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FOTOGRARAS Usos sociais ¢ historiograficos Selonge Ferro de Limo vie Cameo 4 Cerne Fotografia ¢ sociedade Para compreender a fotografia como fonte histérica ¢ importante levar ‘em conta os usos socials que agenciaram o invento fotogréfico ao longo dos séculos 10x e xx e consolidaram acervos importantes para a pesquisa, Quandio a fotografia ingressouno mercado, em versbes técnicas variadas, langadas em pequenos lapsos de tempo entre 1839 ¢ 1850, rapidamente nela se identificou a capacidade deatender as mais diferentes demandas sociais. A rapidez da produgio em série e o baixo custo tomnaram-se pré-requisitos em. ‘uma sociedade com crescente industrializacio, Conquistar novos mercados « incutir na pop ulagio o valor do maquinismo foram préticas que se retroali- mentaram com as pesquisas em busca da imagem produzida mecanicamente. (Ocrescimento dos segmentos médios e suas expectativas de ascensio incenti- varam novas formas de representacio de identidade e distingao que estavam «em sintonia com osesforgos de um diversificado grupo dehomens das ciéncias, artistas e comerciantes que transformaram a folografia em um grandenegécio. A fotografia foi pouco a pouco substituindo a pedtra litogréfica ite ots Invengto burgucse por exceléncia, a fologtulia popularizou 0 retrato € Jevou aos recantos mais distantes do mund6 es "caixa de pandora”, contendo palsagens de higares exéticos, de monusientos, de tipos humanos, retratoe com apelos eroticos, paisagens urbanas das metrépoles, imagens chocantes de guerras ede conquistascientficas. No campo da arte «fotografia ampliow © acesso de alunos, profssionais elelgos a modelos e obras de arte antes frufdas somente it loco ou “reinterpretadas” por gravutistas® em publicacbes, Enquanto anobreza cultivava seus valores e costumes para serem consumidos pelo seu préprio grupo, a burguesia se extrovertia em um af& cosmopolita e imperialists. As coberturas fotograficas dos mais variados temas pregavam a viagem e 0 conhecimento por meio da imagem. A sociedade do século xix desenvolveu uma paixto especial pela exati- <0, qualidede requisitada tantono Ambito cientifico comonaquele pertinente 80 senso comuin. O peribico francés Gazeta Liteiria publicou os seguintes ‘comentérios a respeito de sels imagens de Daguvsre, o inventor oficial da fotografia: as imagens possuern cecraornaminen.] mulled deta [.Jomonor tfeto aiden do sol, dos tarcos, do marcando, des bancas¢ doo [.] os mals dlados objets [.] 0 rans gras de swanspartncia [tude éreprovunids com etcfoinacedivl, fe quee mehor chr nfo poder madi, so descobers ‘As grandes celebridades, antes observadas de longe pela populacio, podiam “ser colecionadas” em casa, colocadas nos élbuns pata promover a conversagio em encontros socials. A fotografia possibilitou 0 acesso virtual as pessoas de alta sociedade. Reduzidas a imagens do mesino formato, colocadas lado a lado nos femosos dlbuns de celebridades, pessoas antes inacessiveis podiam ser comparadas. Defeitos e qualidades fisicas exam ressaltados, suas express6es, postura corporal e roupas erem avaliads, Se por um lado a fotografia esvazia a experiéncia, como afirma Susan Sontag* ‘ensaista c critica americana dedicada aos temas da fotografia, ela democratiza a informagio, mudando a percepeao do mundo e empliando as referencias de populagées que antes dela tinkam suas vidas circunscritaS ao seu local de moradia e trabalho, | 30 he sith Hoe Retratos (Os ateliés fotograficas, muitos deles ambulantes, produziram milhées de retratos nos mais diferentes segmentos sociais. © hébito'de retratara si, 20 casal, 20s filhos,& familia, privilégio antes restrito & nobreza e aos com tes ricos, tornou-se possivel com a fotografia, que barateou os custos de sua produgfo, Colados em paptisrigidos de vérios formatos oretrato fotogréfico circulava entre os parentes substituindo auséncias, sugerindo propostas de casamento, informando e garantindo a reprodusto dos rituals de passagem (morte, batismo, crisma, casamento), apresentando novos integrantes, do- cumentando as mudangas do corpo social familiar com o passar do tempo © ativamente registrando a sua unidade. Com os retratos, foram organizadas harrativas familiares e pessoais que atravessaram geracSes fixadas em élbuns confeccionados om finos materiais ede riqueza hoje inimagindvel, comocapas de alabastro, madeira entalhada, incrustacbes de metaise pedzatias, lombada fothada a ouro ete. No século xx, com os retratos amadores, a rigueza dos ‘Atbuns diminuiu, mas sua quantidade e varledade aumentaram, A fotografia propiciou aquilo que o soci6logo José de Souza Martins chamou de “cultura popular da imagem”. Apesar deser simbolo de modernidadee urbanidade, a fotografia foi absorvida por sociedades tradicionais, que a transformasem em instrumento de atualizagio “modema” de antigos valores, normas ecostumes* Fora do cireuito dos atelits fotogréficos que atendiam familias e indivi duos interessados em constituir uma autorrepresentaggo social, os retzatos serviram de instramento de documentagio em distintas éreas de investigagio cientifica. Eles foram utilizados para catalogar a variedade de tipos fisicos hhumanos, 0 cotidiano e os rituais dos povos dites entlo primitives, No meio ‘médico, 0s retratos desdobraram-se em registros de deformagées fisicas,dis- trbics mentais, procedimentos cirtirgicos, acompanhamento de doentes rmanifestagbes fisicas de suas enfermidades” Paraas instituigées do Estado, a fotografia fol instrumento eficaz.no apri= ‘moramento do controle da populagio por insituigSes, especialmente a policia ~ sama das primeiras fotografias de reveltosos foi feita ne Comuna de Parisem 1871. Fm 1851 sugeriu-se o uso da fotografia nas licengas de habilitaglo pare dizegfode veiculosa tragiio animal; em 1853 pensou-se na fotografia de passa- porte; em 185% o inspetor responsdvel pelo sistema penal rancés dealizou um 31 (irre te, projeto de fotografar os criminosos mais petigosos de diversas penitenclirias, procedimento que vai realmente acontecer anos depois Objetos da natureza Nomesmoanode divulgacio do invento, em 1899, fotografia sedifundia centre as ciéncis.Iniciaram.se os estudos do espectro solar e deacompanhamen- to dos eclipses usando-se material ftogréfico. Antes da fotografia, oestudo da zadiacd0 solar era feito por meio da observagio a olho nu. Um daguerrestipo, feito em 1851, fo considerado a melhor representagdo da superficie lunar até o realizada. John Adams Whipple recebea pelo feito medalha de ouro na Exposigdo Universal do mesmo ano, no Palicio de Cristal, em Londres. Organizadaem Chicago, em 1893, a World's Columbian Exposition era prati- camente uma exposigao de fotografas, que, nas palavras de Julle K. Brown, “funcionavam como réplicas dos objtos ausentes,informavam, persuadiam, documentavam eilustravam eas”? fotografia seria til em todasas aividades que envelviam a observagio visual. Para desenharplantas,obislogotinhe deter qualidades de desenkista,0 que tomava o trabalho de campo uma terefe mas dificil edemorada. O im tantenessas descrigées vsuais erm aexatid eo detalhe produzidos por um suporte confiével, comparado ao olho no seu processo de formacéo. Liminas ricrosc6picas foram fotografadas para consitur compéndios com centenas de espécies de botdnice. Os sistematas (exonomistas) usavam a fotografia para éclassificegio deplantaseanimaisem sistemas hierérquicos baseados na forma e medida dos corpos —nessas discussées 0 documento visual era parte fundamental das justifcativas e fotografia era vista como um instrumento neutro, mais que o deserho, no fornecimento de evidéncias. As chamadas “vistas” eram produzidas para estudos de Gzologia relacionados também a objetivos militares como a definigio de fronteiras nacionais em disputa entre palses coleta de informagées estratégicas para defesa,ataque e colonizagio, de teritrios, Mas as vistese paisagens merecem um comentirio parte, Vistas e paisagens Nos primbrdios da fotografia, produzir uma vistada cidade oudo campo cera uma tarefa ardua. Fazia-se necessério levar consigo um laborat6rio para 32 rs « npn ‘0 processamento imediato do negativo de vidro. Incrementos na tecnologia dda miquinae dos suports fotogrdficos fora, paulatinament,facltando a {otopralin em ambiente externo ao eshidio e a prétca amadora Em termos financeiros, a producio de vistas passou a ser um negécio cextromamente lucrativo. Editoras financiavam a viagem de fot6grafos para todas as partes do mundo a fim de produzir estereoscopies acomodadas em cestojos tematicos e vendidas para o grande publico que as utilizava como entretenimento em saraus,jantares ou encontros familiares." A paisagem incentvou ocoleionismno entre os amantes da fotografia e muitos fot6grafos amadores integreram fotoclubes onde encontravam-se regularmente, promo- vam concursos,discuss6es e organizavam exposigbes. A fotografia serv de instrumento para a prética preservacionistacres- cante na Europa da segunda metade do séeulo xix. Reconhecido como um melo eficaz de preservar o passado, grupos ligados 20 movimento de conser- vaso cresceram com as sociedades de fotografia. Assim como ocorreu com 0 retrato os élbuns fotogréficos foram os primeiros difusores da imagem de cidade do século xix Iniialmente, temos a documenta¢do patrocinada por sscociagbes de preservasao do patriménio arquitetnico em Londres, Paris « Glasgow, com registros rua a rua, ca antiga axquitetura que desapareceria coma implantagéo dos novos planos urbanisticos.® Posteriormente, surgiram os egistos dos modelos urbanos implantados. Em 1897, no Museu Britinico foram depositadas fotograflas consideradas de interesse para o conhecimen- to do passado. A inciativa foi da National Photographic Record Association. A relagio entre fotografia e preservacionismo estendeu-se aos Estados Unidos, Bélgica e Alemanha." Intervenc6es urbanas passaram a ser documentadas or fotografos comissionados pela prefeltura.O caso mais conhecido foto de Charles Marville que ao final da década de 1850 fi contatado pela prefitura de Pasis para fotografar os bairros medievais do centro da cidade que desa- pareceriarn com a refortna urbanisica do entio prefeito da cidade de Paris, 0 bardo Georges-Eugtnes Haussmann, A tajetéria da fotografia no Brasil também seguiu: por esse caminho. No «asode Séo Paulo em meadosaioséculo ux a procuggo que melhor exemplifc essa vertente documentariste éa de Militio Augusto de Azevedo. Noquese refere acs objtivos, os epistros de Sio Paulo feltes por Militto aproximam- s@ da produgio de Charles Manville, O enfogue nos aspects topogritics, 33

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