, historiadores sociais recorreram a essa fonte para obter informa- _ GGes sobre criminosos e outros grupos marginalizados da sociedade.! Ainda que, evidentemente, desde 0 inicio do Império a policia tivesse, além da _Tepressao social, também um papel de repressao politica, foi com o regime centralizador e autoritario iniciado em 1930 que ela adquiriu um novo papel © uma reorientagao dentro do aparelho estatal. Por isso, para falar sobre os arquivos produzidos pela repressao, é imprescindivel fazer referéncia a re- Pressao propriamente dita, ou, ao menos, aos sistemas de informagées, pois foi essa estrutura burocratica que produziu tais documentos. E, na historia da O ictenedor ssn fontes Republica brasileira, destacam-se, nesse sentido, dois perfodos: um durante o assim chamado primeiro governo Vargas (1930-45), o segundo durante a dita- dura militar instaurada em 1964. Isso ndo significa que os 6rgaos responsdveis fossem desativados no intersticio dessas datas nem que antes e depois sua atuagao estivesse ausente, mas em momentos mais ou menos democraticos essas instancias sofrem maior controle em seu funcionamento e, consequen- temente, na producao dos citados documentos. Autores que se dedicaram a Histéria da policia e a 6rgaos correlatos depois de 1930 destacam que, nesse momento, foi feito, por assim dizer, um upgrade em relacao a periodos anteriores, com maior profissionalizacdo e me- lhor aparelhamento material, incluindo uma ampliacao dos contatos com e da influéncia de instancias equivalentes em outros paises? Grosso modo, pode-se dizer que as fontes desse periodo tratam de dois objetos: num primeiro momento, sobretudo, da esquerda, cuja representacio mais expressiva foi a Alianga Nacional Libertadora (ANt), fechada em julho de 1935, e que, entéo, optou por uma tética insurrecional, que culminou no levante de novembro do mesmo ano. A partir dai, iniciou o periodo “4ureo” da perseguicao policial, que originou uma primeira leva de documentacio sobre repressio politica. Reportando-se ao Tribunal de Seguranga Nacional, que julgou grande parte daqueles cujas acdes foram registradas por essa documentagao, um autor caracterizou essa fase de “vermelha”. Na época da decretagao do Estado Novo, em novembro de 1937, tanto para os érgaos repressores quanto para o proprio tribunal j4 nao havia mais muito “puibli- co” a ser enquadrado. O citado autor afirma que os 6rgaos de repressao e 0 tribunal passaram, ento, para uma fase “verde”, que se estendeu do levante integralista de maio de 1938 até o final da Segunda Guerra Mundial, e visou, primeiro, aos integralistas, para atingir, depois, nazistas e fascistas, quando nao toda a populagao qualificada de “alienigena” ou “adventicia’, isto é, os cidadaos do Eixo e seus descendentes.* Naquilo que tange & pesquisa sobre a esquerda, o livro de R. S. Rose, intitulado Uma das coisas esquecidas: Gettlio Vargas e 0 controle social no Brasil - 1930-1954, constitui exemplo de utilizacao desse tipo de fonte.* Memdérias de uma (outra) guerra: cotidiano e medo durante a Segunda Guerra em Santa Catarina, de Marlene de Faveri, 6 uma obra que, por sua vez, utilizou documentagaio policial sobre os “stiditos do Eixo”.5 174 — ter semsiveis da hist ecente " ‘Uma segunda fase de produgiio densa desse tipo de documentacao iniciou com a implantacao das ditaduras civil-militares que vigoraram da década de 1960 até a de 1980, nao sé no Brasil, mas em todo o Cone Sul da América Latina, quando a geracao de informagGes passou a ter importancia fundamental, pois, através dos dados armazenados em arquivos militares e policiais, orientavam- se as operagées repressivas. Um indicio da importancia das informacées e de suas redes de circulagao foi a criagao, pela ditadura militar brasileira, do Ser- vico Nacional de Informages (sN1), apenas trés meses ap6s o Golpe de 31 de marco de 1964, com o objetivo declarado de “superintender e coordenar, em todo 0 territorio nacional, as atividades de informagao e contra informacdo, em particular as que interessem a Seguranga Nacional”. De maneira resumida, pode-se afirmar que a ditadura brasileira - como as demais do Cone Sul — atuou de duas formas simultaneas: através da ati- vidade burocratica, seguindo cadeias de hierarquia e mando, e dividindo responsabilidades entre as diferentes instituigGes (Forgas Armadas, érgaos de informacdo, policia etc.) e através de aces clandestinas. A primeira modali- dade enquadrava-se numa cultura burocratica de “cumprimento de ordens”. Implicava em registros e arquivos organizados, caracterizando 0 tipo de do- cumentacao proveniente de instituigGes policiais e servicos de inteligéncia. A acao clandestina, por sua vez, obviamente, utilizava as informagdes desses arquivos, mas nao se tem registros oficiais sobre essas operagdes, em parte por sua natureza, em parte pela impossibilidade de acessar os arquivos das Forgas Armadas para verificar esses fatos.’ As duas formas pressupdem estruturas hierarquicas, com organizacao burocratico-militar, cuja pratica implicava em. criar registros, redigir informes, organizar prontudrios e arquivos. Manter e alimentar esses registros, acumul4-los e ordené-los, fazia parte das tarefas habituais das ditaduras sul-americanas.* Os arquivos resultantes da repressao Naquilo que tange a documentagao do primeiro governo Vargas, nao houve preocupacao especial com ela, quando o Estado Novo entrowem decadéncia e acabou caindo. Durante a assim chamada “redemocratiza- cao” de 1945, nao se falou no tema. Clamores pela “auséncia de alguém em Nuremberg”? nao repercutiram de forma suficientemente profunda para 175 Oistoindor cause fortes fomentar uma politica expressa de lidar com os resultados da acao policial no periodo anterior, e uma preocupagao com a documentagao que registra- va essa agao. Houve reagées locais que poderiam ter surtido efeitos, mas também podiam desembocar, justamente, no desaparecimento total dessas fontes. Um exemplo emblematico, nesse sentido, ocorreu no Rio Grande do Sul. Em 1947, 0 procurador Jodo Bonuma apresentou um processo com 12 quilos de papel denunciando 52 policiais que, durante a Segunda Guerra Mundial, teriam cometido “peculato doloso e culposo” por apreensao de objetos “que nenhuma relacao tinham com a finalidade das diligéncias, tais como objetos de arte, maquinas de escrever, livros cientificos, colegdes de selos, radios e até joias e dinheiro, cujo destino foi desviado em beneficio préprio e de terceiros”. Encaminhado ao Tribunal de Justica do Estado, o processo foi arquivado sob alegacao de que os fatos arrolados aconteceram sob estado de excecao (a guerra), motivo pelo qual o tribunal de tempos normais se considerou incompetente para julgar o caso. Mas — ainda que nao haja provas — essa situagdo, provavelmente, explica por que, nos anos seguintes, nada menos de cinco locais em que havia documentos de origem policial do periodo do Estado Novo foram destruidos por incéndios."' Ain- da que o Tribunal de Justica se negasse a julgar o citado processo, em 1947, nao havia garantia de que nao pudessem ser abertos outros, com acusagées ainda mais graves, como tortura e assassinato. Muito provavelmente foi por isso que se procedeu a uma literal “queima de arquivo”. Felizmente, para a pesquisa e para a mem6ria histéricas, documentos policiais de varios outros estados foram preservados, e, em virtude da troca de correspondéncias e de outros tipos de escritos entre as policias estaduais, tem-se acesso ao menos a c6pias de parte da documentacao gaticha queimada.” A situagao foi diferente no declinio das ditaduras militares brasileira e latino-americanas em geral. Arquivologistas especialistas em conjuntos docu- mentais de extintos regimes repressivos afirmam que as origens dos arquivos da repressao podem ser buscadas na documentagao dos tribunais inquisitoriais da Idade Média."* Porém, a discussao sobre sua conservagao e preservagao, sua disponibilizacao e suas especificidades foi fomentada somente a partir do final da década de 1980, na Europa, com o fim da Guerra Fria, e, na América Latina, com a consolidagao dos regimes democraticos. 176 Em 1994, a Unesco, junto com © Conselho Internacional de Arquivos, formou uma comissao de especialistas (arquivistas e membros de organizagoes de Direitos Humanos) para refletir sobre a tematica, oferecer recomendagoes para © tratamento dessa documentacao, verificar os problemas enfrentados e as solugdes buscadas e, ainda, elaborar um cédigo ético e moral para a utili- zac&o e o manuseio das informacGes contidas nesses arquivos. Os trabalhos terminaram em 1995 e resultaram na apresentagao de um informe intitulado Los archivos de la seguridad del Estado de los desaparecidos regimenes represivos.'* Mesmo com as recomendacoes da comissao criada pela Unesco, nao ha unanimidade sobre as definicdes daquilo que sao arquivos da repressdo, e sobre 0 tratamento que os mesmos devem receber nos regimes democraticos que sucederem aos periodos discricionarios. Numa definigao ampla, pode-se afirmar que arquivos da repressao sao conjuntos documentais produzidos pelos érgaos de informagao e seguranga do aparato estatal em agées repressivas, durante periodos ndo-democraticos. Em sua maioria, os arquivos da repressdo se compoem de registros ela- borados ou incorporados a partir da agao policial cotidiana (fichas pessoais, depoimentos, prontudrios, dossiés, relatérios, informag6es, ordens de busca e prisdo etc.), mas também de documentos roubados (livros, publicagées, cor- respondéncias pessoais, documentos de organizagoes etc.), ou de declaragoes tomadas em interrogatérios que desrespeitavam tanto os cédigos penais (du- ra¢do do interrogatério, horario em que eram feitos, presenga de testemunhas etc.) quanto os Direitos Humanos (torturas fisicas e psicolégicas). i Em relacdo ao contetido dos documentos, as informagGes que os compoem sao conseguidas através de acées legais e ilegais, incluindo violéncia fisica e psicol6gica. Sao produto de situagdes-limite, onde a intolerancia é parte vital ap sistema." Além disso, essa documentacao est permeada por praticas difundi- das e legitimadas pelo autoritarismo, como a delacao e os falsos testemunhos, © que, muitas vezes, gera informagées imprecisas. Na definicao de arquivos da repressdo, ainda podem ser incluidos objetos sequestrados junto com as vitimas, no momento da prisdo, e documentacao produzida pelas organizages de Direitos Humanos em sua busca de informagoes sobre atingidos e de dentincia de ilegalidades e de violéncias praticadas."° Wd

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