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A religiosidade intersticial no Brasil contempordneo (0 estudioso que observa a sociedade brasileira no marco das grandes mu~ dangas sociais notard que essas mudancas sio, de cerco mode, cfclicas. A partir de varios indicadores sociais, notard que estamos entrando num periodo de fim de ciclo. Mesmo dotadas de uma durabilidade larguissima ¢ distante em face do tempo menor c préximo da vida cotidiana ¢ do tempo brevissimo da cotidianidade mecamérfica, as crengas também extio sujltas, cada vez mais, as decerminagbes histbricas de sua citcunstincia. Porcanto, as metamorfoses « adaptagées formais igualmente ciclicas, menos pelos fazores que thes derarm ¢ dao origem. Certamente por essa espécie de mimetisino que incide pode- rosamente sobre as formas sociais da pritica religiosa, sobre a arquiterura de seus rituais, sobre o modo de estabelecer 4 conexo entre as vicissitudes da vida ‘comum e 0 transcendente, 0 que a ultrapassa ¢ supera. A Reforma Protestante mudou 2 forma do culto para expressar uma diferente arquiterura dafé. A estética de colagem da pés-modernidade tem tido efeitos ¢ expresses no modo de organizar o culto ¢ as celebragées do neopentecostalismo. Em. muitas sieuages, quanto & forma do templo e do culto, ¢fécil observar neles a invasio de uma estética de shopping center. Trata-se de uma religiosidade aque néo pode deixar de dialogar cam os marcos da sociedade de consumo seus valores relativos a uma visio kitsch do mundo. £ um modo legitimo de trazer o didlogo propriamente religioso para o ambito do cotidiano e do banal, 110 iva SOGOLOGIA DA Ving COTIANA aquele em que a maioria vive a maior parte do tempo, numa sociedade em que o-anual & exacerbagio do secular e da descrenga. Nossos ciclos hiseéricos, desde que o Brasil se constituiu como nagéo, tém ‘ido uma duragio de aproximadamente 50 anos, um pouco mais ou um pouco ‘menos. No interior de cada ciclo situagbes se consolidam ~ sociais, politicas, coondmicas, culturais, de mentalidade, de visio de mundo — para atingir um pico © em seguida se decompox. Abre-se um perfodo de transicSo, de incerceza ede acomodacio, Sobretudo, incerteza quanto 2 um marco consolidado. Nos- «2 durabilidade estrutural érelativamente curta e incerta (© Império durou 67 anos, durante © qual a sociedade ¢ a economia s¢ coasolidaram em torno da escravidéo para serem transformadas com a crise justamente da escravidéo. A Repéblica Vetha durou 41 anos para ruir pelo esgotamento do sistema de poder que a firmou e pelo esgotamento do modelo cconémico centrado na economia de exportagéo ¢ no latifindio. A Repiblica do nacional-desenvolvimentismo, com os altos ¢ baixos de suas crises, durou 34 anos, politicamente alicercada no pop reconhecimento do povo como protagonista politico, néo pela mediacio de ideologias partidétias, mas por meio da tutela ¢ da concepsio messianica de tum pai da pétria. A economia voltada para dentro sucumbiu & forga da eco- noinia voltada para fora ¢ globalizada e 0 populismo também entrou em crise enquanto forma de dominacéo politica. A nova ordem econémica e politica da Ditadura de 1964 durou pouco mais do que 20 anos ¢ gerou uma nova ordem, que se estende até nés, com prevaléncia do mercado na definisao de oriencasées de conduta, de prioridades c de aspiragées, as da sociedade de consumo. No, plano politico, tivemos 0 advento de ideologias partidérias, que nos fizeram, finalmente, modernos. Q modelo de uma modernidade superficial postica, pokém, vem se exgotando rapidamente. As corrosées alcancaram também as crencasreligiosas,fragmencando-as, divesificando-as e multiplicando-as, |Cada mudanca dessas pede uma nova legitimidade, um conjunto de cren- 525] € convicgdes, de valores compartilhados ¢ convergentes, um reconheci- mento que a sociedade, ainda que de diferentes modos, rem lugar assegurado, oh todos. Mesmo a escravidio teve o seu fator de legitimidade. Nao s6 a mo. Foi nossa primeira forma de chi quénos ¢ sutis mecanismos de liberdade possivel, os intervalos do mando ¢ da pbediéncia. Houve escravos que compraram sua prépria liberdade, jé que 6 sistema juridico continka um pequeno niimero de brechas, suficientes para asstgurar a fantasia de uma liberdade possivel. E o préprio sistema insttuira brethas sociais ¢ econémicas no direito ao urabalho préprio nos dias santos de ata € © tronco criaram um sistema de obediéncia, mas sobrecudo of pe amen |ARELGIOSIOADE WWTERETICAL NO BRASIL CONTEMPORANED 122 guarda, dis em que a religiio dominante era também colocada entre parénte- es pelo trabalho proibido aos brancos, mas permitide aos negros. Com al Lei Aurea, em 1888, e a consequence disseminacio do trabalho livre, ap grande ih da ascensi por pelo relagdes 5 servagio © desem ceserutura ao Brasil retrogra depender A mo mo socialle introduzindo mudangas no conformismo politico. Os brasileiros ja nao est da enxad: os meios ocorteria| desde entio possbilidade da ascensio diminuiu, em seu lugar vingando Ganha- guinte, espera, @ ‘sous néo roricame radicais, quenao Isto & a, relagoes para um se config dadem destino, encolhe! sibilidade de formar pecilio ¢ ter a prépria terra alimentou a Isfo que sustentou a sociedade brasileira até 1964. A ideologia Jo social pelo trabalho operou como recurso pata adiar e estender 1enos trés geracées 0 conformismo necessitio 3 reproducéo das \ciais, econdmicas ¢ politicas. Um mecanismo duradouro de pre reiteragio da ordem social ¢ politica como recurso para garantir vimento econdmico e a transformacéo social na diego de uma le igualdade jusfdica e desigualdade social, Foi o que permiciu .e cransformar de um pais de renda concentrada, ¢ socialmente , de exportagio de produtos agricolas ¢ coloniais de sobremesa, © 0 acticar, num pais industrial voltado para o mercado interno, ., portanto, de redistribuigio de renda. lernizagéo a partir de 1964 ver abreviando o tempo do conformis- dispostos a esperar u2s ou quatro geragées para passat lentamente alheia a0 carro préprio. Se antes era possivel reunir lentamente la ascensio social e 20 mesmo tempo granjear a certeza de que ela lo consumismo e, portanto, a ilusio de que se participa, comprando, ide manha c gasta-se & tarde. Ou gastz-se& noite e ganha-se no dia se- Jn nova temporalidade foi inaugurada no lugar da temporalidade da| la impaciéncia. Como diz Henri Lefebvre, na modernidade as pes- mn mais tempo. Surge uma nova pobreza, a pobreza de cempo. His- te, as necessidades sociais que mover a histéria sio as necessidades smo as definem o mesmo Lefebvre ¢ Agnes Heller, as necessidades um ser satisfeitas send através de grandes transformagées socials. jag de novas referéncias socialmente estrucurais, novos marcos das itis, da consciéncia social e da conduta. No encanto, caminhamos jodelo de sociedade em que as necessidades radicais no chegam sar porque os muitos mecanismos econémicos ¢ politicos da socie lerna permitem que as rupruras sejam ancecipadas e administradas. Ja social vem sendo substicuida pelo imaginério manipulével. Num ido, a sociedade esti deixando de ser protagonista de seu propric o lugar clissico da acéo social politica dos movimentos sociais ex ido significativamente.

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