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ORMA PSIQUIAT. 2 - A trajetoria da reforma psiquiatrica no Brasil Inicio do movimento da reforma psiquiatrica: a trajetoria alter- nativa Neste capitulo, ao nos debrucarmos sobre 0 que denominamos ‘Inicio do movimento da reforma psiquiatrica’, compreendido entre os anos 1978 e 1980, buscamos identi- ficar as principais instituigées, entidades, movimentos e militancias envolvidas com a formulacio das politicas de satide mental no Brasil. Dentre os diversos atores, merece destaque 0 Movimento dos Trabalhadores em Satide Mental (MTSM) em suas variadas formas de expresso ~ Niicleos Estaduais de Satide Mental do Centro Brasileiro de Estu- dos de Satide ~ (CEBES), Comissdes de Satide Mental dos Sindicatos dos Médicos, Movi- mento de Renovacao Médica - (REME), Rede de Alternativas & Psiquiatria, Sociedade de Psicossintese). Outros atores de relevancia nesta histéria s4o a Associacao Brasileira de Psiquiatria - (ABP), a Federacao Brasileira de Hospitais—(FBH), a industria farmacéutica eas universidades, que tém uma atuagio extremamente importante, ora legitimando, ora instigando a formulacio das politicas de satide mental. 0 Estado, por meio de seus érgaos do setor satide ~ Ministério da Satide ~ (MS) e Ministério da Previdéncia e Assis- téncia Social - (MPAS) -, sera também objeto de nossas anilises. Este tépico inicia-se abordando a trajetéria do Movimento dos Trabalhadores em Satide Mental, por nés considerado 0 ator e sujeito politico fundamental no projeto da reforma psiquiatrica brasileira. £ o ator a partir do qual originalmente emergem as propostas de reformulacao do sistema assistencial e no qual se consolida o pensamento critico ao saber psiquidtrico. Acrise da DINSAM © movimento da reforma psiquidtrica brasileira tem como estopim o episddio que fica conhecido como a ‘Crise da DINSAM ' (Divisdo Nacional de Satide Mental), érgio do Ministério da Satide responsdvel pela formulacao das politicas de satide do subsetor satide mental. Os profissionais das quatro unidades da DINSAM, todas no Rio de Janeiro (Centro Psiquiatrico Pedro II - CPPII; Hospital Pinel; Colénia Juliano Moreira - CJM; e Manicémio Judiciério Heitor Carilho), deflagram uma greve, em abril de 1978, seguida da demissio de 260 estagiarios e profissionais.1 A DINSAM, que desde 1956/1957 nao realiza concurso piblico, a partir de 1974, com. um quadro antigo e defasado, passa a contratar ‘bolsistas' com recursos da Campanha Nacional de Satide Mental. Os 'bolsistas' sao profissionais graduados ou estudantes uni- versitarios que trabalham como médicos, psicélogos, enfermeiros e assistentes sociais, muitos dos quais com cargos de chefia e direcdo. Trabalham em condicées precarias, em clima de ameacas e violéncias a eles proprios e aos pacientes destas instituicdes. Sao, freqiientes as dentincias de agressio, estupro, trabalho escravo e mortes nao esclareci- das. Pos. 911 de 2747 ETORIA DA REFORMA PSIQUI Accrise é deflagrada a partir da dentincia realizada por trés médicos bolsistas do CPPII, ao registrarem no livro de ocorréncias do plantio do pronto-socorro as irregularidades da unidade hospitalar, trazendo a pubblico a tragica situacdo existente naquele hospital. Este ato, que poderia limitar-se apenas a repercussées locais e esvaziar-se, acaba por mobilizar profissionais de outras unidades e recebe o apoio imediato do Movimento de Renovagio Médica (REME) e do CEBES . Sucedem-se reuniées periddicas em grupos, co- misses, assembléias, ocupando espacos de sindicatos e demais entidades da sociedade civil. Neste movimento, sio organizados o Nuicleo de Satide Mental, do Sindicato dos ‘Médicos, ja sob a primeira gestio do REME, e 0 Niicleo de Satide Mental do CEBES. 0 MTSM denuncia a falta de recursos das unidades, a conseqiiente precariedade das con- dices de trabalho refletida na assisténcia dispensada & populacio e seu atrelamento as politicas de satide mental e trabalhista nacionais. As amarras de carter trabalhista e humanitario dao grande repercussao ao movimento, que consegue manter-se por cerca de oito meses em destaque na grande imprensa. Assim nasce 0 MTSM, cujo objetivo é constituir-se em um espaco de luta no institu- cional, em um locus de debate e encaminhamento de propostas de transformacao da assisténcia psiquidtrica, que aglutina informacées, organiza encontros, retine trabalha- dores em satide, associagées de classe, bem como entidades e setores mais amplos da sociedade. A pauta inicial de reivindicagées gira em torno da regularizacio da situacio trabalhista — visto que a situacao dos bolsistas ¢ ilegal - aumento salarial, redugao do ntimero excessivo de consultas por turno de trabalho, criticas & cronificagio do manicémio e a0 uso do eletrochoque, por melhores condicées de assisténcia & populagio e pela huma- nizagio dos servicos. Ou seja, reflete um conjunto heterogéneo e ainda indefinido de demiincias e reivindicagdes que o faz oscilar entre um projeto de transformacio psiquid- trica e outro de organizacio corporativa. Dos diversos documentos produzidos durante o ano de 1978 (abaixo-assinados, cartas abertas, cartas & autoridades de satide, notas publicas etc), alguns pontos-chave dio a dimensio das reivindicagées e dentincias realizadas pelo movimento nos seguintes aspectos: + Salariais - reivindicagées de férias, 13° saldrio, adicional de insalubridade, reajuste salarial, adicional noturno, estabelecimento de normas para formacio de residéncia na 4rea de satide mental, regulamentacio das bolsas de satide mental de acordo com 0 Decreto 60.252, de 21.02.1967, Capitulo V, que prevé para os técnicos da Campanha Na- cional de Satide Mental vinculo trabalhista regido pela CLT - as bolsas sio utilizadas por até 22 meses, quando o prazo maximo é de seis, sem qualquer programa de formacao profissional, regularizacio dos técnicos em satide mental (psicélogos, enfermeiros, as- sistentes sociais) também de acordo com a CLT. - Formacio de recursos humanos - reivindicagées de criacio de centros de estudos e supervisio profissional para os bolsistas, supervisio didria nos setores, reunides de Pos. ETORIA D EFORMA PSIQUI servico semanais para integragio dos diversos setores, atividades didatico-culturais regulares, cursos de aperfeicoamento na Area de satide mental com programas cient. ficos precisos, oficializados junto ao MEC, com carga horaria definida e remuneracao compativel, oficializacao de um internato em psiquiatria, com programa de ensino sis- tematizado, cursos técnicos, implementacao de planos de pesquisa. - RelacGes entre instituicdo, clientela e profissionais - critica ao autoritarismo das insti- tuicdes, com suas estruturas administrativas hierarquizadas e verticalizadas, seguidas de ameacas de punicdes e demissées; criticas & politica de satide imposta; questiona- mento da responsabilizacao indiscriminada atribuida ao médico e demais técnicos pelo mau atendimento dispensado & populacio. «Modelo médico-assistencial- apontamentos criticos sobre os limites da atividade tera- péutica biolégica, considerada prioritéria pela propria DINSAM, e quanto & impossibi dade de utilizar todos os recursos de que dispée a medicina moderna para o tratamento das doengas mentais. -Condicées de atendimento -criticas ao nimero insuficiente de profissionais, tornando as consultas passiveis de um padrao nao condizente com as normas previstas pela OMS; a falta de medicacao, ao reduzido niimero de leitos existentes ou em funcionamento, & existéncia de filas nos ambulatérios e pronto-socorros, 3 falta de conforto minimo para os pacientes internados; tudo isso aliado as precarias condigdes de higiene. A deflagracao, logo em seguida, da greve dos médicos residentes fortalece 0 MTSM durante os seus primeiros meses. Mas, com 0 tempo, o movimento dos residentes se torna mais importante, tanto pelo fato de reunir um ntimero muito maior de profis- sionais, quanto por paralisar servicos e atividades muito mais essenciais do que os psiquiatricos ~ cujo impacto, no que diz respeito a assisténcia médica, é praticamente insignificante. O impacto era devido ao contetido politico inerente as caracteristicas da assisténcia prestada nas instituicdes psiquidtricas. Assim, dia-a-dia, o movimento no Rio de Janeiro vai perdendo o espaco na imprensa e nas pautas de prioridades de luta das entidades civis. Apesar do perfodo de menor publicidade e pouca mobilizagio, as principais liderangas do MTSM continuam atuando para evitar que o movimento desapareca definitivamente da pauta da imprensa ou das entidades. Desta forma, organizam varios eventos com a co-participacao do CEBES , do Instituto Brasileiro de Andlises Sociais e Econémicas (IBASE), do Sindicato dos Médicos, da OAB, da ABI, da Associacao Médica do Estado do Rio de Janeiro, da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, da Associacao de ‘Médicos Residentes do Estado do Rio de Janeiro, dentre outras. Com a realizagéo do V Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em outubro de 1978, surge a oportunidade para organizar nacionalmente estes movimentos, que ja estavam se desenvolvendo em alguns estados. Realizado em Camboriti, de 27 de outubro a de no- vembro, este evento fica conhecido como o 'Congresso da Abertura’, pois, pela primeira vez, os movimentos em satide mental participam de um encontro dos setores consi:

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