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Lucas Silva Hamú

Universidade Federal de Goiás


lucashamusk8@hotmail.com

A Experiência do Instante

Resumo

Quando um novo recurso técnico é incorporado pela arte ela se transforma.


Todas as suas dimensões sofrem alterações: A sua criação é enriquecida com novas
possibilidades e uma nova compreensão da arte já existente, sua existência é ampliada
em sua própria materialidade, além do fato do próprio modo com que o publico recebe a
obra ser obrigatoriamente modificado. Obviamente, nem toda novidade técnica alcança
conseqüências tão radicais e extensas como a reprodutibilidade técnica narrada por
Walter Benjamin, mas uma investigação precisa é certamente capaz de encontrar
alterações significativas provocados pelos mais variados recursos técnicos que surgiram
na história da arte.
Todo o desenvolvimento da história da música parece ter ocorrido no interior
de um entendimento de linguagem musical limitado. As perspectivas e expectativas que
envolveram a música até o século XX favoreceram estruturas que dependem de sua
relação com o tempo, isto é, uma característica marca decisivamente este momento da
música: A submissão dos fragmentos temporais da música numa totalidade.
O surgimento da música eletrônica pode certamente ser compreendido como
um desses momentos em que o antes e o depois compõem fronteiras extremamente
significativas, em especial com relação ao modo como a obra é recebida e
compreendida. A trama dessa história divide dois momentos da música cuja dimensão
que às distingue é o modo como se percebe a música, mais especificamente, o modo
como a música se relaciona com o temporalidade na sua recepção.
Com os métodos de gravação que permitiam uma manipulação posterior dos
sons captados, de modo que sua natureza originária se transfigurava em efeitos sonoros
com funções completamente distintas, Pierre Schaeffer, junto à equipe da RTF
(Radiodiffusion-Télévision Française), iniciou uma jornada cujo trajeto, completamente
desconhecido, redefinia a música. Paralelamente, a NWDR (Nordwestdeutscher
Rundfunk) desenvolvia pesquisas semelhantes, mas o ideal alemão parecia ser ainda
mais consciente quando havia ainda a exigência do próprio material sonoro originário
ser puramente eletrônico.
Desse modo um novo espaço criativo foi aberto, exigindo um novo modo de
recebermos e compreendermos a música no qual o instante passa a orientar a percepção
e a materialidade supera a forma.

Palavras-Chave: Filosofia da música, Modos de percepção, Música


Eletrônica, Matéria e Forma.

Introdução

Quando um novo recurso técnico é incorporado pela arte ela se transforma.


Todas as suas dimensões sofrem alterações: A sua criação é enriquecida com novas
possibilidades e uma nova compreensão da arte já existente, sua existência é ampliada
em sua própria materialidade, além do fato do próprio modo com que o publico recebe a
obra ser obrigatoriamente modificado. Obviamente, nem toda novidade técnica alcança
conseqüências tão radicais e extensas como a reprodutibilidade técnica narrada por
Walter Benjamin, mas uma investigação precisa é certamente capaz de encontrar
alterações significativas provocados pelos mais variados recursos técnicos que surgiram
na história da arte.
No contexto da música brasileira temos bons exemplos. Tom Zé, numa
conversa documentada com David Byrne, oferece uma interpretação esclarecedora
acerca do surgimento da Bossa Nova: A música que antecede sua criação é marcada por
vocais cuja expressividade se baseava em gritos potentes e encorpados, e não poderia
ser diferente, a restrição técnica da gravação delimitava o próprio domínio criativo. Foi
o aperfeiçoamento do microfone que permitiu a realização do vocal frágil e sussurrado
de João Gilberto, mais do que isso, a própria idealização de uma vocal assim não seria
possível sem o desenvolvimento do microfone. A música tropicalista também permite
esclarecimentos análogos, ele deve parte de sua produção à nova compreensão que a
absorção da guitarra elétrica proporcionou ao samba e a música folclórica.

Os Fatos Históricos

Considerando a história da música de maneira mais ampla, creio que a


novidade técnica que modificou a natureza da música de maneira mais significativa foi
o desenvolvimento dos instrumentos que formariam os primeiros estúdios
eletroacústicos. Me refiro, especialmente, à novidades técnicas originárias da Musique
Concréte francesa e a Elektronische Musik alemã. Os aparelhos eletrônicos que
surgiram anteriormente, como o telarmônio, o órgão Hammond e o Teremim, apesar de
desempenharem papéis importantíssimos na história da música, ainda não despertaram
uma compreensão privilegiada da música.
O órgão Hammond estimulou uma excelente produção musical,
especialmente a partir da década de 50. Seu timbre único e suas potencialidades técnicas
abriram um campo de possibilidades extremamente rico e se mostrou fértil na realização
e idealização de experiências antes inimaginável. O jazz, o blues e, particularmente, o
rock progressivo, devem grande parte de sua produção ao espaço criativo aberto pelo
órgão Hammond. No entanto, toda a composição que se originou com o Hammond
ocupava estruturas já existentes, a música o absorveu e o acomodou dentro de formas já
concebidas.
Com os métodos de gravação que permitiam uma manipulação posterior dos
sons captados, de modo que sua natureza originária se transfigurava em efeitos sonoros
com funções completamente distintas, Pierre Schaeffer, junto à equipe da RTF
(Radiodiffusion-Télévision Française), iniciou uma jornada cujo trajeto, completamente
desconhecido, redefinia a música. Paralelamente, a NWDR (Nordwestdeutscher
Rundfunk) desenvolvia pesquisas semelhantes, no entanto, o ideal alemão parecia ser
ainda mais consciente quando havia ainda a exigência do próprio material sonoro
originário ser puramente eletrônico. “O material sonoro (basicamente ondas sinusoidais
e ruídos) era manipulado por meio de processos de síntese, modulação de amplitude,
filtragem e reverberação e, depois, fixado em fita magnética.”1

Justificação

A música, como qualquer linguagem artística, não se desenvolve na história


de forma previsível. Compreender o fenômeno da arte por meio de estruturas evolutivas
ou resultados diretos de uma configuração histórico-cultural contraria grande parte da
nossa experiência. Mas é impossível negar que a arte sofre mudanças proporcionais à
realidade na qual se encontra inserida e que sua existência é limitada às condições
tecnológicas de seu tempo e às restrições empíricas da imaginação humana. As
novidades técnicas que sustentaram o surgimento da música eletrônica ocupam um
lugar privilegiado no interior deste pensamento, sua aparição fornece um novo espaço
de criação, tanto pela nova materialidade sonora quanto pelo modo como ela é usada e
percebida.
O surgimento da música eletrônica pode certamente ser compreendido como
um desses momentos em que o antes e o depois compõem fronteiras extremamente
significativas, em especial com relação ao modo como a obra é recebida e
compreendida. A trama dessa história divide dois momentos da música cuja
característica que às distingue é o modo como se percebe a música, mais
especificamente, o modo como a música se relaciona com o temporalidade na sua
recepção.

A percepção do tempo

A história da arte é marcada por um desejo constante de superação. Esse


movimento de negação, rompimento e criação é a própria vida da arte, e a manutenção
de sua expressividade depende disso. Obviamente, a heterogeneidade da produção

1
http://www.cibercultura.org.br/tikiwiki/tiki-index.php?page=m%C3%BAsica+eletroac%C3%BAstica
musical, conseqüência inevitável de uma arte tão viva como a música, desde a
formalização de sua linguagem até o século XX, ultrapassa o domínio de qualquer
definição possível. Abandonando, porém, a exatidão que exige um processo de
definição, uma compreensão da música por meio de conceitos que descrevem momentos
ou gêneros singulares de sua existência é perfeitamente compatível com o caráter
subjetivo e inexato que envolve a arte. Obviamente, a significação desses conceitos é
resultado de um trabalho de natureza empírica e nem sempre tem interesse para a
filosofia.
Mas, pelo menos num caso, um esforço nesse sentido me parece
extremamente fértil: Todo o desenvolvimento da história da música parece ter ocorrido
no interior de um entendimento de linguagem musical. As perspectivas e expectativas
que envolveram a música até o século XX favoreceram estruturas que dependiam do
tempo para expor seu conteúdo, isto é, uma característica marca decisivamente este
momento da música: A submissão dos fragmentos temporais da música numa totalidade.
Não é exagerado afirmar que a melodia se tornou o principal conceito da
música, grande parte da preocupação dos músicos e, principalmente, da orientação da
atenção do receptor incidi sobre ela. Não é gratuito, portanto, o fato de naturalmente
usarmos a melodia como critério de identidade das músicas, rebaixando os demais
elementos ao estatuto de mero suporte ou acompanhamento. Ademais, até no período
barroco, não era clara a distinção entre os papeis das vozes, normalmente todas as vozes
faziam linhas melódicas igualmente importantes, embora alternassem sua importância
no decorrer da música, isto é, a música era basicamente melodia. A primazia da melodia
em relação aos demais elementos da música indica uma característica colateral: A idéia
de melodia não é possível fora do tempo, sua estrutura depende da forma temporal. A
idéia de ritmo é igualmente dependente de uma estrutura temporal, não faz sentido a
idéia de ritmo se não considerarmos a possibilidade de separarmos sons por “vazios”
sonoros, e isso só o tempo pode nos fornecer.
O período clássico e romântico desenvolve ainda mais estruturas musicais
que dependem do tempo. Uma noção mais clara de dinâmica surgiu, ela foi formalizada
e solidificada nas estruturas clássicas das sonatas, dos concertos e das sinfonias. Todas
elas se estruturavam em dois ou mais movimentos que oferecia uma maior dinâmica, os
quais, ademais, se valorizavam mutuamente. Nesse contexto, a unidade da música
corresponde à totalidade dos movimentos, isto é, a compreensão de cada passagem
depende da presença virtual dos demais movimentos. Assim como cada nota da melodia
deve sua total significatividade à relação que mantém com as demais notas que compõe
o todo, cada movimento das extensas obras românticas também deve grande parte de
sua expressividade à relação que mantém com a totalidade da obra.
No interior de toda a novidade estética que Debussy traz à música,
investigando delicados timbres e desafiando o sistema tonal predominante, está presente
uma estética cuja relação com o tempo é, contrariamente, a radicalização da tradição.
Cada pequeno som que aparece na música impressionista de Debussy está inserido num
contexto mais amplo, e sua plena expressividade depende dessa relação. Debussy
explora inúmeros efeitos sonoros que se estruturam numa multiplicidade de sons
ligeiramente encadeados, sua peculiar construção harmônica somente se dá na complexa
relação entre as notas, assim como a dimensão pictórica de sua música, que surgi a
partir da ambientação que se constitui no movimento da música. Nesse sentido, a
idealização de sua música está profundamente relacionada ao tempo, e sua percepção
exige uma compreensão dessa totalidade que se encontra fragmentada em toda a
extensão temporal da música.

A percepção do Instante

A música eletrônica, como foi já foi dito introdutoriamente, rompeu com


uma característica que determinava toda a produção musical que o antecedeu: O modo
da música lhe dar com o tempo. Abandonando as principais estruturas que se
solidificaram na história da música, mediante as quais se concebia e se compreendia a
linguagem musical, foi aberto um novo espaço criativo. O modo com que a música se
relaciona com tempo, e as estruturas musicais que se desenvolveram a partir dessa
relação, são substituídas por formas músicas nas quais o instante passa a orientar a
percepção..
Os estúdios eletroacústicos permitiram a produção de um material sonoro
inteiramente novo, tão novo que despertou um foco de atenção paralelo para a música:
Sua própria materialidade. O som, em si mesmo, se tornou o principal interesse para a
música, conduzindo o desenvolvimento de novas estruturas musicais e, portanto, uma
nova concepção da linguagem musical.
A dimensão dessa mudança é ainda mais ampla. O próprio receptor, diante
da obra, deve modificar sua postura. A tentativa de acomodar a música eletrônica às
estruturas que determinam nossa compreensão da música tradicional só acarreta à más
conseqüências. Trata-se de interromper uma experiência estética na sua própria
condição de possibilidade: Deixar a obra falar por si. O hábito e o preconceito orientam
nossa percepção para elementos agora inexistentes. A ausência de uma linha melódica
clara, a desordem rítmica dos sons, a falta da voz humana e de instrumentos habituais,
além da mudança radical das formas musicais que usualmente esperamos de uma
música, contrariam todas as expectativas. Ademais, esperar da obra algo que ela não
pode oferecer implica ainda em ignorar aquilo que ela oferece.
Se faz necessário, portanto, uma nova postura, um novo modo de receber e
compreender a música. As estruturas musicais predominantes até o século XX se
desenvolveram a partir de uma concepção de música na qual os seus fragmentos
temporais extraia sua expressividade da relação que mantinha com a totalidade. A
música eletrônica inverte essa relação. Apoiado nas novidades técnicas dos estúdios
eletroacústicos, pela primeira vez, os fragmentos temporais se tornam prioridade, e,
consequentemente, exigem e direcionam a formação de novas estruturas e de um novo
modo de recebê-las.
O Instante determina o espaço da percepção, e tudo que cabe nele é o timbre,
a qualidade do som, a matéria da música. Despida da forma, a distancia entre a música e
o espectador é reduzida: Sua materialidade o atinge diretamente. Cada fragmento
temporal se torna um todo em si mesmo, uma vida fugaz, mas plenamente expressiva.
Tudo isso constitui um novo modo de percepção, no qual a materialidade toma o lugar
da forma, e o instante ocupa o lugar do tempo.

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