Você está na página 1de 466
GRANDES DOUTRINAS BIBLICAS Volume 1 Deus o Pai, Deus o Filho D. Martyn Lloyd-Jones FES PUBLICAGOES EVANGELICAS SELECIONADAS Caixa Postal 1287 01059-970 — Sao Paulo - SP Titulo original: God the Father, God the Son Editora: Hodder and Stoughton Ltd., Londres Primeira edigdo em inglés: 1996 Copyright: Lady E. Catherwood Ann Desmond O direito de Dr. Martyn Lloyd-Jones de ser identificado como 0 autor desta obra tem sido asseverado de acordo com o ato de Copyright, Design e Patents 1988 Tradugao do inglés: Valter Graciano Martins Revisdo: Antonio Poccinelli Capa: Sergio Luiz Menga Primeira edigdo em portugués: 1997 Impressao: Imprensa da Fé PrefAcio .....ssseecoeee . Meu Propésito e 2 Métod . A Revelagio ........ . A Autoridade da Biblia. . Os Atributos da Personalidade Absoluta de Deus . Os Atributos Morais de Deus .. . Os Nomes de Deus ¢ da Santa Trin . Os Decretos Eternos de Deu: . Os Anjos Bons... . O Diabo e os Anjos "Apéstatas . . A Criagéo do Mundo . A Providéncia ........ . A Criagéo do Homem . A Imagem Divina no Homem.. . A Queda . A Posteridade de Adio e 0 Pecado Original . A Corrupgao Original... . Redengio: o Plano Eterno de ‘Deus . O Pacto da Graga no Velho Testamento . O Pacto da Graga no Novo Testamento 22. O Senhor Jesus Cristo 23. 24. 25. PRENAUAWNE INDICE Como Achamos as Doutrin: A Existéncia e o Ser de Deus... A Encarnagdo Evidéncia para a Deidade e a Humanidade de Cristo .. 339 Deus-Homem: a Doutrina .......ssecssescsseseesesseeeseersenseennes 353 . Cristo 0 Profeta .csssssssssssssessseeesssessseessssseesssseeesssessseess 308 . Cristo 0 Sacerdote . A Expiacao .. . Substituigao . . A Necessidade de Expiagao . Cristo 0 Vitorioso .......... . As Béngaos do Novo Pacto . Cristo o Rei PREFACIO Nas noites de sexta-feira, apds a guerra, o Dr. Lloyd-Jones passou a manter reunides de debates numa das salas da Capela de Westminster, em Londres. Os temas desses debates versavam sobre quest6es prdticas da vida crista, e as reunides eram freqiientadas por um grande nimero de pessoas. As questées que surgiram demandavam um sdlido conhecimento de todo tipo de ensino biblico. As vezes surgiam também problemas doutrindrios, com os quais “o Doutor” tinha que tratar, geralmente em sua conclusao, no encerramento do debate. Em parte era resultado disso, e em parte porque o nimero foi se tornando muito grande para a sala comportar, e talvez também porque as pessoas que lhe pediam informag&o sobre as doutrinas biblicas eram tantas, que ele comegou a sentir a necessidade de mudar a “reunido noturna de sexta-feita” para a propria Capela, e ministrar ali uma série de prelegdes sobre esses grandes temas. Ele fez isso de 1952 a 1955, e entao deu inicio a sua magistral série sobre a Epistola aos Romanos, 4 qual deu seguimento até sua aposentadoria em 1968. As prelegdes doutrindrias eram muitissimo apreciadas pelas grandes congregacdes que as ouviam; e, ao longo dos anos, muitos tem dado testemunho da maneira como, por meio delas, sua vida crista se fortaleceu. Mais tarde, o préprio Doutor se sentiu mais satisfeito em pregar sobre doutrinas como parte da exposig&o regular, como certa vez afirmou: “Se as pessoas desejam conhecer uma doutrina em particular, poderao encontra-la nos manuais de doutrina.” Masa grande forga de seus estudos doutrin4rios consiste em que eles nao sio dridos compéndios de prelegdes. Ele era acima de tudo um pregador, e isso se salienta em todas as suas prelegdes. Ele era também pastor, e desejava que homens e mulheres compartilhassem de seu senso de admiragao e de sua gratidao a Deus pelos fatos poderosos do evangelho. Dai sua linguagem clara e destituida daquela complexa fraseologia académica. A semelhanga de Tyndale, ele queria que a verdade se revestisse de palavras “compreensiveis ao povo”. Outro desejo seu era que 0 ensino nao ficasse s6 na cabega, por isso ha em cada prelegdo uma aplicag&o para que se assegurasse que 0 coracao e a vontade também fossem tocados. A gléria de Deus era a sua principal motivacao na ministracao destas prelegdes. Os que conhecem a pregacao eos livros do Dr. Lloyd- Jones, ao lerem as prelecgdes, haverao de se lembrar que seus pontos de vista sobre alguns temas se desenvolveram ao longo dos anos, e que suas énfases provavelmente nem sempre eram as mesmas. Todavia esta constitui parte da riqueza do seu ministério, como o foi do ministério de muitos dos grandes pregadores do passado. Nao obstante, no tocante as verdades essenciais e fundamentais da Palavra de Deus, nao ha qualquer mudanga em sua proclamacao, e nenhum som incerto tem-se emitido. Temos encontrado certa dificuldade na preparacao destas prelecées para a publicagdo. Elas foram h4 muito tempo pronuciadas e gravadas em fitas, de modo que em certos lugares houve dificuldade em decifrarem-se as palavras, e algumas fitas se perderam. Além disso, sé pouquissimo das prelegdes foi taquigrafado, e assim, num ou dois casos, nfo temos nem fita nem manuscrito. Afortunadamente, contudo, o Doutor guardou suas anotagdes pessoais de todas as prelegdes, e assim as temos usado, embora, naturalmente, significa que esses capitulos nao se acham tao completos quanto os demais. As fitas do Doutor sao distribuidas pelo Martyn Lloyd- -Jones Recordings Trust, e de todas as suas fitas 0 maior numero de pedidos consiste nestas prelegdes doutrindrias. A caréncia de conhecimento das verdades vitais da f€ cristé € maior agora do que antes — com certeza ainda maior agora do que na década de 1950! Portanto a nossa oragao é para que Deus use e abengoe estas prelegdes novamente, para o nosso fortalecimento e para a gléria dEle. Os Editores 1 MEU PROPOSITO E METODO E sempre bom comegar com um texto. Nao significa que eu pretenda pregar, mas desejo comecar com algumas palavras que oferecerao uma base para tudo o que me proponho dizer agora, e que esclarecerao 0 que me proponho fazer nesta série de estudos sobre doutrinas biblicas. A minha referéncia é Deuteronémio 29:29: “As coisas encobertas s4o para o Senhor nosso Deus; porém as reveladas sao para nds e para nossos filhos para sempre, para cumprirmos todas as palavras desta lei.” Ora, inevitavelmente, teremos que comecgar com introdug6es; isso se faz necessdrio, penso eu, por diversas razoes. Uma delas consiste em que algumas pessoas poderao questionar a propriedade do que nos propomos fazer. Vivemos numa época em que n4o ouvimos muito sobre doutrinas, e ha alguns que sao bastante insensatos em afirmar que nao gostam delas. A atitude de tais pessoas parece-me um tanto patética e lamentavel. Houve tempo em que prelegGes ou sermées sobre doutrinas biblicas eram comuns, mas agora se tornaram comparativamente incomuns, especialmente ao longo deste século. Entretanto, ainda que néo iremos tratar diretamente dessa critica, todavia ela constitui um bom ponto de partida e me induz a dizer que ha certas coisas que devemos ter bem delineadas em nossas mentes. Consideraremos trés coisas: 0 que iremos fazer nestes estudos; como o faremos; e por que o faremos. Entao, o que iremos fazer? Esta deverd ser uma série de estudos sobre doutrinas biblicas. O que pretendemos, quando falamos de doutrina biblica? A resposta € que a Biblia se preocupa particularmente com 0 ensino de certas verdades, e nada é mais importante do que compreendermos esse fato, e que devemos comecar com ele. A Biblia é um livro que possui um objetivo bem definido. Todo o seu ensino é destinado a um certo fim; ela se preocupa em por diante de nés suas doutrinas, as verdades 9 especificas que ela quer enfatizar e imprimir na mente de todos nos. Coloquemos isso mais claramente na forma de uma negativa. A Biblia nao é, por exemplo, uma histéria geral do mundo. Nem sempre nos lembramos de tal fato, porém notemos como ela, em Génesis, acumula dois mil anos em apenas onze capitulos. A Biblia nao esta primariamente interessada na historia do mundo; © seu tema é outro. Permitam-me usar outra negativa. A Biblia nem sempre se preocupa em fornecer-nos uma histéria completa de tudo quanto Deus tem feito — Ele tem feito muitas coisas que nao se acham mencionadas na Biblia — mas ela seleciona certos fatos que ajudam arealgar o seu préprio propésito e plano. Os quatro Evangelhos, por exemplo, nao pretendem ser uma biografia completa do Filho de Deus, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Ao contrario, eles se preocupam em apresentar certas verdades acerca dEle, a saber, eles abrangem apenas trés anos de Sua vida — ha muito pouco além disso. E verdade que nos contam algo de Seu nascimento, mas a principal énfase nos Evangelhos é ao Seu ministério publico; o que Lhe aconteceu apés a idade de trinta anos. Jodo, em seu Evangelho, nos pée isso de forma muito clara. Ele nos relata: “Jesus, pois, operou também em presenga de seus discfpulos muitos outros sinais, que nao esto escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para que creiais que Jesus € 0 Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (Joao 20:30,31). Jodo nao se propés a fornecer-nos um relato exato e detalhado da vida de nosso Senhor. Ao contrério, ele tinha um objetivo em vista, e no tiltimo versiculo de seu Evangelho ele declara: “HA, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez; e se cada uma das quais fosse escrita, cuido que nem aindao mundo todo poderia conter os livros que se escrevessem. Amém” (Joao 21:25). “Entdo, o que a Biblia de fato ensina?” — perguntaria alguém. Seguramente, nao pode haver hesitacao alguma quanto a resposta aesta pergunta. A Biblia, em sua esséncia, € a grande histéria da 10 redengio. E a histéria do que Deus fez a respeito dos homens e das mulheres em conseqiiéncia do pecado deles, e tudo o mais que se encontra na Biblia é, em realidade, uma decorréncia desse fato. A Biblia se preocupa em apresentar-nos a mensagem de redengao através de Deus e provinda dEle, de uma forma que pudéssemos compreender, ver e crer. Dai, quando falamos de doutrinas biblicas, nos referimos a esses aspectos da redencio, os quais se acham desvendados na Biblia para nds. Tais aspectos constituem as diversas verdades que deparamos na Biblia acerca desta grande questao. Ora, as classificag6es so muitas, mas permitam-me sugerir- -lhes algumas das doutrinas cuja avaliagéo somos obrigados a considerar. Uma delas, naturalmente, é 0 proprio Livro. Por que damos tanta ateng&o a este Livro? Por que nos restringimos a ele? O que ensina-nos a Biblia acerca de si mesma? Evidentemente, devemos partir desse ponto. Nao poderemos insistir em considerar as doutrinas da Biblia, a menos que tenhamos uma idéia nitida quanto ao que ela intrinsecamente é, € o que ela alega ser. Portanto, uma vez aceita a nossa autoridade, o nosso padrao, daremos inicio com a grande doutrina que sempre deve preceder a qualquer outra doutrina, ou seja, adoutrina relativa a Deus. “No principio Deus” (Gen. 1:1). Encontramos Deus aqui. E a Sua revelag&o. Portanto, assim que abrimos a Biblia, aprendemos a verdade sobre Ele, e, estritamente falando, este é o sentido do termo Teologia. Em seguida, obviamente, vem a doutrina sobre 0 homem. Sempre digo que a tarefa da Biblia é ensinar-nos acerca da tedengcdo, e redencdo € o que Deus est4 fazendo com respeito ao homem. E isso é 0 que se chama Antropologia. Entdo nos deparamos com a doutrina de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo — a Cristologia - visto que, afinal, toda a redengio est4 nEle, e tao-somente nEle. Tudo o que sucede no Velho Testamento esté voltado para Ele. Ele é 0 climax, ea Biblia tem muito a dizer-nos sobre Ele. Uma vez, porém, descoberto como a redencdéo nos foi IL providenciada, o préximo assunto que nos ocorre € 0 seguinte: como aplica-se a nés esta doutrina? A Biblia contém grande ensino sobre isto, ou seja, a doutrina da salvacdo aplicada ou Soteriologia. Entdo, o que nos sucede assim que somos redimidos? Bem, somos introduzidos na Igreja e somos feitos membros do corpo mistico de Cristo. Assim, obviamente, vocés esperariam que a Biblia nos ensine algo sobre a Igreja, e é isso o que ela faz. E isso chama-se Eclesiologia — a doutrina da ecclesia, a Igreja. E entao, naturalmente, formulamos esta pergunta: aqui estamos nés, os redimidos, membros de Cristo, de Seu corpo, a Igreja. E entéo? O que nos suceder4? Para onde isso conduzira? A Biblia novamente nos satisfaz neste ponto, visto que ela contém a doutrina das iltimas coisas, a qual se chama Escatologia. Todo o ensino biblico est4 sempre nos conduzindo a algo, a um grande climax e consumag4o. Neste ponto permanece um resultado final, as iltimas coisas, e encontramos muito ensino na Biblia sobre essa doutrina. Eis ai algumas das verdades que, se Deus quiser, esperamos considerar juntos, e isso é tudo quanto me proponho fazer. Portanto, que ninguém conclua que a nossa preocupacao, aqui, é oferecer uma visdo geral ou sindpse da Biblia e seu contetido. Fazer isso € perfeitamente conveniente, mas nao € 0 que estaremos fazendo. Apresentei-lhes um perfil geral destas doutrinas, e dirigiremos nossa ateng4o para 0 mesmo. Descobriremos as doutrinas no texto, na Palavra, e nossa tarefa é extrai-las e estuda-las. Agora, porém, focalizemos a segunda pergunta: como iremos fazer isso? E aqui, novamente, devemos tomar muito cuidado, a fim de obtermos uma boa definig&o, bem como ter bem delineado em nossa mente o que estamos realmente empreendendo, visto que freqiientemente surgem mal-entendidos nesta questo. Coloquemo-la novamente em termos negativos. Nao pretendo apresentar uma série de prelegdes sobre teologia. Sera que isso surpreende a alguém? Sera que alguém pensou: “Bem, com certeza nao se pode prelecionar sobre doutrinas biblicas sem 12 ministrar prelegdes sobre teologia”? Sugiro-lhes que as duas coisas ndo sao uma s6, e € importante que percebamos a diferenca enquanto refletimos sobre esta série de mensagens. Temos, necessariamente, que restringir-nos ao que a Biblia diz, e somente ao que ela diz. Ora, a teologia ndo procede assim; ela nos leva para um campo muito mais amplo. A teologia se introduz afirmando que Deus Se nos revelou nao somente na Biblia, como também na histéria. Ele Se revela experimentalmente na experiéncia, e a teologia afirma que antes de recebermos a doutrina biblica, 0 dogma biblico, precisamos levar em considerago estes outros aspectos da revelagéo. Naturalmente, a teologia inclui a Biblia também, mas ela inclui mais do que a Biblia. Noutras palavras, 0 tedlogo procede mais ou menos assim: ele vai 4 Biblia; estuda- -a; esboca e organiza suas doutrinas ou toma em consideracao 0 que algum outro ja fez. Entéo prossegue a refletir sobre essas doutrinas; pondera sobre elas e as analisa. Ele tenta produzir um esquema para elas. Entéo introduz a filosofia, a qual subentende pensamentos e raciocinios humanos. Enfeixa todas essas coisas e pondera sobre elas, eo fim de tal processo constitui o que chamam de teologia. Portanto, espero que esteja bem claro que isso nao é o que me proponho fazer. Isso nao significa que eu nao creia em teologia—eu creio nela. Mas quando digo que estarei ministrando uma série de mensagens sobre doutrinas biblicas, néo estou querendo afirmar que irei ministrar prelegdes sobre teologia. Permitam-me apresentar-Ihes um exemplo que esclarega precisamente o que estou tentando dizer. Houve um famoso preletor e expositor da Biblia, na América, no final do século dezenove e comego do século vinte, que publicou um livrinho intitulado As Grandes Doutrinas da Biblia. Ora, despertou-se 0 meu interesse quando me voltei para aquele livro com o fim de descobrir o que o autor tinha a dizer, por exemplo, sobre a doutrina referente a Deus. Para o meu espanto, descobri que o seu primeiro titulo era este: “Provas da Existéncia de Deus.” De repente percebi que dizia de mim para mim mesmo: “Ele nao 13 deveria ter dado tal titulo ao seu livro; deveria ter dito que é um livro sobre teologia crista, visto que ninguém encontra quaisquer provas da existéncia de Deus na Biblia.” O que quero dizer por essas provas é 0 seguinte: certas pessoas argumentam que é possivel chegar a crer em Deus pelo simples exame introspectivo de sua prépria consciéncia. Vocés dizem a si mesmos: “Penso, portanto existe... Penso em Deus, mas a idéia deve ter vindo de algum lugar, deve haver algo correspondente ao meu pensamento. Portanto deve existir e tem que existir Deus”, e assim por diante. Entéo usam o argumento da natureza. Afirmam que vocés olham para a natureza e, por assim dizer, entéo véem nela ordem e designio, e assim concluem que tudo isso deve ter vindo de algum lugar - deve haver um criador. Um étimo argumento. Existe também o argumento moral. Reconhego que existe bom e melhor neste mundo. E isso me sugere que deve haver, em algum lugar, o melhor; deve haver uma perfeigao absoluta, e é aisso que chamam de argumento moral da existéncia de Deus. Ora, o dito escritor, a quem me referi, discute minuciosamente tudo isso em seu livro, bem como muitos outros argumentos. Entretanto isso é algo que a Biblia nunca faz. Eis um homem que nos informa que escreveu um livro sobre as grandes doutrinas da Biblia, mas cujo comportamento é de um tedlogo! N§o estou afirmando que nao haja valor algum nesses argumentos, os quais visam provar a existéncia de Deus. O meu intuito, porém, é enfatizar o fato de que n&o os encontramos na Biblia. E é interessante notar como esse homem, que apresenta um texto para tudo quanto diz, de repente no tem um s6 texto para esta secéo em particular. Portanto, ele vai além do que se propusera fazer. Entretanto, no tocante a nés, trataremos dedoutrinas biblicas. A Biblia nao nos fornece provas da existéncia de Deus; ela O proclama; ela apenas nos relata sobre Ele. Além disso, como ja afirmei, embora n4o signifique que eu no creia na teologia, todavia pretendo deixar bem claro, desde 0 inicio, que devemos ter em mente o fato de que existe certo perigo relacionado a 14 teologia. No momento em que introduzimos a filosofia e a especulagaéo, bem como nossos préprios pensamentos e razéo humana, estaremos comegando a fazer algo que pode, embora nao necessariamente, vir a constituir-se um perigo para nds. Pois bem, evitaremos tudo isso. Evitaremos algo mais. Nao tentaremos defender estas doutrinas. Além do mais, tal defesa seria um procedimento perfeitamente legitimo, o que é denominado de apologética. Todavia, nao estamos interessados em defender as doutrinas, e digo isso porque alguns de vocés, ao dirigirem-se a algumas doutrinas em particular, talvez se sintam desapontados vendo que esse nao seré o meu procedimento. Por exemplo, quando chegarmos a doutrina da Criag&o, e toda a questao da evolugao vier a lume, o propésito primdrio nao sera tratar dela exaustivamente. As doutrinas biblicas nao nos levam a recorrer a esse expediente. Naturalmente teremos que fazer alusao 4 evolugdo; mas, primariamente, teremos que fazer uma apresentac4o expositiva do que a Biblia mesma tem a dizer. Por conseguinte, a posic¢éo que tomamos é também aquela de Deuteronémio 29:29: “As coisas encobertas (a explicagao final das coisas) sao para o Senhor nosso Deus.” Também estaremos tratando da doutrina do pecado, e alguém talvez queira saber: “De onde veio o mal?” Eu nao posso dizer-Ihes. A Biblia nao no-lo diz. Podemos especular, podemos arrazoar, mas isso nao é doutrina biblica. Temos que restringir-nos as coisas que foram reveladas, nao as coisas secretas que est4o no recondito da mente de Deus. Essa, entao, é mais ou menos a definigéo do procedimento com que nos propomos considerar estas doutrinas. E isso nos conduz 4 tltima pergunta: por que cremos que isso deveria ser feito? Ora, eis algumas das respostas que sugeriria a essa pergunta, A primeira € que a Biblia mesma 0 faz, e portanto nés devemos fazé-lo também. Eu Ihes disse no inicio que a Biblia nao é meramente uma histéria geral. E um livro que se preocupa em colocar certas verdades especificas com clareza diante de nds, e essas verdades sao doutrinas. Dai, para ler minha Biblia 15 corretamente, significa que preciso me interessar em doutrina. A Biblia quer que eu apreenda a sua doutrina. Noutras palavras, posso conhecer minha Biblia muito bem, mas, a nao ser que compreenda a importancia de apropriar-me de suas doutrinas, o meu conhecimento dela poderd tornar-se totalmente inttil para mim. Permitam-me colocar isto diante de vocés, da seguinte forma: acaso ndo foi exatamente isso que os profetas fizeram? Lemos a respeito deles no Velho Testamento — 0 que faziam aqueles homens? Tomavam posse dessas doutrinas — a doutrina da lei, em particular — ¢ as puseram em vigor. Faziam aplicagéo da lei. Dirigiam-se as nagées e lhes diziam: “Vocés imaginam que, porque possuem a lei, tem conhecimento dela, mas néo a conhecem!” Diziam: “A lei esté expondo isso diante de vocés, e isso € 0 que tém de captar e compreender.” Eles proclamavam doutrina ao povo. Nao seria exatamente isso o que nosso Senhor mesmo fez? Qual foi o Seu procedimento no Serm4o do Monte, sendo o mesmo (dos profetas)? Disse ele: “Ouvistes... Eu, porém, vos digo...” (Mat. 5:27,28). Ele tomou a lei e a expés na forma de doutrina. Ele a explicou. Disse que uma mera familiaridade geral com a lei nao era de nenhum valor; precisamos saber 0 que ela exatamente diz. Ele extraiu os principios, aplicou-os e os impés. Obviamente, esse foi também o mesmo procedimento dos apéstolos. Leiam o livro de Atos e observem a pregagéo daqueles primeiros pregadores cristéos. O que fizeram eles? Vocés nao constatarfo que eles tomaram um texto e entao ofereceram seu exato significado 4 luz do grego e do hebraico, e em seguida o analisaram, e assim por diante. Nao, e nado! Seu método de pregagdo era o de proclamar doutrinas. Eles tinham uma mensagem, e a apresentavam ao povo; usavam as Escrituras para mostrar qual era a doutrina do texto. Naturalmente isso é 0 que esté compreendido no termo pregacdo; esse € 0 propésito e a fungio da pregagdo. Ela nao consiste numa mera oportunidade para alguém expressar seus préprios conceitos. Ela nao consiste, reitero, numa mera 16 oportunidade de apresentar uma traducdo alternativa das Escrituras. Ao contrario, o seu propésito é apresentar a verdade a congregacao. Os apéstolos fizeram isso, assim como a pregacao, em sua esséncia, sempre o faz. Ou, tomemos as Epistolas do Novo Testamento. O que sio elas? Ora, nestas Epistolas certas doutrinas proeminentes sao tomadas, sublinhadas e aplicadas. Houve uma particular neces- sidade de tal procedimento em certas igrejas. Portanto 0 escritor da Epistola apresenta sua doutrina e a aplica de uma maneira pratica. Vocés perceber4o continuamente que a preocupagao dele € com a expresso e a elucidagao da doutrina. Essa, ent4o é a minha primeira razao para proceder assim. Afirmo que a Biblia o exige. Ela mesma o faz e nos exorta a fazé-lo. Outra razdo consiste em que é arriscado estudarmos a Biblia sem tal procedimento. Falamos, nao é verdade? sobre nao ver a floresta por causa das arvores — e qudo terrivel é tal perigo! O problema real dos judeus nos dias de nosso Senhor era que se detinham na letra e nunca alcangavam o espirito. Noutras palavras, jamais se apropriavam da doutrina. Sentiram-se satisfeitos em ter uma familiaridade geral com as palavras, mas nao obtiveram a Palavra. E isso é algo que todos nds temos de compreender como sendo uma possibilidade terrivelmente perigosa para nds, pois se nos detivermos unicamente na letra, ela nao nos seré de nenhum proveito; alias, até mesmo nos desencaminhard. Pode até causar a condenagao eterna para nossas almas. Nao atingir sua doutrina depois de ter estudado suas Biblias significa que o seu estudo se tornou completamente inaproveitavel. Ele pode ser muito intelectual. Pode até ser uma forma de gastar bem seu tempo. Conhego pessoas que tém se utilizado da Biblia da mesma maneira que usam enigmas de palavras cruzadas, ou mesmo um quebra-cabega, para juntar pecas, mas jamais chegam a doutrina. O seu estudo é de nenhum valor. E infrutifero. Existe ainda outra razao para estudarmos a doutrina biblica, a saber, a Igreja, ao longo dos séculos, esteve sempre cénscia de que é essencial dar énfase as doutrinas da Biblia. Nos préprios 17 dias iniciais da Igreja, ninguém era recebido como membro dela sem fazer a confissao, a qualquer prego, de que Jesus é Senhor. Mas no instante em que vocés dizem: “Jesus é Senhor”, estarao fazendo uma afirmagao doutrinal. Entao, depois de algum tempo, os cristéos primitivos descobriram que nao era suficiente dizer meramente: “Jesus € Senhor” — descobriram a necessidade de introduzir o que se chamou férmula batismal. Os candidatos ao batismo eram instruidos, eram-lhes dirigidas certas perguntas, e tinham que estar aptos a respondé-las, Todavia vocés se lembram do que sucedeu? Logo, logo as heresias comecaram a surgir. Pessoas dentro da Igrejacomecaram a dizer coisas que nao eram corretas. Tais pessoas eram auténticas e sinceras, porém muitas estavam dizendo coisas equivocadas e até mesmo nocivas. E esses mestres heréticos e falsos, naturalmente, n4o s6 provocavam confusdo dentro da Igreja, mas também desencaminhavam as pessoas que se achavam do lado de fora da Igreja. O surgimento de heresias dentro da Igreja levou a Igreja Primitiva a redigir o que comumente chamamos credo; por exemplo, 0 Credo dos Apéstolos, o Credo Niceno e o Credo Atanasiano. Ora, tais credos faziam-se necessdrios, uma vez que havia muito erro ¢ heresia na Igreja, e esta, sob as diretrizes do Espirito Santo, disse: “Precisamos saber perfeitamente tanto o que devemos crer quanto o que nao devemos crer. Nao é bastante que simplesmente apresentemos ao povo uma Biblia aberta. Homens e mulheres perfeitamente sinceros, auténticos e capazes podem ler este livro e ainda dizer coisas que séo completamente equivocadas. E preciso que definamos nossas doutrinas” ~ e as definigdes doutrinarias sao o que chamamos credos. Naturalmente, pois, apés algum tempo, aquela Igreja que, em certo sentido, fora apenas uma, agora estava dividida em duas — a Igreja Oriental e a Igreja Ocidental. No entanto, a doutrina era mais ou menos a mesma. A Igreja estava morta, estou ciente disso, mas ela era governada por esses trés grandes credos. Entao chegou a Reforma Protestante. Chegou também nova 18 vida, novo vigor, nova compreensao, e novamente a Igreja descobriu que era absolutamente essencial extrair suas doutrinas e enuncid-las de uma forma perfeitamente clara e definida. E assim temos o que comumente denominou-se entre os protestantes, as grandes Confissées. Essas nfo s4o outra coisa sendo uma classificagdo e exposigéo das doutrinas da Biblia. Os lideres novamente disseram: “Nao basta oferecer as pessoas uma Biblia aberta.” E preciso guid-las. E preciso ajuda-las. Elas sdo facilmente passiveis de desvio. Portanto, é preciso que lhes digamos que € nisso que cremos sobre Deus e nao cremos naquilo. E preciso falar-lhes sobre Cristo, sobre a Igreja, e assim por diante. A Igreja da Inglaterra possufa sua Confissao, a qual chamou os Trinta e Nove Artigos. Houve também muitas confissées famosas no Continente, por exemplo, a da Igreja Moraviana e a da Igreja Reformada. E entaéo surgiu a grande Confissao, a qual foi elaborada na Abadia de Westminster, no século dezessete, e é, portanto, conhecida como A Confissao de Westminster. & a Confisséo da Igreja da Escécia e de todas as Igrejas Presbiterianas em todas as partes do mundo. Ora, todas estas Confissdes, tanto quanto os catecismos que as acompanham, néo saio nada mais do que uma afirmagdo de doutrinas biblicas, para que o povo dentro da Igreja pudesse saber exatamente 0 que crer € 0 que no crer, bem como as razdes para crer. Todas elas foram destinadas a nossa edificagdo na fé, bem como capacitar-nos a conhecermos exatamente a nossa posigao. Ora, se tudo isso foi necessario nos dias da Igreja Primitiva, se foi necessdrio no tempo da Reforma e no século dezessete, nao seria também algo de urgente necessidade para 0 nosso tempo? A Igreja de hoje esta cercada por seitas; seus representantes chegam a nossa porta falando — como dizem — “das Escrituras”. Afirmam que créem na mesma Biblia que ensinamos. De repente fazem uma afirmacao que nos leva a sentir instintivamente que ha algo de errénco nela, contudo n4o conseguimos responder- -lhes. Aliés, um dos propésitos de estudarmos as doutrinas biblicas consiste em capacitar-nos para descobrir juntos 0 erro em tais ensinos. Nao que eu pretenda prelecionar sobre seitas; 0 19 que farei € o seguinte: lembrar-lhes-ei do que a Biblia ensina. Entio, uma vez adquirido uma firme percepgio e conhecimento desse ensino, estaremos em condigdo de testar muitos outros ensinos que nos séo apresentados. Mas no é somente o caso de haver todos esses erros € seitas ao redor da Igreja, mesmo dentro dela existe terrivel confusdo. HA auséncia de doutrina; hé falta de definigéo clara e ha prontidao para permitir a qualquer um que diga o que bem quiser. E isso significa que nunca houve momento em que se fez mais urgentemente necessario que o povo cristéo considere junto as doutrinas da Biblia. Devemos conhecer a nossa posigdo, € devemos ser capazes de rechagar cada inimigo que surja com 0 intuito de atacar-nos, cada adversdrio sutil, cada sutileza usada pelo diabo, o qual se mostra dissimulado em “anjo de luz” para trazer ruina as nossas almas. Tenho, porém, uma razio ainda mais importante para considerar estas doutrinas com vocés. Enfim, esta é a tnica maneira real de se conhecer a Deus, de entrar em Sua gloriosa presencga e de aprender um pouco das maravilhas de Seus caminhos em relag4o a nés. Sim, prossigamos lendo e estudando nossas Biblias, contanto que ndo nos percamos nos detalhes. Escalemos estas grandes, poderosas e altaneiras montanhas doutrindrias, e compreendamos dai quem é Deus e o que Ele tem feito por nés na Pessoa de Seu Filho, a despeito de nosso pecado. Esse, em todo caso, é 0 objetivo que tenho em mente. N&o estou fazendo isso com o fim de fornecer-lhes algum conhecimento ou informacio intelectual que porventura vocés nao possufam anteriormente. Que Deus me livre de tentar tal coisa, ou que alguém pense dessa forma sobre 0 que estamos fazendo. Diz Paulo: “A ciéncia incha, mas o amor edifica” (1 Cor. 8:1). Portanto, o clima dessa série de discursos ou debates sobre doutrinas biblicas nao seré a de uma sala de aula. Nao haverd nenhum exame final para determinar quanto vocés aprenderam, nem lhes sera conferido algum diploma! Nao, e nao! Estamos interessados em Deus — em conhecé-10. Isso é 20 adoragao. Qualquer exame da Biblia se constitui em adoragio, e ao meu ver nao hé nada mais perigoso do que alguém aproximar- -se da Biblia e de seu ensino, da mesma maneira que se aproxima de qualquer outro livro. Certas pessoas as vezes me perguntam: “O que hé de errado com esses colégios teolégicos? Tenho conhecido um grande numero de homens que, ao entrarem neles, estava tudo bem; no entanto, observem-nos quando saem!” Ora, isso nem sempre é assim — hd pessoas que sempre falam dessa maneira — mas, se as vezes esse é 0 caso, creio que posso dizer-lhes 0 porqué. Sucede que, em tais escolas, as pessoas se aproximam da Biblia como se ela fosse mais um manual de pesquisa. As vezes se aproximam destas grandes doutrinas como se as mesmas fossem apenas idéias e pensamentos humanos. Nem sempre se aproximam delas numa atitude de adorac&o e temor. Esto interessados na tradugao e no conhecimento intelectual. Isso é essencial, mas nao devemos parar ai. As doutrinas da Biblia nao sao um assunto para ser estudado; devemos, antes, almejar conhecé-las a fim de que, uma vez conhecendo-as, nao venhamos a sentir-nos “inchados” com o conhecimento e excitados em razdo de nossa informagio, mas nos aproximemos mais de Deus em culto, em louvor e em adoracao, porque temos percebido, de uma maneira muito mais plena do que tivemos visto antes, a gloria de nosso admirdvel Deus. Que Ele nos dé razdo para procedermos assim e conceda que, em resultado destas doutrinas, todos nés venhamos a conhecé-lO, 0 tinico Deus vivo e verdadeiro, e a Jesus Cristo a quem enviou —e, como resultado disso, sejamos todos renovados. E assim expresso a esperanga de que, através de nés, e de outros como nés, toda a Igreja seja vivificada e venha a experimentar novamente em nosso meio a manifestacao do glorioso poder de Deus. 21 2 AREVELACAO Talvez seja aconselhavel conservarmos em nossa mente as palavras que se encontram em Atos 14:15-17: ‘E dizendo: varées, por que fazeis essas coisas? Nés também somos homens como v6s, sujeitos ds mesmas paixdes, @ VOS anunciamos que vos convertais dessas vaidades ao Deus vivo, que fez 0 céu, € a terra, e 0 mar, e tudo quanto hd neles; o qual nos tempos passados deixou andar todas as gentes em seus préprios caminhos. E contudo, nao se deixou a si mesmo sem testemunho, beneficiando-vos ld do céu, dando-vos chuvas e tempos Srutiferos, enchendo de mantimento e de alegria os vossos coracoes.” Ora, qualquer consideracaéo das doutrinas biblicas, bem como da doutrina cristé em geral, obviamente se preocupa, finalmente, com esta grande pergunta: como é possivel conhecermos a Deus? A exclamagao esta af no coragéo humano, como expresso tao perfeitamente por Jé: “Ah, se eu soubesse que o poderia achar!” (J6 23:3). Tomamos por certo 0 que se tem freqiientemente salientado, ou seja, que se acha presente em toda araca humana aquilo que podemos descrever como “consciéncia da presenca de Deus”. Muitos declaram que nao créem em Deus, mas, ao afirmarem isso, se encontram lutando contra algo fundamental e inerente em seu proprio ser, que lhes da testemunho de que Deus existe, que terSo de tratar com Ele e que, de um modo ou de outro, teréo de vir e entrar em acordo com Ele, ainda que tal acordo Ihes venha a ser uma completa negagado dEle. Aqui, pois, afirmo que esté algo que é basico a natureza humana e fundamental em todo o género humano. E esta consciéncia da presenca de Deus, este pressentimento acerca 22 de Deus, é algo que abengoa homens e mulheres, ou entao os atormenta. E todos tém de enfrentar esse algo. Os que se preocupam com isso, e os que anseiam por encontrar e conhecer a Deus, sio confrontados por duas possiveis formas de o conseguirem. A primeira, aquela que nos surge instintivamente em razao de nossa condigao decaida, consiste em crermos que nds, por nossos prdéprios esforcos e buscas, podemos encontrar Deus; e desde os primérdios da histéria, homens e mulheres tém se engajado nessa aventura. Eles tém procedido assim fazendo uso de dois métodos principais. Um deles é seguir esse tipo de sentimento instintivo e intuitivo que nos é inerente, e que se apresenta de varias formas. Alguns as vezes falam de “luz interior”, e dizem que tudo 0 que precisamos fazer é seguir essa luz e sua orientagao. Esse € 0 caminho dos misticos e outros. Dizem eles: “Se vocé deseja conhecer a Deus, entéo a melhor coisa a fazer é mergulhar em vocé mesmo. Dentro de cada um de nés ha uma luz interior que afinal levara a Deus. Vocé nao precisa de conhecimento” — dizem eles. “Vocé nao necessita de coisa alguma, exceto daquela resignagaéo de si mesmo e de suas faculdades, dando lugar a essa luz e sua orientag4o.” Ora, esse método intuitivo é algo com o qual todos nés estamos familiarizados. Ele assume numerosas formas, e est4 presente em muitas das seitas do mundo moderno. O outro método que tem sido adotado é aquele que tem por base a razao, a sabedoria e o discernimento. A pessoa pode comegar, por exemplo, com a Natureza e a Criagao, e ela é persuadida a partir disso. Ela acredita que, como resultado desse processo, pode chegar ao conhecimento de Deus. Outros dizem que, ao olhar para a histéria, e ao ponderar sobre o curso da histéria, eles podem chegar a acreditar em Deus. Outros, entretanto, dizem que para se chegar a Deus, basta entregar-se a um processo de raciocinio puro. Garantem que, se vocés se sentarem e raciocinarem genuina e apropriadamente, é possivel chegar a uma crenga em Deus. Isso é ilustrado, vocés se lembram pelo argumento moral, ou seja, visto que sou consciente neste 23 mundo de uma moral boa e de uma melhor, entao esse fato implica que deve haver, em algum lugar, uma moral perfeita. Contudo, onde esté ela? Nao a encontro neste mundo, entio deve estar fora dele, e a crendice diz que tal coisa é Deus. Ora, outra vez digo: nao quero discutir essas coisas. Estou simplesmente lembrando-os de que essas sao as formas pelas quais muitos acreditam que podem encontrar a Deus, bem como chegar ao conhecimento dEle. Mas a resposta crista é que tal método esta inevitavelmente condenado ao fracasso. O apéstolo Paulo o pée nestas memoraveis palavras: “Visto como na sabedoria de Deus 0 mundo nao conheceu a Deus pela sua sabedoria” (1 Cor. 1:21). E é significativo que ele tenha dito isso aoS corintios, pessoas gregas, e que, portanto, estavam familiarizadas com o ensino filoséfico. Entretanto, apesar de Paulo ter dito isso, as pessoas ainda confiam nas idéias e nas dedugées humanas para encontrarem a Deus. A mim me parece que este nao é um assunto sobre o qual argumentar, visto ser ele justamente uma questao de fato; e 0 fato é que ninguém pode chegar ao conhecimento de Deus por esses meios, por duas razoes bem dbvias. A primeira (como esperamos ver mais adiante ao considerarmos estas doutrinas especificamente) é a natureza inerente de Deus: Sua infinitude, Seu caréter e propriedades absolutas, bem como Sua perfeita santidade. Tudo isso, em si e por si mesmo, torna impossfvel a alguém adquirir algum conhecimento de Deus por meio da razio ou da intuigado. Mas quando adicionamos a isso a segunda razio, a qual é 0 cardter e a natureza de homens e mulheres, enquanto se acham num estado de pecado, 0 fato se torna duplamente impossivel. A mente humana é por demais diminuta para abarcar ou apropriar- -se de Deus e para compreendé-10. E quando compreendemos que, em razao da Queda, todas as faculdades e poderes humanos ficaram afetados pelo pecado e pela inimizade natural, entdo, tepito, o conhecimento de Deus através da diligéncia humana se torna uma completa impossibilidade. A Biblia sempre afirmou isso, e no entanto muitos em sua 24 insensatez, ainda prosseguem tentando esses métodos obsoletos, os quais j4 demonstraram ser um fracasso. Portanto, é indispensavel que estabelegamos este postulado: a nossa tinica esperanga de conhecer a Deus genuinamente consiste em que Ele graciosamente queira revelar-Se a nés, ¢ o ensino cristao assevera que Deus ja 0 fez. Por isso, é evidente que a primeira doutrina que precisamos considerar juntos é a doutrina bfblica da revelagéo. Nao posso chegar-me a Deus pela via de meus préprios e desamparados esforgos. Sou dependente de que Deus Se revele. A questao é: “Ele o fez?” E a resposta é: “Sim, Ele o fez”, e a Biblia no-lo confirma. Por conseguinte, antes de chegarmos a discussio dessas varias doutrinas e verdades concernentes a Deus ¢ 4 nossa relagéo com Ele —o que se constitui na busca maxima em que estamos todos engajados ~ devemos estar perfeitamente esclarecidos sobre a questao da revelacéio. O que é revelag&o? Ora, creio que a seguinte é uma das melhores definigdes que podemos obter, ou seja, revelacio € 0 ato pelo qual Deus comunica aos seres humanos averdade concernente a Si proprio, Sua natureza, obras, vontade ou propésitos, bem como a revelagdo de tudo isso — a remogéo do véu que o oculta, a fim de podermos vé-lo. Pois bem, segundo a Biblia Deus Se revelou de duas maneiras principais. A primeira é 0 que chamamos revelagdo geral; a segunda, obviamente, é a revelagéo especial. Portanto, antes de tudo, focalizemos a revelagéo geral. O que é ela? Ora, j4 nos referimos ao fato de que certas pessoas, observando a natureza, acreditam que podem chegar-se a Deus por um processo racional, e a Biblia concorda com isso até este ponto: ela nos diz que Deus Se revelou, em geral, e, antes de tudo, através da Criacéo e da Natureza. Paulo fez ao povo de Listra uma declaragaéo muitissimo importante sobre este tema. Disse ele: “(Deus) nao se deixou a si mesmo sem testemunho, beneficiando-vos 14 do céu, dando-vos chuva e tempos frutiferos, enchendo-vos de mantimento e de alegria os vossos coragées” (Atos 14:17). Imediatamente antes, Paulo havia dito: “que fez o céu, e a terra, eo mar, e tudo quanto ha neles” (Atos 14:15). 25 A outra afirmagao cléssica sobre esse mesmo ponto pode ser encontrada em Atos 17:24; além disso, encontramos a mesma coisa declarada em Romanos 1:19,20: “Porquanto o que de Deus se pode conhecer neles se manifesta, porque Deus lho manifestou. Porque as suas coisas invisiveis, desde a criagdo do mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e claramente se véem pelas coisas que esto criadas, para que eles fiquem inescusdveis” ~ eis af outra passagem de grande importancia. Todas essas afirmagées nos lembram que Deus, antes de tudo, deixou Suas marcas, Suas impresses, na Natureza e na Criagio; elas sfo “as obras de Suas maos”. E, naturalmente, a mensagem que percorre toda a Biblia como um tema, é: “Os céus manifestam a gléria de Deus” (Sal. 19:1), e assim por diante. Tudo quanto foi criado é em si mesmo uma revelagao de Deus. Essa é a primeira definigdo de revelacio geral. Mas, naturalmente, temos 0 mesmo tipo de revelagéo no que €é comumente denominado de providéncia: a disposigéo das coisas neste mundo, sua manutengao, seu sustento, bem como o fato de que tudo prossegue em plena atividade e persiste na vida. Como € possivel ser tudo isso explicado? Bem, afinal de contas, esta € uma questéo da providéncia. Nao pretendo entrar nela agora, porque, ao tratarmos da doutrina da providéncia de Deus, focalizaremos toda a questéo em maiores detalhes. Lembremo- -nos, porém, de passagem, que a ordem da providéncia, as estagdes, a chuva e a neve, bem como a frutificagéo dos cereais séo todas manifestagdes de Deus. O terceiro aspecto da revelagao geral é a histéria. Toda a histéria do mundo, se pudéssemos apenas vé-la, é uma revelagao de Deus. Entretanto, agora temos de declarar que, em si e por si mesma, a revelagao geral nao é suficiente. Deveria ser suficiente, mas nao é. E esse, parece-me, é 0 primeiro argumento de Paulo no primeiro capitulo de Romanos, onde diz: “Para que eles fiquem inescusdveis” (v. 20). A evidéncia jaz ai, porém nao tem sido suficiente. Por qué? Por causa do pecado. Se os homens ¢ as mulheres ndo fossem pecadores, ao contemplar os milagres ¢ as 26 obras de Deus na criagéio, na providéncia e na hist6ria, seriam capazes de chegar-se a Deus pelo processo racional. Contudo por causa do pecado nao podem. Deliberadamente, voltam suas costas a essa realizac&o. Esse é o grande argumento no restante de Romanos, capitulo 1, que deixo a vocés a tarefa de fazerem para si mesmos uma cuidadosa leitura. Diz Paulo: “Porquanto, tendo conhecido a Deus, nao o glorificaram como Deus, nem lhe deram gragas, antes em seus discursos se desvaneceram, € 0 seu coracgdo insensato se obscureceu. Dizendo-se sdbios, tornaram-se loucos” (vv. 21,22). E prossegue dizendo que passaram a adorar a criatura em lugar do Criador. Entaéo podemos sumariar o acima exposto como segue: a providéncia que é exibida na Criacdo, ete., é suficiente para fazer os homens e as mulheres inescusdveis quando se poem diante de Deus e agem erroneamente. Todavia nao é suficiente para trazé-los, em seu estado pecaminoso, ao conhecimento de Deus. Portanto, eis a pergunta: ha alguma esperanga? Esta forma racional de buscar a Deus, mesmo em seu melhor e mais sublime aspecto, segundo o argumento de Paulo, s6 pode conduzir-nos ao conhecimento dEle como Criador. Seu poder, diz Paulo, se manifesta dessa maneira, mas esse nado é o conhecimento de Deus pelo qual ansiamos e o qual cobigamos. Os homens e as mulheres clamam por um conhecimento mais profundo. Queremos conhecer a Deus num sentido mais pessoal. Queremos ser relacionados com Ele. Quando somos despertados, esse € 0 conhecimento que queremos; e tal conhecimento, a criagio, a providéncia e a histéria, em seu melhor aspecto, nao podem oferecer: elas podem simplesmente ensinar-nos que Deus é 0 Todo-poderoso, e que Ele é 0 Criador. Agora, pois, perguntamos novamente: hé alguma esperanca para nés? A resposta se encontra no segundo tipo de revelagéo de que a Biblia fala, e 4 qual chamamos revelagdo especial. E a revelagéo especial que encontramos na Biblia tem um objetivo bem distinto e definido, que é revelar-nos 0 carater de Deus, a natureza de Deus, e especialmente o cardter e natureza de Deus como sao revelados em Sua graca salvadora. Esse é 0 fator sobre 27

Você também pode gostar