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Katia Rubio
Universidade de São Paulo
Resumo
O crescente interesse pela prática da Psicologia do Esporte tem transferido a discussão sobre seus funda-
mentos teóricos para um plano secundário. Neste ensaio buscou-se percorrer parte da trajetória da Psicolo-
gia do Esporte, mais especificamente nas últimas 4 décadas, em busca dos conceitos e referenciais teóricos
que sustentam, na atualidade, o pensamento e a prática de profissionais envolvidos com a área, para um
entendimento da circunscrição do campo de atuação. Para tanto são discutidas questões como a alocação da
Psicologia do Esporte enquanto sub-área das Ciências do Esporte e/ou especialidade da Psicologia e ainda
as transformações ocorridas no esporte contemporâneo e seus desdobramentos relacionados ao fenômeno
esportivo, meio e finalidade da prática da Psicologia do Esporte.
Palavras chave: psicologia do esporte; ciências do esporte; psicologia; esporte; olimpismo.
Between Psychology and Sports: Psychology’s theoretical matrixes and its relation to Sports
Abstract
The growing interest in the practice of Sport Psychology has taken theoretical arguments to a secondary
role. The present study reviewed the Sport Psychology trajectory, in particular, the last 40 years. The cur-
rent concepts and theoretical references which direct the professionals’ thinking and practice were analyzed
in order to understand the delimitation of the field. Sport Psychology was discussed as a sub-area of Sport
Science and/or a Psychology Specialization. Its transformation which took place at the same time as the
historical process of the science were also a focus of interest in the present study.
Key words: Sport Sciences; Psychology; Sport; Sport Psychology.
Ao longo das últimas décadas, a Psicologia do Esporte foi definida como o estudo científico de pes-
soas e seus comportamentos em contextos esportivos e de exercício e as aplicações práticas de tal conheci-
mento (Gill, 1979). Ainda que concisa essa definição traz em si conceitos que fundamentam a Psicologia
em um universo específico como é o Esporte. Se por um lado entende a Psicologia como o estudo do com-
portamento humano, identificando-a com a matriz teórica do comportamento, uma entre várias correntes da
Psicologia, inscreve o esporte como o locus de uma manifestação humana, que envolve uma prática regra-
da, institucionalizada com a perspectiva do rendimento para a vitória (esporte) e uma atividade de participa-
ção lúdica ou compulsória que tem por objetivo o movimento.
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Trabalho apresentado na mesa redonda.Relação teoria-prática em psicologia do esporte, coordenada por Katia Rubio,
na XXXI Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia.
Endereço para correspondência: R. Doralice Paixão Teixeira, 76, ap. 11. Vila Madalena - São Paulo - S.P. 05417-070
E-mail: katrubio@usp.br
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ta sobre o atleta ou equipe esportiva; e o edu- Weinberg & Gould, 1995; Williams &
cador que desenvolve a disciplina Psicologia Straub, 1991) e Ciências do Esporte e da
do Esporte na área acadêmica seja na psicolo- Atividade Física ou do Exercício
gia, seja na Educação Física. Nos dois últimos (Dishman, 1982; Feltz, 1989; Gill, 1986),
casos não se exige formação específica do pro-
sendo importante reconhecer que mais que
fissional.
numa diferença semântica a implicação
Se Cratty (1989) e Shilling (1992)
dessa nomenclatura reside na delimitação
alocaram a Psicologia do Esporte junto à
da Educação Física enquanto área de co-
Psicologia, Gill (1986) e Haag (1994) de-
nhecimento (Betti, 1996; Lovisolo, 1996;
fendem-na compondo as Ciências do Es-
Tani, 1998).
porte.
No Brasil esse debate é ainda mui-
Haag (1979; 1994) considera as Ci-
to insipiente diante da falta de consenso
ências do Esporte como uma área de co-
que há entre os conceitos de esporte e edu-
nhecimento composta por sete campos de
cação física e seus desdobramentos no
produção – medicina esportiva, biomecâni-
campo do alto rendimento, das atividades
ca do esporte, psicologia do esporte, peda-
de tempo livre e da reabilitação. Do ponto
gogia do esporte, sociologia do esporte,
de vista da Psicologia essa discussão está
história do esporte, filosofia do esporte –
apenas em seu início, visto que essa área
tendo como condutor da discussão teórica a
começa a ganhar espaço na universidade
pesquisa comparativa. As Ciências do Es-
ainda como disciplina optativa e no âmbi-
porte representam um sistema de pesquisa
to do exercício profissional a oficialização
científica, ensino e prática, cujo conheci-
da especialidade em Psicologia do Esporte
mento é formado a partir de outras discipli-
aconteceu por meio da resolução 014, no
nas, que têm como trabalho científico e
ano de 2000. Esse movimento tem propor-
objetivo compreender um sistema comple-
cionado um número crescente de traba-
xo denominado esporte. Este fenômeno,
lhos, tanto no formato de relatos de expe-
por sua vez, é diversificado, multifacetado
riência como no de dissertações e teses,
e deve ser visto numa linha multidimensio-
indicando a formação de uma massa críti-
nal.
ca.
Feltz (1989) e Morgan (1989) suge-
rem que, para se compreender o fenômeno Para compreender o esforço que
esportivo na sua complexidade, seria preci- tem sido feito na aproximação entre as
so estar incluídos na Psicologia do Esporte disciplinas e teorias que compõem a Psi-
conhecimentos de outras sub-disciplinas cologia do Esporte é preciso saber como
das Ciências do Esporte. Sob esse aspecto, se chegou ao estado em que ela se encon-
Gill (1986) sugere que sendo as Ciências tra hoje. De acordo com Gill (1986) a Psi-
do Esporte multidisciplinar, far-se-ia ne- cologia do Esporte pode ser historicamen-
cessária a aproximação com as demais dis- te dividida em três áreas especializadas,
ciplinas, no sentido de compor teorias, sendo elas: aprendizagem e controle mo-
construtos e instrumentos de investigação tor; desenvolvimento motor e psicologia
que caminhem numa mesma direção. do esporte. Essas três áreas refletiram, em
Se no Brasil há um reconhecimento certa medida, durante um período de tem-
do conceito Ciências do Esporte (Bracht, po, a divisão geral de estudos psicológicos
1993; 1995; Tani, 1998) isso não significa, em esporte e atividade física. Houve, po-
contudo, um consenso relacionado a seu rém, um distanciamento entre elas no iní-
objeto de estudo ou epistemologia. Em ou- cio dos anos 1970 por causa de diferentes
tros países sua denominação pode variar interesses, objetivos e métodos de pesqui-
em Ciências do Esporte (Samulski, 2002; sa. A maior diferença residiu, principal-
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vam (goleiro, defesa, ataque). Sendo assim, cer de forma bem sucedida posteriormen-
chegou-se a solicitar ao psicólogo que a- te. Um dos principais críticos dos traba-
pontasse as características de cada jogador, lhos dessa época, Martens (1970, 1975)
em função da tarefa que lhe era própria começou a desenvolver o uso da análise
dentro da equipe. social que combinava métodos empíricos
São desse período (Feltz, 1992; com teoria, iniciando o teste de teorias
Landers, 1983, 1995) muitos estudos rela- psicológicas no contexto da performance
cionados a tipos psicológicos e traço motora, sendo seguido por vários outros
[entendidos estes como características pes- pesquisadores. Muitos desses estudiosos
soais que persistem estáveis ao longo do conduziram suas pesquisas em laborató-
processo de desenvolvimento (Weinberg, rios e esse período representou o segundo
& Gould, 1995)], onde pesquisadores re- grande estágio na história da pesquisa em
correram a atletas de níveis que variavam Psicologia do Esporte.
de equipes olímpicas a times escolares, fa- Os anos 1970-1980 e os estudos
zendo uso de uma vasta gama de testes de experimentais
personalidade. Apesar do grande volume A década de 1970-1980 é marcada,
de estudos realizados durante os anos 1950 conforme Cruz Feliu (1997) pela chegada
e 1960, a produção dessa época é marcada de novos enfoques da Psicologia junto a
pela crítica à falta de sistematização, de um Psicologia do Esporte – o cognitivo e o
modelo teórico que desse suporte à seleção comportamental. O primeiro manual que
e análise dos testes realizados e a aceitação aplicava técnicas derivadas da Psicologia
quase que incondicional do modelo de per- da Aprendizagem à Educação Física e ao
sonalidade traço, denominando esse perío- Esporte foi The development and Control
do como ‘empírico’. Landers (1995) sus- of Behavior in Sport and Physical Educa-
tenta que a área de estudo sobre personali- tion de Rushall e Siedentop em 1972.
dade em Psicologia do Esporte está repleta Quanto ao enfoque cognitivo o primeiro
de estudos inconsistentes, apontando vários autor a produzir um manual explicitamen-
deles em que resultados são perigosamente te dentro dessa perspectiva teórica foi
generalizados a partir de amostras reduzi- Cratty, em 1983 com Psychology in Con-
das ou pouco significativas. temporary Sport. No ano seguinte Straub
Apesar da inconsistência dos mode- e Williams editaram um clássico dentro
los teóricos e metodológicos, o principal desse enfoque chamado Cognitive Sport
alvo de crítica dos estudos realizados então Psychology.
era a utilização de um modelo estatístico Esses enfoques marcaram a produção de
univariado, que tornava os estudos suscetí- pesquisas durante os anos 1965-1980
veis de falsas conclusões como, por exem- (Landers, Snyder-Bauer, & Feltz, 1978;
plo, não haver diferença significativa numa Martens, 1970; Roberts, 1974; Smith,
determinada comparação quando, de fato, Smoll, & Curtis, 1979). Os trabalhos de-
existia a diferença se utilizado uma outra senvolvidos nesse período relacionavam-
forma de análise dos dados - multivariada se diretamente à formação de pesquisado-
(Landers, 1995). res da Psicologia do Esporte, oriundos de
As críticas às pesquisas sobre perso- faculdades de Educação Física, mais espe-
nalidade provocaram, temporariamente, um cificamente dos programas de doutora-
desencantamento com esse tema, hoje con- mento em desenvolvimento motor. Os as-
sideradas exageradas, pois esses estudos suntos mais comumente estudados nesse
serviram como ponto de partida para uma período foram a testagem de um ponto
série de investigações que vieram a aconte- da teoria da facilitação social relacionada
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